Novembro 2006
por Lorelai Kury
O confisco de espécies, comum na história da ciência, buscou apoio na idéia de que o conhecimento não tem fronteiras e constitui bem universal.O estudo histórico das práticas científicas está na interseção de diversos campos de interesse e se vincula a reflexões sobre disputas internacionais e questões nacionais. Durante o conturbado período que sucedeu a Revolução Francesa, a Europa viveu em meio a guerras, invasões, ameaças, que tiveram repercussões mundiais. Esse momento foi, além disso, marcado pela consolidação de atividades e concepções científicas que persistiram, em larga medida, durante os séculos XIX e XX.Quando as tropas de Bonaparte chegavam a um país inimigo traziam consigo homens capazes de avaliar as riquezas artísticas e científicas dos lugares conquistados para confiscá-las. Em Portugal, a ocupação francesa, em 1807, abriu caminho para a missão científica e artística liderada pelo naturalista Étienne Geoffroy-Saint-Hilaire. Agindo em nome da França, o zoólogo acreditava representar os interesses da humanidade inteira. Assim, apoderou-se de muitas coleções e objetos depositados nas instituições portuguesas. Para o invasor, depois de estudadas na França, essas coleções poderiam ser úteis aos próprios portugueses, já que estes passariam a ter uma "propriedade científica, quando antes possuíam apenas ervas".Embora o confisco de guerra tenha sido condenado, sabe-se que alguns homens de ciência que atuavam em Portugal chegaram a apoiar a missão de Saint-Hilaire, pois acreditavam que a ciência formava um campo neutro, acima dos interesses nacionais. Essa atitude seria classificada de "filantrópica", respeitando o significado que o termo tinha na época. A partir do Iluminismo, a palavra designa uma virtude dita natural, que é o amor pelo gênero humano. É em nome da "civilização" e do "bem da humanidade" que se dá a expansão colonialista do século XIX.
A biopirataria nem sempre esteve associada a essa nova ideologia colonial pós-iluminista, principalmente no caso de produtos valorizados no mercado internacional. Parte das espécies e variedades de vegetais cultivados no Brasil foi obtida por via da apropriação sem mediações. Caiena, invadida em 1809 pelos portugueses, com seu jardim botânico chamado La Gabrielle, foi um dos principais alvos dos "corsários" portugueses.Nos últimos dois séculos, as ciências naturais participaram diretamente da avaliação, transferência e manipulação de produtos naturais. A biopirataria é apenas uma das práticas nas quais as ciências podem estar envolvidas. Contam-se histórias mirabolantes acerca do troca-troca de sementes e mudas, como é o caso do roubo de plantas de café pelo militar Palheta, no século XVIII, e o da borracha pelos ingleses, em 1876. No entanto, além dos feitos espetaculares, ocorriam práticas quase corriqueiras, como as 21 caixas de plantas vivas originárias dos arredores do Rio de Janeiro que o botânico Auguste de Saint-Hilaire enviou para as colônias francesas com o auxílio de frei Leandro do Sacramento, em 1821. Segundo o francês, tratava-se de troca e não de roubo. Do Brasil ele levaria sementes, vegetais, um herbário, animais, informações sobre a geografia e a história do país etc. Em troca, os conhecimentos apenas empíricos dos brasileiros se transformariam em ciência.
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Lorelai Kury é doutora em história pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, professora da Casa de Oswaldo Cruz e da Uerj e pesquisadora do CNPq
Revista História Viva
por Lorelai Kury
O confisco de espécies, comum na história da ciência, buscou apoio na idéia de que o conhecimento não tem fronteiras e constitui bem universal.O estudo histórico das práticas científicas está na interseção de diversos campos de interesse e se vincula a reflexões sobre disputas internacionais e questões nacionais. Durante o conturbado período que sucedeu a Revolução Francesa, a Europa viveu em meio a guerras, invasões, ameaças, que tiveram repercussões mundiais. Esse momento foi, além disso, marcado pela consolidação de atividades e concepções científicas que persistiram, em larga medida, durante os séculos XIX e XX.Quando as tropas de Bonaparte chegavam a um país inimigo traziam consigo homens capazes de avaliar as riquezas artísticas e científicas dos lugares conquistados para confiscá-las. Em Portugal, a ocupação francesa, em 1807, abriu caminho para a missão científica e artística liderada pelo naturalista Étienne Geoffroy-Saint-Hilaire. Agindo em nome da França, o zoólogo acreditava representar os interesses da humanidade inteira. Assim, apoderou-se de muitas coleções e objetos depositados nas instituições portuguesas. Para o invasor, depois de estudadas na França, essas coleções poderiam ser úteis aos próprios portugueses, já que estes passariam a ter uma "propriedade científica, quando antes possuíam apenas ervas".Embora o confisco de guerra tenha sido condenado, sabe-se que alguns homens de ciência que atuavam em Portugal chegaram a apoiar a missão de Saint-Hilaire, pois acreditavam que a ciência formava um campo neutro, acima dos interesses nacionais. Essa atitude seria classificada de "filantrópica", respeitando o significado que o termo tinha na época. A partir do Iluminismo, a palavra designa uma virtude dita natural, que é o amor pelo gênero humano. É em nome da "civilização" e do "bem da humanidade" que se dá a expansão colonialista do século XIX.
A biopirataria nem sempre esteve associada a essa nova ideologia colonial pós-iluminista, principalmente no caso de produtos valorizados no mercado internacional. Parte das espécies e variedades de vegetais cultivados no Brasil foi obtida por via da apropriação sem mediações. Caiena, invadida em 1809 pelos portugueses, com seu jardim botânico chamado La Gabrielle, foi um dos principais alvos dos "corsários" portugueses.Nos últimos dois séculos, as ciências naturais participaram diretamente da avaliação, transferência e manipulação de produtos naturais. A biopirataria é apenas uma das práticas nas quais as ciências podem estar envolvidas. Contam-se histórias mirabolantes acerca do troca-troca de sementes e mudas, como é o caso do roubo de plantas de café pelo militar Palheta, no século XVIII, e o da borracha pelos ingleses, em 1876. No entanto, além dos feitos espetaculares, ocorriam práticas quase corriqueiras, como as 21 caixas de plantas vivas originárias dos arredores do Rio de Janeiro que o botânico Auguste de Saint-Hilaire enviou para as colônias francesas com o auxílio de frei Leandro do Sacramento, em 1821. Segundo o francês, tratava-se de troca e não de roubo. Do Brasil ele levaria sementes, vegetais, um herbário, animais, informações sobre a geografia e a história do país etc. Em troca, os conhecimentos apenas empíricos dos brasileiros se transformariam em ciência.
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Lorelai Kury é doutora em história pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, professora da Casa de Oswaldo Cruz e da Uerj e pesquisadora do CNPq
Revista História Viva
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