Negros Brasis
Ronaldo Vainfas
John Monteiro
Companhia das Letras, 300 págs
Um dos aspectos mais surpreendentes das ciências humanas produzidas no Brasil é o relativo silêncio dos historiadores em relação à questão indígena. Silêncio em tudo contrastante com o trabalho de antropólogos, sociólogos e etnólogos, brasileiros ou estrangeiros, desde há muito dedicados a estudar os índios em perspectiva etno-histórica. Bastaria citar, à guisa de exemplo, a magnífica obra de Alfred Métraux, autor, entre outros livros, de "A Religião dos Tupinambás", os estudos clássicos de Egon Schaden, o importantíssimo "A Organização Social dos Tupinambás", de Florestan Fernandes e, mais recentemente, os estudos de Eduardo Viveiros de Castro e de Manuela Carneiro da Cunha, organizadora da recente "História dos Índios no Brasil".
No campo dos historiadores, sem considerar os estudos novecentistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (e muitos historiadores do século passado, inclusive Varnhagen, detratavam muito os índios, apesar de estudar suas culturas e línguas), prevaleceu mesmo o silêncio. Entre as honrosas exceções figurariam autores como Capistrano de Abreu, que soube perceber a importância do índio no processo colonizatório e na formação cultural brasileira, e, como sempre, o grande Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo em seu "Caminhos e Fronteiras", recentemente reeditado pela Companhia das Letras. Dignos de menção são ainda o estudo clássico de Alexander Marchant, "Do Escambo à Escravidão" (anos 40) e o instigante livro de Luis Felipe Baeta Neves, "O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios", livro sobre as idéias e práticas missionárias dos jesuítas no século 16.
O certo, porém, é que os índios têm sido pouco estudados pela historiografia brasileira, a não ser como objeto, jamais como sujeito da nossa história. O índio como alvo da catequese jesuítica, o índio como feroz obstáculo ao avanço da colonização, o índio como mão-de-obra, eis as maneiras mais frequentes do tratamento da questão indígena pelos historiadores. Raramente se aventuram a estudar as culturas indígenas e quase nunca utilizam etnônimos (tupinambá, goitacá, aimoré etc.), preferindo abrigar-se na vaga expressão índio, palavra de óbvia origem colonialista.
O livro de John Monteiro, "Negros da Terra", se não rompe totalmente com esta postura reificadora predominante entre os historiadores, certamente se insurge contra o silêncio da historiografia e põe abaixo vários mitos e estereótipos nela consagrados acerca do papel desempenhado pelos índios na colonização do Brasil.
Baseado em tese de doutoramento defendida em 1985 na Universidade de Chicago, o livro é antes de tudo um sólido exemplo de pesquisa documental. Monteiro realmente devassou inúmeros arquivos nacionais, sobretudo de São Paulo, coligindo vastíssima documentação cartorária, eclesiástica e epistolar. Pesquisou também importantes arquivos estrangeiros, sobretudo em Portugal (o Arquivo Ultramarino, a Biblioteca da Ajuda) e na Itália, a exemplo do Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma. E não faltou, nem poderia faltar, o exame da numerosa crônica e tratadística impressa sobre seu tema de investigação.
"Negros da Terra" é, pois, um trabalho consistente, muito atualizado em termos bibliográficos e dotado, ainda, de um título criativo. Negros da terra ou negros brasis eram, com efeito, expressões utilizadas pelos colonos luso-brasileiros desde o século 16 para designar genericamente as várias nações indígenas, diferenciando-as das africanas, então denominadas, com igual generalidade, de negros da Guiné. Trata-se, a bem dizer, de nomenclatura colonialista, mas que serve perfeitamente aos objetivos do autor.
O livro se dedica exatamente a resgatar o papel central que os índios desempenharam na história de São Paulo durante os séculos 16 e 17, tempo em que a região nada mais era do que uma periferia da América Portuguesa. John Monteiro, começa, assim, a desmistificar a idéia de que o bandeirantismo paulista tenha contribuído decisivamente para o alargamento territorial e povoamento do interior brasileiro. "Muito pelo contrário: ao invés de contribuírem diretamente para a ocupação do interior pelo colonizador, as incursões paulistas concorreram antes para a devastação de inúmeros povos nativos." O bandeirantismo foi, na realidade, uma ação tragicamente despovoadora.
Profissão de fé feita à partida, Monteiro vai derrubando, uma a uma, com grande perícia e apoio documental, antigas "verdades consagradas". Demonstra, por exemplo, que a verdadeira riqueza do sertão eram mesmo os índios, objeto da cobiça dos colonos ou do afã salvacionista missionário que, aliás, não excluía a utilização do trabalho nativo nos aldeamentos. O trabalho cativo ou administrado dos índios relacionou-se, porém, como indica o autor, com um "projeto coletivo de desenvolvimento", sobretudo no governo de D. Francisco de Sousa (1591-1601). Dedicou-se o governador à busca de metais e pedras preciosas, busca estimulada pela lenda tupiniquim de Itaberaba-açu, "uma serra resplandecente que, para muitos, localizava-se nas cabeceiras do rio São Francisco".
Mais que isso, D. Francisco pretendia articular os setores de mineração, agricultura e indústria, todos sustentados por trabalhadores indígenas, inspirando-se talvez no modelo da América Hispânica. Tudo isto malogrou, à falta do achamento de uma Potosi em terra brasílica e face ao crescimento da lavoura comercial. O cativeiro indígena, no entanto, seguiu firme, fornecendo a base de trabalhadores para a economia regional numa época em que, no litoral, a escravidão africana ganhava vulto.
Monteiro acompanha a expansão bandeirante até o Guairá, examinando a competição entre luso-brasileiros, paraguaios e jesuítas pela mão-de-obra indígena. E não deixa de relativizar, a propósito, a idéia de que os paulistas teriam investido contra as reduções porque elas ofereciam mão-de-obra já disciplinada pelos jesuítas. Na verdade, mostra o autor que os portugueses se interessavam pelos Guarani desde o século 16, justamente pela notícia que tinham de sua eficiente agricultura. Não é de surpreender, portanto, que os paulistas assaltassem prioritariamente as aldeias não controladas pelos jesuítas, mesmo depois da chegada dos padres ao Guairá.
Capítulo muito inovador do livro é, sem dúvida, o intitulado "Celeiro do Brasil". É nele que nosso historiador põe abaixo a imagem de uma escravidão indígena irrelevante no século 17, bem como a de uma capitania de São Paulo absolutamente pobre e quase isolada dos setores de ponta da colônia. Nas palavras do autor, "o surgimento de uma agricultura comercial no planalto, sobretudo com a produção do trigo, pode explicar muito da constituição da sociedade colonial na região, uma vez que a presença de um número elevado de cativos índios possibilitou a articulação da economia do planalto com a do litoral, redundando, ao mesmo tempo, na composição desigual da riqueza na sociedade local".
"Negros da Terra" é, por tudo isso, livro de grande importância. Ilumina menos, a bem da verdade, o que significa o colonialismo e o cativeiro para os próprios índios do que os sentidos do bandeirantismo e o funcionamento ancilar da economia paulista apoiada no trabalho dos nativos. Mas não deixa de apontar, com máxima ênfase, o que foi o "despovoamento" perpetrado pela expansão bandeirante, heróica para uns, absolutamente trágica para as populações locais.
RONALDO VAINFAS é doutor em história pela USP e professor titular do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Folha de São Paulo
Ronaldo Vainfas
John Monteiro
Companhia das Letras, 300 págs
Um dos aspectos mais surpreendentes das ciências humanas produzidas no Brasil é o relativo silêncio dos historiadores em relação à questão indígena. Silêncio em tudo contrastante com o trabalho de antropólogos, sociólogos e etnólogos, brasileiros ou estrangeiros, desde há muito dedicados a estudar os índios em perspectiva etno-histórica. Bastaria citar, à guisa de exemplo, a magnífica obra de Alfred Métraux, autor, entre outros livros, de "A Religião dos Tupinambás", os estudos clássicos de Egon Schaden, o importantíssimo "A Organização Social dos Tupinambás", de Florestan Fernandes e, mais recentemente, os estudos de Eduardo Viveiros de Castro e de Manuela Carneiro da Cunha, organizadora da recente "História dos Índios no Brasil".
No campo dos historiadores, sem considerar os estudos novecentistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (e muitos historiadores do século passado, inclusive Varnhagen, detratavam muito os índios, apesar de estudar suas culturas e línguas), prevaleceu mesmo o silêncio. Entre as honrosas exceções figurariam autores como Capistrano de Abreu, que soube perceber a importância do índio no processo colonizatório e na formação cultural brasileira, e, como sempre, o grande Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo em seu "Caminhos e Fronteiras", recentemente reeditado pela Companhia das Letras. Dignos de menção são ainda o estudo clássico de Alexander Marchant, "Do Escambo à Escravidão" (anos 40) e o instigante livro de Luis Felipe Baeta Neves, "O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios", livro sobre as idéias e práticas missionárias dos jesuítas no século 16.
O certo, porém, é que os índios têm sido pouco estudados pela historiografia brasileira, a não ser como objeto, jamais como sujeito da nossa história. O índio como alvo da catequese jesuítica, o índio como feroz obstáculo ao avanço da colonização, o índio como mão-de-obra, eis as maneiras mais frequentes do tratamento da questão indígena pelos historiadores. Raramente se aventuram a estudar as culturas indígenas e quase nunca utilizam etnônimos (tupinambá, goitacá, aimoré etc.), preferindo abrigar-se na vaga expressão índio, palavra de óbvia origem colonialista.
O livro de John Monteiro, "Negros da Terra", se não rompe totalmente com esta postura reificadora predominante entre os historiadores, certamente se insurge contra o silêncio da historiografia e põe abaixo vários mitos e estereótipos nela consagrados acerca do papel desempenhado pelos índios na colonização do Brasil.
Baseado em tese de doutoramento defendida em 1985 na Universidade de Chicago, o livro é antes de tudo um sólido exemplo de pesquisa documental. Monteiro realmente devassou inúmeros arquivos nacionais, sobretudo de São Paulo, coligindo vastíssima documentação cartorária, eclesiástica e epistolar. Pesquisou também importantes arquivos estrangeiros, sobretudo em Portugal (o Arquivo Ultramarino, a Biblioteca da Ajuda) e na Itália, a exemplo do Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma. E não faltou, nem poderia faltar, o exame da numerosa crônica e tratadística impressa sobre seu tema de investigação.
"Negros da Terra" é, pois, um trabalho consistente, muito atualizado em termos bibliográficos e dotado, ainda, de um título criativo. Negros da terra ou negros brasis eram, com efeito, expressões utilizadas pelos colonos luso-brasileiros desde o século 16 para designar genericamente as várias nações indígenas, diferenciando-as das africanas, então denominadas, com igual generalidade, de negros da Guiné. Trata-se, a bem dizer, de nomenclatura colonialista, mas que serve perfeitamente aos objetivos do autor.
O livro se dedica exatamente a resgatar o papel central que os índios desempenharam na história de São Paulo durante os séculos 16 e 17, tempo em que a região nada mais era do que uma periferia da América Portuguesa. John Monteiro, começa, assim, a desmistificar a idéia de que o bandeirantismo paulista tenha contribuído decisivamente para o alargamento territorial e povoamento do interior brasileiro. "Muito pelo contrário: ao invés de contribuírem diretamente para a ocupação do interior pelo colonizador, as incursões paulistas concorreram antes para a devastação de inúmeros povos nativos." O bandeirantismo foi, na realidade, uma ação tragicamente despovoadora.
Profissão de fé feita à partida, Monteiro vai derrubando, uma a uma, com grande perícia e apoio documental, antigas "verdades consagradas". Demonstra, por exemplo, que a verdadeira riqueza do sertão eram mesmo os índios, objeto da cobiça dos colonos ou do afã salvacionista missionário que, aliás, não excluía a utilização do trabalho nativo nos aldeamentos. O trabalho cativo ou administrado dos índios relacionou-se, porém, como indica o autor, com um "projeto coletivo de desenvolvimento", sobretudo no governo de D. Francisco de Sousa (1591-1601). Dedicou-se o governador à busca de metais e pedras preciosas, busca estimulada pela lenda tupiniquim de Itaberaba-açu, "uma serra resplandecente que, para muitos, localizava-se nas cabeceiras do rio São Francisco".
Mais que isso, D. Francisco pretendia articular os setores de mineração, agricultura e indústria, todos sustentados por trabalhadores indígenas, inspirando-se talvez no modelo da América Hispânica. Tudo isto malogrou, à falta do achamento de uma Potosi em terra brasílica e face ao crescimento da lavoura comercial. O cativeiro indígena, no entanto, seguiu firme, fornecendo a base de trabalhadores para a economia regional numa época em que, no litoral, a escravidão africana ganhava vulto.
Monteiro acompanha a expansão bandeirante até o Guairá, examinando a competição entre luso-brasileiros, paraguaios e jesuítas pela mão-de-obra indígena. E não deixa de relativizar, a propósito, a idéia de que os paulistas teriam investido contra as reduções porque elas ofereciam mão-de-obra já disciplinada pelos jesuítas. Na verdade, mostra o autor que os portugueses se interessavam pelos Guarani desde o século 16, justamente pela notícia que tinham de sua eficiente agricultura. Não é de surpreender, portanto, que os paulistas assaltassem prioritariamente as aldeias não controladas pelos jesuítas, mesmo depois da chegada dos padres ao Guairá.
Capítulo muito inovador do livro é, sem dúvida, o intitulado "Celeiro do Brasil". É nele que nosso historiador põe abaixo a imagem de uma escravidão indígena irrelevante no século 17, bem como a de uma capitania de São Paulo absolutamente pobre e quase isolada dos setores de ponta da colônia. Nas palavras do autor, "o surgimento de uma agricultura comercial no planalto, sobretudo com a produção do trigo, pode explicar muito da constituição da sociedade colonial na região, uma vez que a presença de um número elevado de cativos índios possibilitou a articulação da economia do planalto com a do litoral, redundando, ao mesmo tempo, na composição desigual da riqueza na sociedade local".
"Negros da Terra" é, por tudo isso, livro de grande importância. Ilumina menos, a bem da verdade, o que significa o colonialismo e o cativeiro para os próprios índios do que os sentidos do bandeirantismo e o funcionamento ancilar da economia paulista apoiada no trabalho dos nativos. Mas não deixa de apontar, com máxima ênfase, o que foi o "despovoamento" perpetrado pela expansão bandeirante, heróica para uns, absolutamente trágica para as populações locais.
RONALDO VAINFAS é doutor em história pela USP e professor titular do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Folha de São Paulo
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