sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A mulher do vigário - padres que desrespeitavam o celibato

Casos escandalosos julgados no Maranhão revelam a vida amorosa e familiar dos padres que desrespeitavam o celibato
Pollyanna Gouveira Mendonça

O padre Miguel de Morais e Ignácia Maria moravam sob o mesmo teto, com seus cinco filhos e grande número de agregados, até ele ser transferido para a Vila dos Vinhais, a uma légua e meia de São Luís. De lá, “mandava frangos e galinhas, lenha e índios” para a família, mas Ignácia, que não conseguia ficar longe de seu amante, passava a “fazer-se de doente dizendo que era melancolia”, e só ficava curada depois que o padre Miguel lhe fazia “afagos amatórios” à vista de todos. Denunciados pelos vizinhos por estável concubinato nos idos de 1762, eles ocupam páginas e páginas de um dos muitos processos do Tribunal Episcopal do bispado do Maranhão no século XVIII. São ricos volumes de uma documentação que detalha o cotidiano de famílias formadas por membros do clero que não respeitavam o celibato.

A discussão sobre a castidade dos padres já era antiga quando, em 1215, no Concílio de Latrão, a Igreja estabeleceu a abstinência dos prazeres carnais como divisor de águas entre clérigos e leigos. Mas o marco na tentativa de moralizar os costumes e aumentar a vigilância sobre a população foi o Concílio de Trento (1545-1563), ao reafirmar sacramentos e dogmas que estavam em debate pelo menos desde os séculos XII e XIII. Por esses preceitos, os sacerdotes, como ministros de Deus, deveriam manter-se retos de costumes para servir de exemplo aos fregueses e auxiliar na política disciplinadora da Igreja.

Mas, ao impedir a manutenção de relações afetivas e sexuais, o celibato clerical também facilitava o convívio com as mulheres. Como representante do Senhor na terra e o mais próximo do discurso celeste que aquelas pessoas conheciam, um padre era, ao menos no início, insuspeito. Na prática, vivendo em meio às próprias moralidades da Colônia, espalhando-se entre os homens comuns e mesmo camuflando-se sob as suas batinas, muitos clérigos não só compartilharam como praticaram costumes difundidos socialmente, como o concubinato – embora a Igreja só reconhecesse como legítima a família constituída pelo sacramento do matrimônio e considerasse ilegais todas as demais uniões.

Escandalizando a população do Maranhão, esses padres adotavam uma vida de casados. Tal como os leigos, providenciavam o sustento da casa, da mulher e de seus filhos, com alimentação, vestuário e escravos, enquanto as concubinas, inclusive as que permaneceram em companhia da mãe ou de parentes, cuidavam da casa e dos filhos. Além disso, a falta de privacidade dos lares, comum na sociedade colonial, permitia que os vizinhos assistissem regularmente às trocas de afeto e dedicação conjugal. Mesmo assim, com todo o tumulto que provocavam, essas relações permaneciam estáveis anos depois da primeira denúncia, como mostra o considerável número de reincidentes.


O padre Manoel Dornelles e Thereza da Cruz tiveram sua relação amorosa denunciada na cidade de São Luís em 1744. No ano anterior, haviam sido presos juntos, “fora de horas”: soldados da ronda encontraram o reverendo “em ceroulas e mangas de camisa” na casa de Thereza. Mesmo depois do flagrante, o casal teria continuado a mancebia, apesar de o Juízo Eclesiástico ter proibido o vigário de freqüentar a Rua do Egito, onde a amásia morava com sua mãe. Nos autos consta que o padre a assistia “com todo o necessário de comer e de beber”, além de vesti-la de sedas, “com toda a pompa”. Descrito como muito ciumento, a ponto de colocar “vigias para ver quem entra em casa de Thereza”, o padre Manoel não respeitara as ordens e teria até comprado uma morada de casas para Thereza no bairro de Santo Antônio, “para ficar desembaraçado e livre para poder ir à sua casa como dantes”.

Angélica Lopes e o padre Onofre Pimenta, acusados por viverem de “portas adentro” como “se fossem marido e mulher”, eram investigados desde 1753 pelo Juízo Eclesiástico. De acordo com o depoimento do tio de Angélica, viviam juntos “sem vergonha de Deus nem do mundo”, e em 1756 já estariam com duas filhas. Mesmo número que a viúva Maria Pereira teria tido com o padre Manoel Corrêa, denunciado no ano de 1740 em São Luís. O “casal” também dividia o mesmo teto, segundo as testemunhas, sob pretexto de parentesco espiritual por serem compadres.

Afora a coabitação, alguns religiosos tentaram utilizar outras táticas para que suas transgressões passassem mais despercebidas. A separação das moradias foi uma delas. Mas o sentimento e as obrigações familiares não se dissolveram, como observou Luciano Figueiredo em seu estudo sobre Minas Gerais. No Maranhão, o caso de concubinato vivido pela escrava Anna Maria com o reverendo Manoel Jozé Costa tornou-se assunto comentado por toda a vizinhança de São Luís em meados de 1763. Anna saía todas as noites da casa do seu senhor para encontrar-se com o amante-padre que, segundo testemunhas, invadia os quintais alheios à procura da amásia, sendo sempre alvo de comentários jocosos dos vizinhos: “Lá vai o Padre”... Até que um dia, quando um deles chamou sua atenção, o padre “teria metido uma espingarda à cara” da testemunha. Essa atitude de indisciplina os paroquianos não acataram.

O excesso de zelo, a presença de filhos, a coabitação, os presentes e carinhos trocados surgem na documentação do bispado do Maranhão como os principais motivos para as delações. A população fazia certa distinção entre a vida amorosa e familiar dos sacerdotes e as suas obrigações eclesiásticas, pelo menos para os padres que viviam “como se casados fossem”. Oscilando entre momentos de tolerância e intolerância, a comunidade observava um “limite do permitido”, um ponto até o qual convivia com tais uniões ilegítimas, uma vez que a visibilidade desses relacionamentos não implicava ausência de preconceitos.


Como no caso de adultério vivido por Anna Lucinda, esposa de Ricardo Barbosa, com o padre Manoel Rodrigues, na Vila de Alcântara, a quatro léguas de São Luís, em 1791. Em três longos processos, as testemunhas, ao relatarem as diversas brigas do casal, todas elas em razão de o marido cobrar fidelidade da esposa, disseram saber, “por ver e presenciar”, o “horrendo amancebamento”. Os vizinhos conheciam detalhes da relação e sempre presenciavam Anna Lucinda “cortando as unhas e cabelos das narinas” do padre Manoel. Segundo um depoimento, Ricardo Barbosa teria flagrado Anna com o clérigo e se escondido “detrás de uns cofos de algodão”, de onde ouvira o padre Manoel dizer a Anna “que ela era a culpada do marido dela os ir apanhando”. Nos autos, o marido traído chega a afirmar que “não era dos primeiros, e nem seria dos derradeiros”, mas que estaria disposto a perdoar. Mas Anna, irredutível, tentou o divórcio, implementou algumas fugas, e cinco anos após a primeira acusação estaria vivendo, segundo consta, sob o mesmo teto com o padre Manoel.

De todo modo, as muitas denúncias não surgiam apenas pela incorporação na comunidade dos discursos de pecado e de busca pela retidão dos costumes. A Igreja também incentivava a delação, facilitando que uns e outros trouxessem à tona as faltas alheias: precisava contar com a colaboração de uma parcela da população para cuidar de um território tão amplo como o do bispado do Maranhão no século XVIII, que abrangia os atuais estados do Maranhão e do Piauí.

E o julgamento desses casos, num tribunal composto também de religiosos, demonstra o grande conflito que então permeava o clero: se por um lado, ao punir seus iguais, destacava as mazelas que corroíam o corpo eclesiástico, por outro, fechando os olhos para as faltas, contribuía para a continuidade de erros e vícios. Essa contradição que assolava a instituição eclesiástica manifestava-se ora com braço forte, mandando prender e degredar seus iguais, ora aliviando o peso da Justiça, apenas recriminando e ordenando o pagamento de multas.

Eram homens de carne e osso, com desejos e vontades próprias, vivendo em uma sociedade pluriétnica, escravista, num bispado amplo marcado por 63 longos anos de vacância no século XVIII. Apesar das imposições, alguns clérigos resistiram e formaram famílias estáveis. Famílias de padres, mas que faziam parte do complexo mundo da Colônia e que se constituíam em meio à vigilância do poder eclesiástico e à dificuldade de consolidação de um discurso celibatário. Considerados transgressores, esses sacerdotes vivenciaram sua existência familiar de variadas formas e com diferentes táticas. E assim criavam seus filhos e continuavam com suas amásias até a denúncia seguinte.

POLLYANNA GOUVEIA MENDONÇA É DOUTORANDA EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTORA DA DISSERTAÇÃO SACRÍLEGAS FAMÍLIAS: CONJUGALIDADES CLERICAIS NO BISPADO DO MARANHÃO NO SÉCULO XVIII, (UFF 2007).

Revista de História da Biblioteca Nacional

Um comentário:

Escrevendo na Pele disse...

Gostei também desse relato. Interessante como nos dias de hoje, ainda perdure essa idéia de que o sacerdote deve manter-se casto. Como se a própria igreja não propagasse também a lei da multiplicação. Esquisito isso, parecem que não são gente e não têm necessidades físicas. Taí, gostei novamente!