quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Nada Além da Liberdade


Doutora em História - FFLCH/USP
Maria Helena Pereira Toledo Machado


FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. A Emancipação e seu Legado. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Apresentação de John M. Monteiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 183 p

Ao comentar a situação do liberto no Sul dos Estados Unidos no período imediatamente posterior à Guerra Civil, o ex-general confederado Robert Richardson afirmou: "Os escravos emancipados não têm nada, porque nada além da liberdade foi dado a eles." Em Nada Além da Liberdade, o historiador norte-americano Eric Foner explora os múltiplos significados atribuídos pelos trabalhadores negros à Emancipação, esta entendida como um amplo processo de reorganização das forças políticas e econômicas, na qual tanto fazendeiros, quanto libertos desempenharam papéis históricos relevantes. O enfoque fundamental deste livro recai na atuação política dos libertos, questão que, apesar do recente surto de trabalhos sobre a escravidão e a abolição, tem sido pouco desenvolvida pela historiografia. Neste sentido, a proposta central de Foner é recuperar a resistência do trabalhador negro frente ao processo de proletarização, em curso nas sociedades pós-Emancipação.

Os três capítulos que compõem o corpo do livro, embora preparados originalmente como palestras com forte tom ensaístico, expressam antes de mais nada uma reflexão original sobre o tema, fundamentada numa pesquisa bastante aprofundada. Cabe ressaltar a preocupação do Autor em enquadrar sua discussão num contexto mais amplo, tomando como pontos de referência a historiografia sobre o Caribe e a África. Embora o contexto brasileiro não tenha sido especificamente enfocado por Foner, Nada Além da Liberdade oferece importantes subsídios para o redimensionamento do assim chamado processo de transição para o trabalho livre na sociedade brasileira, à medida em que vem de encontro à preocupação de alguns historiadores brasileiros em recolocar a problemática da abolição sob o ponto de vista do liberto.

Sob o título "A Anatomia da Emancipação", o primeiro ensaio que compõe o presente volume, busca estabelecer os nexos entre as diferentes emancipações, que tiveram curso nos primeiros três quartéis do século XIX, tanto no Caribe inglês e francês, quanto na África oriental e austral, enveredando pela história comparativa. Aqui o objetivo do Autor é demonstrar a forma pela qual as experiências pós-abolição destas regiões ressoaram no Sul dos EUA, criando, tanto entre fazendeiros, quanto entre libertos, um repertório de idéias, conceitos e temores que informaram fortemente os comportamentos políticos destes grupos.

Segundo Foner, a Emancipação colocou a necessidade de criação de um mercado de trabalho proletarizado do qual dependia a própria sobrevivência das classes de fazendeiros e das economias agroexportadoras, exigindo um amplo processo de reorganização das forças políticas locais. Neste aspecto, sublinha o Autor, que não foi apenas o binômio terra/trabalho que condicionou o destino do trabalhador liberto pois, a capacidade das elites proprietárias de implementar, a partir do Estado, leis coercitivas e políticas protetoras da grande propriedade - tal como a imigração de trabalhadores estrangeiros - definiram o maior ou menor êxito destas na constituição de uma força de trabalho dependente. Neste sentido, a partir do ponto de vista contrário, o surgimento de uma classe camponesa de libertos, relativamente autônomos e resistentes ao assalariamento pode emergir tanto de articulações políticas deste grupo, quanto dos conflitos entre fazendeiros e ex-escravos em torno do direito de propriedade e do conceito de liberdade, enquanto legados da escravidão. Conflitos estes que exprimiam a resistência com que o trabalhador negro livre encarava a retirada de certos direitos costumeiros de propriedade, que ele havia conhecido enquanto escravo - como o direito às roças - e a tentativa de reconstituição familiar, que se manifestava na retirada das mulheres e crianças do trabalho intensivo dos campos agroexportadores.

Nos dois ensaios seguintes, "A Política da Liberdade" e "O Trabalhador Emancipado", o Autor estuda particularmente o processo de emancipação do Sul dos Estados Unidos e a especificidade da experiência da Reconstrução americana em suas diferentes fases. Pois, se a análise do processo americano autoriza o Autor a traçar aproximações baseadas na constatação que em toda parte a problemática da emancipação girou em torno, por um lado, da questão do controle do trabalho e acesso aos recursos econômicos e, por outra, no desejo dos libertos de tornarem-se proprietários de terras, enquanto fonte de autonomia, esta mesma análise sugere que, no contexto americano, os conflitos entre fazendeiros e escravos expressaram-se de forma originai.

Neste sentido, ressalta Foner que, embora os confrontos entre trabalhadores e proprietários, sobretudo das terras baixas da Georgia e Carolina do Sul, tenham se desenrolado eminentemente nas fazendas, estes mesmos conflitos foram levados à arena política. De fato, ao menos no período da Reconstrução radical, conceitos políticos como o de república, democracia e igualdade foram encampados pelos libertos, que deles se utilizaram para resistir ao processo de assalariamento, através de uma militância política engajada num projeto reformista favorável às pretensões de independência e autonomia dos libertos frente a grande propriedade.

Assim, nas regiões em que o sistema de produção monocultor não resistiu às vicissitudes da guerra, os libertos reivindicaram o direito de usufruir dos frutos de seu trabalho, tornando-se pequenos proprietários de glebas, sob os auspícios do Estado. Por outro lado, nas áreas em que as fazendas puderam se recompor e os libertos foram encaminhados enquanto mão-de-obra assalariada, assistiu-se à eclosão de movimentos trabalhistas - como o caso das greves dos trabalhadores negros das fazendas de arroz da Carolina do Sul, assunto enfocado no terceiro capítulo, que expressavam a resistência desta mão-de-obra em se colocar na total dependência do trabalho por salários. Embora, constate Foner que o projeto político dos libertos tenha fracassado e o processo de Reconstrução tenha sido finalmente levado a cabo pela classe de fazendeiros, um grande número de libertos foi capaz de resistir à proletarização, tanto tornando-se pequenos proprietários, quanto adequando-se a formas intermediárias como parceiros e meeiros em antigas fazendas monocultoras. O que assevera Foner é que, se enquanto projeto político, a emergência de uma classe camponesa de libertos foi frustrada, pelo menos uma parcela de libertos foi capaz de sobreviver às margens do assalariamento.

Reconstituindo o complexo processo de reajustes e conflitos que perpassaram as sociedades pós-abolição, a partir do ponto de vista da economia política, bem como ressaltando que todas estas experiências locais se entrelaçaram, conformando um repertório ideológico frente ao qual tanto as camadas dominantes quantos os trabalhadores negros moldaram suas estratégias de luta, o ensaio de Foner pode ser extremamente sugestivo, quando aplicado à realidade brasileira. Afinal de contas, o fato de que as elites nacionais, ao enfrentarem a problemática da transição, puderam se reportar a uma longa bagagem de experiência de controle da mão-de-obra emancipada, realizada em outras regiões, bem como estavam cientes dos perigos sociais inerentes a estes processos pode ter tido importante impacto na constituição das políticas emancipacionistas e imigrantistas.

Por tudo isso, Nada Além da Liberdade torna-se uma leitura instigante. A medida em que sugere a recolocação do problema da emancipação nos quadros de uma experiência cumulativa, vivenciada pelas sociedades escravistas das Américas, Foner propõe um novo campo de reflexão aos estudiosos brasileiros.

Revista de História - USP

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