Marcelo Moura Mello
Doutorando do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc. 370pp.
Mocambo é um livro alheio a rótulos. Trata-se de um ponto de passagem obrigatório para pensar as chamadas comunidades remanescentes de quilombos. A vigorosa reflexão do autor situa-se nas fronteiras da antropologia e da história, entre saberes acadêmicos e aplicados, percorrendo a etnologia indígena e os estudos afro-brasileiros. A pesquisa que deu origem à obra transita entre espaços e tempos, cobrindo o período no qual foi elaborado o laudo de identificação do grupo estudado, as pesquisas de campo durante o doutorado e as reuniões relacionadas aos remanescentes de quilombos acompanhadas pelo autor.
Ao enfocar a trajetória do Mocambo, povoado situado às margens do rio São Francisco, no Sergipe, José Maurício Arruti busca descrever o percurso sinuoso, marcado por continuidades e descontinuidades, da identificação de remanescentes de quilombos por parte de membros desse grupo. Aliás, os termos empregados em todo o livro (processo, sinuoso, descontínuo, jogos de fuga e captura etc.) referem-se às próprias características do objeto da pesquisa: longe de naturalizar o contexto ou atribuir rigidez à identidade no Mocambo, a etnografia tem um "caráter nômade", visando compreender o grupo "por meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenômenos distribuídos por diferentes locais, escalas e tempos" (Arruti 2006:35). Seguindo Michael Pollak, o autor afirma que não se trata de tomar os fatos sociais como coisas, mas sim de perguntar como eles se tornam coisas. Nessa perspectiva, a alteridade é tomada como um "produto social e histórico" constituído por meio de "linhas, cortes, nervuras, dobras, diferença e identidade" (Arruti 2006:26).
Em termos teóricos, Arruti toma a teoria da etnicidade simultaneamente como matéria incorporada e como "formulação nativa" a ser "objetivada" (2006:38), visto que ela ocupa papel central nas definições e reflexões sobre os quilombolas. Segundo o autor, a ênfase de Barth na auto-atribuição e na atribuição pelos outros é fundamental em termos políticos, mas deixa de avançar no plano teórico ao não dar conta do fenômeno de passagem entre a adstrição étnica e a adesão a uma categoria genérica e englobante, como remanescente de quilombo, por exemplo. O conceito de processo de territorialização, proposto por João Pacheco de Oliveira, fornece, em parte, a solução para o problema, mas pode resultar numa postura que concebe os grupos étnicos apenas da perspectiva do Estado. Com o intuito de superar essas visões, as contribuições da teoria do reconhecimento, notadamente aquelas formuladas por Axel Honneth e Charles Taylor, são apropriadas. Ambos investigam simultaneamente a dimensão da formação do sujeito em luta por reconhecimento e as condições de apresentação e recepção das demandas desse sujeito na esfera pública. Disso resulta que dois processos devem ser diferenciados analiticamente: um relativo ao reconhecimento do grupo na esfera pública e outro concernente à auto-identificação de acordo com o novo enquadramento territorial. Esse "modelo descritivo das etnogêneses" (Arruti 2006:45) refere-se a quatro processos indissociáveis: nominação, identificação, reconhecimento e territorialização.
A primeira parte analisa o "processo de nominação", ou seja, o movimento de instituição de uma categoria jurídica e administrativa que institui uma população heterogênea, com base em determinadas características comuns, como sujeito de direitos e deveres coletivos. Três capítulos explicitam as disputas em torno da palavra autorizada sobre os remanescentes de quilombos, dando especial atenção à gênese dos conceitos antropológicos mobilizados na compreensão – e nominação – desses grupos. Longe de reconstruir a história progressiva de refinamento de conceitos, Arruti enfoca as "conversões conceituais" como um estado das lutas sociais, reconhecendo os quilombos como fenômenos socialmente construídos não apenas no plano das relações étnicas, mas também no plano dos discursos sobre essas relações. Delimita-se, aqui, um plano teórico bourdivino de uma sociologia da sociologia, que visa reapropriar problematicamente um objeto construído com a ajuda de antropólogos.
A instituição do Mocambo como sujeito público de direitos, em nível local e nacional, é analisada na segunda parte do livro, que enfoca o movimento de passagem do desconhecimento à constatação pública de uma situação de desrespeito que atinge essa coletividade. Esse "processo de reconhecimento" deu-se por meio da atuação de diversos mediadores, entre eles a Comissão Pastoral da Terra, e da correlação, por parte dos mocambeiros, com a experiência precedente dos Xocós, grupo indígena vizinho ao Mocambo em processo de etnogênese desde a década de 80. Nessa parte, e no decorrer do livro, a imbricação de Xocós com mocambeiros, articulada à experiência de pesquisa de Arruti com populações indígenas, permite-lhe transpor tradições disciplinares.
O privilégio dado à descrição dos significados relativos à identificação quilombola para os atuais moradores do local – bem como a influência dos mediadores na instituição dos conflitos locais como expressões de um desrespeito exemplar – possibilita ao autor apontar a dimensão da formação do sujeito em luta por reconhecimento a partir das condições de apresentação e recepção dessas demandas na esfera pública. Foi nesse jogo entre atores locais e extra-locais que o laudo de identificação do Mocambo, elaborado por Arruti, foi definido. O argumento que fundamentou o reconhecimento oficial do Mocambo não postulou uma comprovação objetiva e documentalmente sustentada da identidade grupal. Baseou-se, ao contrário, na tentativa de explicitar os agenciamentos contínuos e descontínuos que marcaram a identidade dos sujeitos da pesquisa. A reconstituição da trajetória histórica do Mocambo estabeleceu um diálogo entre documentos escritos e relatos orais que não tentou preencher as lacunas de uma fonte com auxílio de outra, mas sim uma perspectiva a partir da qual é possível "destextualizar" os documentos escritos (Arruti 2006:193).
O processo de reconhecimento, ao instituir uma situação de desrespeito na esfera pública, tem por correlato a constatação do caráter coletivo das situações de desrespeito que atingiram os sujeitos que lutam por reconhecimento, originando o que Arruti denominou de processo de identificação, terceira parte do livro. No caso do Mocambo, essa constatação implicou um trabalho social de reinvestimento de significados sobre a memória local no qual um "ethos do silêncio" (Arruti 2006:212) progressivamente cedeu lugar a uma valorização do passado e do ato de lembrar. A situação etnográfica do Mocambo conduziu a distintas formas de abordagem da memória e das narrativas locais. As conversas e diálogos entretidos nos passeios realizados com os sujeitos da pesquisa fizeram com que o autor progressivamente percebesse o caráter espacializado da memória, em que o território figura como "marcador memorial" do passado (Arruti 2006:227). Outro aspecto fundamental é a opção teórica e metodológica de Arruti: memória e cultura são tomadas não como textos, mas como processos. No trabalho com a memória, os moradores do Mocambo não evocam um passado acabado; participam ativamente do "processo de produção da memória", motivados pelas "provocações" das perguntas dos agentes externos (Arruti 2006:218), incluindo as indagações do etnógrafo.
Arruti não teve a seu dispor uma memória acabada e pronta, ou uma estrutura de pensamento e relações sociais, mas sim um "diálogo aberto" (Arruti 2006:231) com a memória – daí, mais uma vez, o caráter nômade da etnografia. O fato de a memória dos mocambeiros ter sido reelaborada concomitantemente à presença do autor não implica a tese de que as lembranças são meramente inventadas ou tributárias da imaginação etnográfica. Porém, parece haver uma preocupação excessiva em demonstrar o caráter fluido da memória, deixando em segundo plano as narrativas dos mocambeiros (não à toa, nenhuma narrativa é sequer transcrita). Eis aqui um solo fértil, não plenamente explorado por Arruti, para pensar a dimensão moral da luta por reconhecimento. A atribuição de novos significados aos eventos passados é um ato constitutivo da memória, mas caberia perguntar quais dimensões de justiça já estão presentes nessas narrativas e como os novos direitos advindos da identificação quilombola são interpretados no quadro das experiências vividas.
A quarta e última parte do livro enfoca os novos ordenamentos territoriais no Mocambo decorrentes da identificação/reconhecimento quilombola. Valendo-se do conceito de "processo de territorialização", Arruti busca analisar o conjunto de profundas mudanças no funcionamento das instituições e manifestações culturais decorrentes da atribuição de uma base territorial fixa e juridicamente definida. As tramas e os impasses acerca da identificação quilombola são analisados em minúcia pelo autor, atento às sutilezas, especificidades e variabilidades dos distintos posicionamentos dos integrantes do grupo, traduzidas em noções como "estar na luta" e "se assumir", por exemplo. Esses impasses e a gestão dos novos ordenamentos territoriais passaram pela associação de moradores local. O fato de a associação ser uma obrigação legal dos quilombolas e funcionar como "órgão regulador" dos conflitos e da gestão territorial leva Arruti a concluir que a associação "reproduziu os caracteres básicos" do Estado e é o "nascimento de uma minúscula variante do Estado Nacional no Mocambo" (Arruti 2006:322). Essas considerações contrariam, em parte, o preceito teórico arrogado pelo autor, pois evidenciam seu pendor para teorias centradas no papel do Estado nos processos de identificação étnica. Sem dúvida, a etnicidade é situacionalmente definida e o Estado assume aí um papel incontornável, mas corre-se o risco de iniciar e findar a investigação no Estado, perdendo de vista nuanças das percepções dos grupos em busca de reconhecimento.
Apesar de as questões a respeito das comunidades remanescentes de quilombos serem relativamente recentes e sinuosas – algo, aliás, demonstrado com muita propriedade pelo autor – Mocambo pode ser considerado um livro-síntese, pois enfrenta vários dos problemas em pauta sobre o tema e procede a um balanço crítico do que foi produzido até o momento. Arruti fornece interpretações originais para problemas permeados por ambivalências e contradições, redimensionando – e até mesmo inaugurando – uma série de questões, como a descrição das relações entre indígenas e quilombolas. Trata-se de uma obra que transita entre fronteiras e vai além delas, adentrando terrenos pantanosos repletos de questões controversas frequentemente dimensionadas com base em lugares-comuns e/ou definições operacionais.
Revista Mana
Doutorando do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc. 370pp.
Mocambo é um livro alheio a rótulos. Trata-se de um ponto de passagem obrigatório para pensar as chamadas comunidades remanescentes de quilombos. A vigorosa reflexão do autor situa-se nas fronteiras da antropologia e da história, entre saberes acadêmicos e aplicados, percorrendo a etnologia indígena e os estudos afro-brasileiros. A pesquisa que deu origem à obra transita entre espaços e tempos, cobrindo o período no qual foi elaborado o laudo de identificação do grupo estudado, as pesquisas de campo durante o doutorado e as reuniões relacionadas aos remanescentes de quilombos acompanhadas pelo autor.
Ao enfocar a trajetória do Mocambo, povoado situado às margens do rio São Francisco, no Sergipe, José Maurício Arruti busca descrever o percurso sinuoso, marcado por continuidades e descontinuidades, da identificação de remanescentes de quilombos por parte de membros desse grupo. Aliás, os termos empregados em todo o livro (processo, sinuoso, descontínuo, jogos de fuga e captura etc.) referem-se às próprias características do objeto da pesquisa: longe de naturalizar o contexto ou atribuir rigidez à identidade no Mocambo, a etnografia tem um "caráter nômade", visando compreender o grupo "por meio dos fluxos que o atravessam e que o ligam a agentes e fenômenos distribuídos por diferentes locais, escalas e tempos" (Arruti 2006:35). Seguindo Michael Pollak, o autor afirma que não se trata de tomar os fatos sociais como coisas, mas sim de perguntar como eles se tornam coisas. Nessa perspectiva, a alteridade é tomada como um "produto social e histórico" constituído por meio de "linhas, cortes, nervuras, dobras, diferença e identidade" (Arruti 2006:26).
Em termos teóricos, Arruti toma a teoria da etnicidade simultaneamente como matéria incorporada e como "formulação nativa" a ser "objetivada" (2006:38), visto que ela ocupa papel central nas definições e reflexões sobre os quilombolas. Segundo o autor, a ênfase de Barth na auto-atribuição e na atribuição pelos outros é fundamental em termos políticos, mas deixa de avançar no plano teórico ao não dar conta do fenômeno de passagem entre a adstrição étnica e a adesão a uma categoria genérica e englobante, como remanescente de quilombo, por exemplo. O conceito de processo de territorialização, proposto por João Pacheco de Oliveira, fornece, em parte, a solução para o problema, mas pode resultar numa postura que concebe os grupos étnicos apenas da perspectiva do Estado. Com o intuito de superar essas visões, as contribuições da teoria do reconhecimento, notadamente aquelas formuladas por Axel Honneth e Charles Taylor, são apropriadas. Ambos investigam simultaneamente a dimensão da formação do sujeito em luta por reconhecimento e as condições de apresentação e recepção das demandas desse sujeito na esfera pública. Disso resulta que dois processos devem ser diferenciados analiticamente: um relativo ao reconhecimento do grupo na esfera pública e outro concernente à auto-identificação de acordo com o novo enquadramento territorial. Esse "modelo descritivo das etnogêneses" (Arruti 2006:45) refere-se a quatro processos indissociáveis: nominação, identificação, reconhecimento e territorialização.
A primeira parte analisa o "processo de nominação", ou seja, o movimento de instituição de uma categoria jurídica e administrativa que institui uma população heterogênea, com base em determinadas características comuns, como sujeito de direitos e deveres coletivos. Três capítulos explicitam as disputas em torno da palavra autorizada sobre os remanescentes de quilombos, dando especial atenção à gênese dos conceitos antropológicos mobilizados na compreensão – e nominação – desses grupos. Longe de reconstruir a história progressiva de refinamento de conceitos, Arruti enfoca as "conversões conceituais" como um estado das lutas sociais, reconhecendo os quilombos como fenômenos socialmente construídos não apenas no plano das relações étnicas, mas também no plano dos discursos sobre essas relações. Delimita-se, aqui, um plano teórico bourdivino de uma sociologia da sociologia, que visa reapropriar problematicamente um objeto construído com a ajuda de antropólogos.
A instituição do Mocambo como sujeito público de direitos, em nível local e nacional, é analisada na segunda parte do livro, que enfoca o movimento de passagem do desconhecimento à constatação pública de uma situação de desrespeito que atinge essa coletividade. Esse "processo de reconhecimento" deu-se por meio da atuação de diversos mediadores, entre eles a Comissão Pastoral da Terra, e da correlação, por parte dos mocambeiros, com a experiência precedente dos Xocós, grupo indígena vizinho ao Mocambo em processo de etnogênese desde a década de 80. Nessa parte, e no decorrer do livro, a imbricação de Xocós com mocambeiros, articulada à experiência de pesquisa de Arruti com populações indígenas, permite-lhe transpor tradições disciplinares.
O privilégio dado à descrição dos significados relativos à identificação quilombola para os atuais moradores do local – bem como a influência dos mediadores na instituição dos conflitos locais como expressões de um desrespeito exemplar – possibilita ao autor apontar a dimensão da formação do sujeito em luta por reconhecimento a partir das condições de apresentação e recepção dessas demandas na esfera pública. Foi nesse jogo entre atores locais e extra-locais que o laudo de identificação do Mocambo, elaborado por Arruti, foi definido. O argumento que fundamentou o reconhecimento oficial do Mocambo não postulou uma comprovação objetiva e documentalmente sustentada da identidade grupal. Baseou-se, ao contrário, na tentativa de explicitar os agenciamentos contínuos e descontínuos que marcaram a identidade dos sujeitos da pesquisa. A reconstituição da trajetória histórica do Mocambo estabeleceu um diálogo entre documentos escritos e relatos orais que não tentou preencher as lacunas de uma fonte com auxílio de outra, mas sim uma perspectiva a partir da qual é possível "destextualizar" os documentos escritos (Arruti 2006:193).
O processo de reconhecimento, ao instituir uma situação de desrespeito na esfera pública, tem por correlato a constatação do caráter coletivo das situações de desrespeito que atingiram os sujeitos que lutam por reconhecimento, originando o que Arruti denominou de processo de identificação, terceira parte do livro. No caso do Mocambo, essa constatação implicou um trabalho social de reinvestimento de significados sobre a memória local no qual um "ethos do silêncio" (Arruti 2006:212) progressivamente cedeu lugar a uma valorização do passado e do ato de lembrar. A situação etnográfica do Mocambo conduziu a distintas formas de abordagem da memória e das narrativas locais. As conversas e diálogos entretidos nos passeios realizados com os sujeitos da pesquisa fizeram com que o autor progressivamente percebesse o caráter espacializado da memória, em que o território figura como "marcador memorial" do passado (Arruti 2006:227). Outro aspecto fundamental é a opção teórica e metodológica de Arruti: memória e cultura são tomadas não como textos, mas como processos. No trabalho com a memória, os moradores do Mocambo não evocam um passado acabado; participam ativamente do "processo de produção da memória", motivados pelas "provocações" das perguntas dos agentes externos (Arruti 2006:218), incluindo as indagações do etnógrafo.
Arruti não teve a seu dispor uma memória acabada e pronta, ou uma estrutura de pensamento e relações sociais, mas sim um "diálogo aberto" (Arruti 2006:231) com a memória – daí, mais uma vez, o caráter nômade da etnografia. O fato de a memória dos mocambeiros ter sido reelaborada concomitantemente à presença do autor não implica a tese de que as lembranças são meramente inventadas ou tributárias da imaginação etnográfica. Porém, parece haver uma preocupação excessiva em demonstrar o caráter fluido da memória, deixando em segundo plano as narrativas dos mocambeiros (não à toa, nenhuma narrativa é sequer transcrita). Eis aqui um solo fértil, não plenamente explorado por Arruti, para pensar a dimensão moral da luta por reconhecimento. A atribuição de novos significados aos eventos passados é um ato constitutivo da memória, mas caberia perguntar quais dimensões de justiça já estão presentes nessas narrativas e como os novos direitos advindos da identificação quilombola são interpretados no quadro das experiências vividas.
A quarta e última parte do livro enfoca os novos ordenamentos territoriais no Mocambo decorrentes da identificação/reconhecimento quilombola. Valendo-se do conceito de "processo de territorialização", Arruti busca analisar o conjunto de profundas mudanças no funcionamento das instituições e manifestações culturais decorrentes da atribuição de uma base territorial fixa e juridicamente definida. As tramas e os impasses acerca da identificação quilombola são analisados em minúcia pelo autor, atento às sutilezas, especificidades e variabilidades dos distintos posicionamentos dos integrantes do grupo, traduzidas em noções como "estar na luta" e "se assumir", por exemplo. Esses impasses e a gestão dos novos ordenamentos territoriais passaram pela associação de moradores local. O fato de a associação ser uma obrigação legal dos quilombolas e funcionar como "órgão regulador" dos conflitos e da gestão territorial leva Arruti a concluir que a associação "reproduziu os caracteres básicos" do Estado e é o "nascimento de uma minúscula variante do Estado Nacional no Mocambo" (Arruti 2006:322). Essas considerações contrariam, em parte, o preceito teórico arrogado pelo autor, pois evidenciam seu pendor para teorias centradas no papel do Estado nos processos de identificação étnica. Sem dúvida, a etnicidade é situacionalmente definida e o Estado assume aí um papel incontornável, mas corre-se o risco de iniciar e findar a investigação no Estado, perdendo de vista nuanças das percepções dos grupos em busca de reconhecimento.
Apesar de as questões a respeito das comunidades remanescentes de quilombos serem relativamente recentes e sinuosas – algo, aliás, demonstrado com muita propriedade pelo autor – Mocambo pode ser considerado um livro-síntese, pois enfrenta vários dos problemas em pauta sobre o tema e procede a um balanço crítico do que foi produzido até o momento. Arruti fornece interpretações originais para problemas permeados por ambivalências e contradições, redimensionando – e até mesmo inaugurando – uma série de questões, como a descrição das relações entre indígenas e quilombolas. Trata-se de uma obra que transita entre fronteiras e vai além delas, adentrando terrenos pantanosos repletos de questões controversas frequentemente dimensionadas com base em lugares-comuns e/ou definições operacionais.
Revista Mana
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