Denise Dias Barros1 Professora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina – USP
Giobellina Brumana, F. Soñando con los Dogon. En los orígenes de la etnografía francesa, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2005, 394 pp.
Os sonhos dos outros: travessias pela etnografia francesa
A palavra viaja rápido antecipando o objeto. Ao ler o título Soñando con los Dogon – que chegou a mim como informação muito antes do livro que trazia seu subtítulo: en los orígenes de la etnografia francesa –, tive um sobressalto. Muito de tudo isso me interpela e me coloca diante de meu próprio percurso. Também eu fazia (faço), de alguma forma (qual?), parte dos que sonham com os Dogon. Seria uma viagem dupla: a das análises do autor e a da releitura de meu trabalho etnográfico vivamente interrogado pelas críticas e pela história do que se produziu (e se produz) sobre os Dogon da República do Mali. Seria ainda um reencontro com as primeiras gerações de estudiosos sobre os Dogon: Delafosse, Desplagnes e, também, com Griaule, Leiris, Paulme, Dieterlen e Calame-Griaule.
Chega afinal o livro. Fascinante trabalho de Fernando Giobellina Brumana! Ler foi igualmente uma experiência de reencontro, de descoberta, de partilha e de aflição. Ele é espanhol, professor na Universidade de Cadiz e um interlocutor importante da produção brasileira em ciências sociais. Aqui entre nós, estuda cultos de possessão presentes no candomblé, na umbanda e no catimbó.
Soñando con los Dogon é antes de tudo uma reflexão sobre a etnografia francesa (mas não apenas) de 1920 a 1950, uma arqueologia das relações entre os pesquisadores e os sujeitos-objetos de seus olhares e objeto de suas lógicas e afetos. Ambos inseridos nos primeiros momentos do trabalho de campo da etnografia francesa profundamente imbricada nos emaranhados do imaginário ocidental-europeu do período colonial. Trata-se de uma narrativa que não cinde teoria, metodologia de pesquisa e história, inquietações, dramas pessoais e interesses institucionais, profissionais e políticos. O leitor viaja com o autor por momentos densos da Missão Dakar-Djibouti entre os Dogon (atual República do Mali) e em Gondar (Etiópia). O período? Saída de Bordeaux em 19/5/1931, chegando de volta à França (Marselha) em 17/2/1933.
As viagens etnográficas – equiparadas à idéia de missão – inscreveram-se num conjunto de diversas iniciativas que foram, ao longo do século XX, dando forma à diversidade do planeta em um processo de catalogação cada vez mais sistematizado. O Instituto de Etnologia da Universidade de Paris e o Museu Nacional de História Natural organizaram a Missão Dakar-Djibouti a fim de coletar objetos para as coleções etnográficas, além de obter imagens e informações lingüísticas, botânicas e etnográficas (Griaule, 1930, p. 7-8). Segundo seu idealizador Marcel Griaule: "Le but poursuivi dans ce contrée [enquête extensive en territoire colonial français] est avant tout le rassemblement de collections importantes et la prise de contact avec les organismes administratifs et militaires en vue d'une collaboration ultérieure" (id., p. 6).
No grupo que partiu para a África com Marcel Griaule, estiveram diversos intelectuais que, na década de 1920, colaboravam com a revista Documents: Archéologie, Beaux Arts, Ethnographie, Varietés. A publicação consistia em um espaço de debates, sobretudo para dissidentes do surrealismo de Breton, como George Bataille, Artaud, Leiris, Griaule, Schaeffner, Rivière e Rivet, Maillol, Vlaminck, Matisse e Picasso. Eles haviam ficado fascinados pela audácia das formas da "arte negra" e por seu anti-realismo. Havia uma sensibilidade estética nova que permitiu aflorar um menor estranhamento diante das formas abstratas e estilizadas de esculturas e objetos africanos que chegavam à França. "Para a vanguarda parisiense, a África (e em menor grau a Oceania e a América) fornecia uma reserva de outras formas e outras crenças" (Clifford, 1998, p. 136).
A Missão Dakar-Djibouti e Soñando con los Dogon fundem-se para que Giobellina nos guie numa travessia por questões atuais da disciplina e dilemas sempre renovados de todo pesquisador em campo. Ele interroga os enigmas da co-presença do desejo e da repulsa do outro na produção do conhecimento (e na paixão) num diálogo com três homens de itinerários intelectuais distintos: Antonin Artaud, Michel Leiris e Marcel Griaule. Os percursos dos dois últimos formam, entretanto, o cerne das análises. A Artaud Fernando Giobellina dedica um apêndice em que chama para uma reflexão sobre viagens, exotismo e escritura. Uma "etnografia delirante" de poeta ciente de que "solo una forma perversa de autoflagelación era capaz de transformar una corrida personal en desafio público" (p. 360).
Quando partiu da França para Dakar, Leiris estava com 30 anos, viajou como arquivista com o grupo coordenado por Marcel Griaule, do qual participaram também Lager (botânico), Pingault (fotógrafo e cinegrafista), Monchet (lingüista), Schaeffner (musicólogo).
No diálogo com Leiris, o autor mostra-nos uma aliança entre a narrativa etnográfica e autobiográfica enquanto grafia do duplo evento presente na pesquisa de campo. Leiris tinha deixado o continente europeu levando ideais que compartilhava com os surrealistas, ligados à negritude e à vontade do exótico que havia sido alimentado pela literatura do final do século XIX. As elaborações de atração e repulsa ao longo de uma viagem de observação do outro e de observação de si o colocaria diante de contradições múltiplas em relação ao fato colonial e ao conflito entre verdade e poder. Já quase no final da viagem – em 25 de agosto de 1932 –, desabafava: "Amertume, ressentiment contre l'ethnographie qui fait prendre cette position si inhumaine d'observateur, dans des circonstances où il faudrait s'abandonner" (Leiris, 1996, p. 529). Leiris realizou simultaneamente uma expedição científica e uma viagem interior. Percurso de vicissitudes pessoais, relacionais e políticas. Percurso inacabado. Leiris é Gondar, terra de sua paixão pela etíope Emawayish que o faz sentir como não humana sua posição de pesquisador. Experiência de luta contra a morte, experiência poética.
O diário de campo de Leiris – publicado pela primeira vez em 1938 – oferece ao autor de Soñando con los Dogon um contraponto às narrativas heróicas e cientificamente ordenadas das publicações de Griaule: "ni crítica ni autocrítica de la etnografia colonial, el diário de Leiris es el descubrimiento por sí mismo y en sí mismo de como son las cosas, el realismo que quizás sólo um poeta pueda dar de manera cabal" (p. 113). África Fantasma é carregado dos fantasmas de Leiris, mas também das projeções, dos desejos de grande parte do(a) pesquisador(a) em campo.
Tanto Leiris quanto a leitura que nos oferece Fernando Giobellina Brumana não omitem os paradoxos inerentes ao projeto, nem as relações de poder e prestígio em jogo em sua execução, desnudando a Missão que inaugurou a etnografia francesa. Retomemos Leiris:
Tous les gens de cette époque étaient évolucionistes. Il y avait des anti-colonialistes – Félicien Challaye par exemple –, mais la plupart des gens progressistes se contentaient de dénoncer les abus, et ce que l'on appelle aujourd'hui les bavures de la colonisation, mais ne la dénonçaient pas em tant que telle [...]. L'ethnologue s'est développée dans le cadre du colonialisme, afin d'arriver à une colonisation plus rationnelle (apud Dupuis, 1999, p. 521).
As biografias e as narrativas diferem, porém os dramas de Leiris analisados em Soñando con los Dogon surgem em parte da busca de todo(a) pesquisador(a) que vive a experiência da imersão por períodos prolongados. Encontrar um lugar para os próprios demônios, para as contradições que se originam do contexto histórico, político, racial e de gênero que conferem identidades ao pesquisador e ao mundo aonde chega. Brumana reúne generosamente para seu leitor o pesquisador, o viajante, o poeta, o intelectual que indaga seu lugar em seu tempo, o homem e seus medos, suas fantasias e, sobretudo, sua forma de negociar a diferença e de aceitar a dor da distância do Outro que é, também, objeto de desejo. Evidencia as duplicidades da prática etnográfica. "Nada hay sólido, ni en el que viaja para observar, ni en el que se resigna a ser observado. Fantasma uno, fantasma el otro" (p. 119). Os Dogon de Leiris estão mais em Gondar que entre os primeiros; mais nos cultos de possessão do que nas máscaras ou no "sigi so" – língua secreta dogon. Sua maneira pessoal de lidar com conflitos elaborados por meio da arte encontraria na teatralização do culto do zar em Gondar (Etiópia) uma linguagem que lhe permitiria viver uma experiência existencial sem se confundir nos jogos de alteridades. Ele sairia da África marcado por essa experiência (iniciática? poética?) que restaria inscrita tanto em sua produção literária como etnológica.
Marcel Griaule – o Nazareno ou o europeu como é reiteradamente evocado em Soñando con los Dogon – é diverso, um outro radical de Leiris. Considerava o trabalho de campo como continuação de uma tradição de aventura e exploração. Seu primeiro campo foi na Etiópia, onde havia passado um ano (1928-1929). Acreditava que a ausência de interesses etnológicos na exploração da terra teria favorecido a incompreensão mútua entre os povos (Griaule, 1948, p. 119). Ele deixou uma produção bibliográfica expressiva: 175 títulos entre artigos e livros. De sua produção literária, consta Les flambeurs d'hommes que recebeu o Prêmio Grigoire e foi reeditado mais de 40 vezes. Griaule parece ter sido um homem enérgico e de grande vitalidade, imbuído de um projeto pessoal de conquista e poder que, freqüentemente, referia a si mesmo na terceira pessoa. Enfatiza Giobellina Brumana (p. 112-13) que essa forma discursiva é expressão da autocomplacência e integra seu projeto heróico.
Os estudos etnográficos mais intensivos de Marcel Griaule foram dedicados à região dogon com enfoque em fenômenos rituais, mitológicos e nos jogos infantis. Em 1938 publicou Jeux dogons e defendeu o doutorado com seu famoso Masques dogons (1938, 1963, 1983 e 1994). Até os estudos produzidos pela Missão, as informações disponíveis na Europa haviam sido relatadas por oficiais franceses e por viajantes e exploradores. Krause, médico alemão, parece ter sido o primeiro europeu a conhecer Bandiagara em 1886. Louis Desplagnes, em 1907, Robert Arnaud, em 1921, e Leo Frobenius, em 1911 e 1921, foram os primeiros a publicarem material de pesquisa. Os escritores Paul Morand e William Seabrook publicaram seus relatos de viagem na região, respectivamente, em 1928 e 1931.
O hipotético isolamento atribuído à população das montanhas refratária à islamização – então chamada de Habbé2 – iria intensificar o efeito e o fascínio que têm exercido desde a década de 1930 sobre os viajantes, administradores e, posteriormente, sobre os pesquisadores, a mídia, os turistas e os aventureiros de nossos dias. Desde então, inúmeros trabalhos têm sido realizados na região em domínios disciplinares diversos: arqueologia, história, sociologia, antropologia e medicina. É importante ressaltar que a publicação, em 1948, de Dieu d'eau: entretiens avec Ogotemeli por Marcel Griaule foi decisiva. Destinado não apenas aos especialistas, o livro conheceu um grande sucesso, tendo sido traduzido para diversas línguas.
Entretanto, o livro Dieu d'eau foi considerado uma montagem romanceada, produzida com base em um único interlocutor. A morte de Marcel Griaule em 1956 deixaria inconclusas suas pesquisas posteriores. Germaine Dieterlen encarregou-se de dar continuidade e publicou Renard Pâle (Griaule & Dieterlen, 1965), texto em que os autores realizam uma síntese da cosmologia dogon compreendida como sistema de pensamento. Essa obra intrigante e erudita tem sido igualmente criticada, sobretudo por não permitir comprovação empírica dos dados. Somam-se a esta, fortes objeções à insistência dos pesquisadores em apreender a sociedade por meio de suas narrativas míticas, à preocupação centrada no simbólico e na busca de sentidos subjacentes e secretos aos fenômenos estudados. Os trabalhos de Griaule exerceram grande influência nos estudos sobre religião na França.
Os vieses das pesquisas etnológicas e o pensamento do período colonial (com seus métodos e apriorismos) não foram ainda suficientemente debatidos e superados no sentido de conduzir revisões profundas do conhecimento que produziram sobre sociedades como a dogon. Mas a produção sobre os Dogon não permaneceu presa à ilha de Circe.
Muitas críticas surgiram imediatamente após o retorno a Paris, com a primeira publicação de Afrique fantôme de Leiris em 1934 (mas, foi proibido...). Seria preciso esperar a década de 1960 para que o debate iniciado por Leiris tivesse continuidade com as publicações de Balandier (1960), Lettens (1971), Lebeuf (1975), Clifford (1983), Van Beek (1991), De Heusch (1991), Bouju (1995), Piault (2000) e Ciarcia (1998; 2001) entre outros.
O nome Dogon parece ter adquirido uma conotação negativa nesse percurso de paixões, gerando uma herança incômoda e um mal-estar em algumas instâncias do meio antropológico, sobretudo francês. O exotismo dos anos 1930 transformou-se ao longo das últimas décadas e acompanhou as vicissitudes da percepção da alteridade e dos interesses político-econômicos. Ele foi criticado, mas não desapareceu: foi assumindo contornos sutis e dissimulados no meio intelectual, mas se ampliando extraordinariamente na população. O interesse sobre sociedades singulares de todo o planeta viu-se realimentado pelo crescimento, nas últimas décadas, do turismo (cultural, de aventura, étnico, ético etc.) e por uma significativa produção de documentários televisivos.
Soñando con los Dogon tem, portanto, mais esse mérito: o de recolocar em cena (e o faz de forma contundente) uma discussão inacabada e insuficiente, coberta de polarizações, enrijecimentos, estereotipias e, por vezes, descoberta de contextualizações históricas. No texto de Fernando Giobellina Brumana, o(a) leitor(a) irá certamente encontrar outros (muitos) temas (bem documentados) para refletir, repensar e sonhar a antropologia e os campos da pesquisa.
Notas
1 Realiza pesquisas desde 1993 na região Dogon e é autora de Itinerários da loucura em territórios Dogon (Rio de Janeiro, Fiocruz/Casa das Áfricas, 2004). Endereço: Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária, São Paulo. Contato: centroto@usp.br
2 Habbé significa pagão na língua fulfulde, foi usado pelos Peul para designar a população que vivia no planalto e nas escarpas da falésia de Bandiagara. Na literatura, o nome Dogon foi utilizado pela primeira vez em 1907 por Desplagnes.
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Revista de Antropologia - USP
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