segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A escravidão na economia política


A escravidão na economia política

Antonio Penalves Rocha
Departamento de História - FFLCH/USP


A tentativa de apreender o significado do anti-escravismo da Economia Política, no período que se estende dos meados do século XVIII ao primeiro terço do século seguinte, constitui o objeto deste trabalho. No entanto, ela será feita dando prioridade a um dos aspectos desse assunto; de fato, este trabalho faz parte de uma pesquisa bem mais ampla sobre o mesmo tema, onde as idéias dos principais economistas políticos europeus que trataram da escravidão foram analisadas. Nele houve a preocupação de enquadrá-las quer dentro da lógica que deu forma às grandes linhas do pensamento econômico de cada um dos diversos economistas do período considerado, quer em relação à escola econômica a que pertenceram 1. Nesse lugar, portanto, a análise foi feita no plano sincrônico, e uma análise diacrônica, que aqui será apresentada, constitui a conclusão geral do assunto.

O recurso à diacronia nasceu da convicção de que a análise sincrônica apresentava uma limitação metodológica, posto que, ao analisar as idéias de cada economista, ou Escola Econômica, ela permitia compreender apenas parcialmente o significado da condenação da Economia Política à escravidão. Com efeito, ao valorizar o plano sincrônico perdeu-se de vista um fato: princípios como os da carestía do trabalho escravo e da falta de motivação do escravo para o trabalho estiveram presentes nos textos que aparecem desde a escola fisiocrática até a economia política clássica dos anos 30 do século passado. A permanência destas idéias durante quase um século é um forte indício de que os princípios anti-escravistas dos economistas tiveram desdobramentos na história das idéias.

Com efeito, a persistência destes princípios ao longo da segunda metade do século XVIII e primeiro terço do século XIX indica que eles podem ser examinados como um dos elementos do universo ideológico do período em questão. Desta forma, ao estudá-los, será possível verificar que há uma outra dimensão da condenação da escravidão feita pela ciência econômica, que não se prende unicamente ao pensamento dos diferentes autores.

Para levar adiante o exame desta outra dimensão, devemos fixar um ponto de partida: a Economia Política constituiu-se como um importante elemento ideológico de uma nova ordem, que se instaurava em algumas partes do mundo ocidental desde os meados do século XVIII. Realmente, essa .ciência elaborou representações, acompanhando as transformações que se processavam na história do capitalismo, que atendiam determinados interesses sócio-econômicos. Certamente as opiniões anti-escravistas por ela formuladas seguiam o mesmo curso.

Mas, as representações anti-escravistas da ideologia econômica tiveram um desdobramento que também merece ser examinado: nascidas dentro da primeira ciência da sociedade do mundo moderno, foram consideradas como a análise científica pioneira da escravidão. Isto fez da Economia Política uma fonte, da qual muitos historiadores retiraram princípios para a análise dessa forma de organização do trabalho.

Sendo assim, idéias que surgiram em meio às mudanças do capitalismo passaram a ser consideradas como detentoras do segredo científico da escravidão, perdendo o status de representação das transformações do capitalismo europeu dos fins do século XVIII e princípios do XIX. Importa é que essas idéias foram transformadas em paradigmas pela historiografia da escravidão, a despeito de terem nascido dentro de uma ideologia que foi edificada há mais de dois séculos e que dava conta de um determinado mundo. Neste caso, portanto, a ideologia transformou-se numa memória da qual o conhecimento histórico continua retirando instrumentos para o exame da escravidão.

Em resumo, aqui será examinado o papel ocupado pelo anti-escravismo na ideologia econômica européia entre os meados do século XVIII e o primeiro terço do século XIX; em seguida, serão apenas apontados alguns exemplos da persistência da argumentação anti-escravista da economia política na historiografia.

Iniciemos verificando as relações entre a ideologia elaborada pela Economia Política e as transformações materiais que se processavam na Europa para, em seguida, encontrar o papel desempenhado pelo anti-escravismo dentro das idéias econômicas.

Não há dúvida alguma que a economia política espelhou as tendências das principais transformações sociais e econômicas que emergiam sobretudo na Inglaterra e França, a partir dos meados do século XVIII.

Realmente, os economistas tinham diante dos olhos sinais de transformações do mundo no qual viviam. Tomando tais sinais como referência, elaboraram uma teoria social fundamentada no papel que os interesses pessoais desempenhariam na constituição de uma sociedade mais rica e justa que as anteriores. Aos olhos desses homens, o advento de tal sociedade estava condicionado à existência da liberdade econômica, que seria regulada pelo mercado. Por este motivo essa ciência proclamava que não havia a necessidade de intervenção do Estado na economia, que as corporações deveriam dar lugar à livre-concorrência, que os monopólios de comércio - fossem eles internos ou internacionais - deveriam ser substituídos pelo livre-comércio e que os trabalhadores deveriam negociar livremente a sua força de trabalho. Os mecanismos reguladores do mercado se encarregariam de dar estabilidade a este novo mundo.

Estes princípios não tinham sido abstratamente idealizados pelos economistas, nem tampouco haviam sido criados para fins doutrinários, ao contrário, eles espelhavam mudanças econômicas, que timidamente começavam a se esboçar na vida material.

Porém, ao sistematizá-las no mundo das idéias, através do discurso científico, os economistas políticos não só legitimavam essas mudanças como também forneciam as representações necessárias para o combate aos remanescentes econômicos e sociais de uma ordem que poderia caducar. Desta forma, ao mesmo tempo que a economia política espelhava cientificamente as mudanças, as impulsionava, mantendo uma permanente conexão interativa com o aspecto da realidade que escolhera para retratar.

De qualquer modo, os economistas conservavam seus pés no chão ao espelharem algo que efetivamente sucedia, pois a liberdade econômica dera os seus primeiros sinais de vida não como representação, mas como algo que fora concretamente engendrado dentro do processo histórico.

Decisivamente: as mudanças do capitalismo não foram inventadas pela Economia Política. Enquanto ideologia - o que vale dizer, enquanto explicação de uma realidade, disponível à apropriação social para a defesa de interesses - a Economia Política caminhava pari passu com as mudanças do capitalismo e representava os interesses burgueses, organizando-os simbolicamente. Por esta razão Marx pôde procurar nela a "anatomia da sociedade civil", conforme enunciou no Prefácio do Contribuição à Crítica da Economia Política.

A Economia Política deu nomes aos sistemas que antecederam àquele que ela espelhava. Apontou também as opressões que lhes eram inerentes, em contraste com os benefícios que as mudanças trariam. Contudo, jamais se autodenominou capitalista, palavra esta que era estranha ao vocabulário dos economistas 2. Neste sentido revelava seu caráter ideológico, não por não se assumir como capitalista (apenas um nome), mas porque acreditava ter descoberto algo que estava contido na natureza - no caso natureza das sociedades humanas - cuja plena realização conduziria a humanidade ao fim da história.

Mas, no ideário dos economistas a liberdade só se concretizaria plenamente caso os trabalhadores fossem juridicamente proprietários da única mercadoria que o mundo lhes reservara: a força de trabalho.

Exatamente aqui começa a ser produzido o arrazoado anti-escravista da ciência econômica.

Quando os trabalhadores se tornassem proprietários da força de trabalho, poderiam negociá-la livremente no mercado, fazendo contratos que acabariam por beneficiar ambas as partes interessadas - compradores e vendedores de força de trabalho. E, mais que isso, se os trabalhadores se tornassem proprietários - ainda que somente em termos jurídicos - do próprio trabalho, estariam dadas as condições para que todas as outras coisas se transformassem em propriedades, o que vale dizer, em mercadorias; a liberdade econômica, portanto, estaria definitivamente estabelecida quando os trabalhadores pudessem negociar livremente a força de trabalho.

O mercado desempenharia um papel relevante nesta nova ordem, cabendo aos seus mecanismos a função de regular o processo econômico.

Não é por outro motivo, portanto, que os economistas políticos se opunham à escravidão e às formas de servidão feudal que ainda perduravam na Europa, posto que estas formas de organização econômica impediam que os trabalhadores dispusessem da força de trabalho como melhor lhes conviesse. Só quando prevalecesse o trabalho livre poderia ser implantada a plena liberdade econômica.

Até este ponto o pensamento dos fisiocratas e dos economistas clássicos dialogava com as tendências de mudanças que se manifestavam na história. As deduções sobre a necessidade da liberdade de trabalho seguiam o curso lógico das idéias de liberdade econômica. Realmente, era necessário combater a escravidão e a servidão para efeitos programáticos: a liberdade econômica só seria factível com a derrocada destas formas de apropriação do trabalho alheio.

Além do mais, quando a liberdade se concretizasse o mercado asseguraria, através dos mecanismo que lhe eram inerentes, a correta organização do quebra-cabeça a ser montado pelo ajuste entre os interesses individuais e coletivos. Assim sendo, haveria o aumento da riqueza social a ser distribuída a todos os homens, de acordo com a posição que ocupassem na produção desta mesma riqueza.

Extintas a escravidão e a servidão e compatibilizados os interesses individuais e coletivos, a harmonia social estaria instaurada, posto que não existiria motivo algum para que os trabalhadores livres se opusessem aos seus patrões, tendo em conta que, como Say argumentou, haveria também os "lucros do operário".

Precisamente neste ponto, a economia política já não representava mais os anseios imediatos da burguesia: tais anseios concentravam-se na liberdade econômica, que deveria garantir fluência aos negócios e aumento dos lucros; se a harmonia social aparecesse seria bem-vinda, mas essa não era a prioridade dos capitalistas.

É em razão desse sonho de harmonia social que os economistas hostilizaram a escravidão.

Para que tal afirmação se torne bastante clara, lembremos que o projeto de harmonia social surge num momento que a economia política já não "falava" do universo concreto que indicava tendências de predomínio da liberdade econômica, mas fazia projeções sobre uma sociedade futura que iria emergir sob o signo da harmonia.

Com efeito, tal projeto foi formulado num ponto que a economia política começou a vislumbrar um futuro e deixou de representar simbolicamente o novo sistema econômico e social que começara a dar seus primeiros sinais de vida. Dessa maneira, a harmonia social, projetada pelos economistas, era algo a se realizar e seria o fruto das liberdades econômicas; o fim da escravidão era a condição sine qua non para que isso ocorresse.

O que realmente importa é que no projeto da harmonia social, que nasceria da teia tecida pela livre realização dos interesses pessoais, tanto a fisiocracia como a economia política clássica edificavam uma sociedade ideal, que levaria a humanidade ao fim da história; sendo assim, a ciência penetrava no terreno do pensamento utópico.

Refaçamos o caminho que foi percorrido para que ela chegasse até a utopia. A economia política processou certos dados do capitalismo, obtidos empiricamente, e os reproduziu no mundo das idéias, apregoando a superioridade da liberdade econômica; contudo, no que toca a esta liberdade, havia um topos que era dado pela história - as transformações do capitalismo - para que tal princípio fosse simbolicamente transformado em algo "natural".

Partindo deste topos, o pensamento dos economistas orientou-se em direção a um futuro, repleto de harmonia social e econômica, aonde não poderiam existir nem escravos nem servos, mas tão-somente trabalhadores livres. Estes seriam cooperativos, motivados para o trabalho, frugais e parcimoniosos na administração dos seus ganhos e, finalmente, conscientes do papel que lhes caberia como criadores das riquezas.

Para que a humanidade tivesse acesso a esse novo mundo, era necessário denunciar, em termos científicos, o caráter nocivo das formas de trabalho que estavam sujeitas à coerção externa, razão pela qual a escravidão e a servidão feudal foram igualadas por quase todos economistas.

Em resumo, era em função de uma utopia que os economistas clássicos combatiam as formas "opressivas" de trabalho, sendo a escravidão a sua mais bem acabada expressão. E era por essa mesma razão que a miséria do operariado europeu começava a chocar certos economistas como, por exemplo, Sismondi 3.

Mas a utopia não deixava de ter um papel na ideologia econômica: ela dava esperança aos homens para que prosseguissem nos seus esforços pela plena instalação da nova ordem, que apresentaria mais liberdade s prosperidade que todas as anteriores, muito embora, ao contrário dos economistas, a nova burguesia emergente se contentasse com uma liberdade econômica vigiada pelo Estado, que permitisse fluência aos seus negócios.

Deste modo, os argumentos anti-escravistas da Economia Política dificilmente podiam se sustentar sobre suas próprias pernas, mesmo porque, em primeiro lugar, a escravidão era realmente lucrativa para o proprietário de escravos e, em segundo lugar, ela estava sendo criticada por não se ajustar a uma utopia.

Retomemos tais argumentos para tentar comprovar essa idéia.

Como é sabido, os ataques feitos pela Economia Política à escravidão orbitaram em torno de um núcleo composto basicamente por dois argumentos: a carestia do trabalho escravo e a caracterização do escravo como um trabalhador desmotivado para o trabalho. Com efeito, estes argumentos anti-escravistas estiveram presentes nos textos de todos os economistas políticos do período aqui considerado, salvo raras exceções que não tiveram continuidade na história do pensamento econômico - como, por exemplo, as idéias de James Stewart.

Mas, ocorre que esses argumentos nunca foram demonstrados de per se, e sempre apareceram como corolários de determinados raciocínios. Além disso, jamais perderam a condição de hipóteses: para que fossem efetivamente demonstrados seria necessário tomar duas unidades de produção semelhantes em todos os seus aspectos (por exemplo, dois engenhos com os mesmos fatores de produção). Se uma delas utilizasse o escravo e outra o trabalhador assalariado, haveria dados à disposição para que fosse comprovado que uma era mais ou menos lucrativa que outra. Contudo, isto nunca existiu concretamente, de modo que era proclamada a superioridade econômica do trabalhador assalariado sem que houvessem dados concretos para a comparação.

Aliás, nos primeiros anos do século XIX, o predomínio absoluto do trabalhador assalariado sobre a servidão feudal e a escravidão negra pertencia a um futuro; a idéia de que o primeiro seria mais econômico tornava-se uma mera suposição. Não foi, portanto, à toa que os economistas não conseguiram demonstrar, através de cálculos, a superioridade econômica do trabalho assalariado.

Convém, a esta altura, revisitar os argumentos anti-escravistas dos economistas políticos para apontar o quanto eram frágeis e incapazes de se sustentar em termos econômicos.

Iniciemos com a questão da carestia do trabalho escravo. Os economistas não conseguiram provar através de cálculos de custos que o trabalho escravo era o mais caro. Muito pelo contrario, todas as vezes que se puseram a calcular, evidenciavam que era mais barato. É o caso de Adam Smith, para o qual a lavoura açucareira escravista era a mais lucrativa do seu tempo; é o caso também de Jean-Baptiste Say que ao calcular os gastos com o escravo chegou à conclusão de que eram inferiores aos dos assalariados; é o caso ainda de Henri Storch, que igualara as despesas de manutenção do escravo com os salários pagos aos trabalhadores livres, pois incluiu nos salários a quantia necessária para a manutenção familiar destes trabalhadores e a conseqüente reprodução da classe. Há ainda um outro cálculo, feito por Ganilhe e citado por João Severiano, que indicava que as plantages das colônias francesas apresentavam um lucro anual líquido de três e meio por cento a mais que as lavouras metropolitanas 4.

Embora tivessem esses dados à mão os economistas políticos os recusavam, seja em nome da pequena oferta de açúcar que obrigava os consumidores europeus a pagarem os altos custos de produção, gerados pelo uso do escravo (Adam Smith), seja em nome de um lucro digno e justo que deveria excluir o escravo (Jean-Baptiste Say), seja em nome da falta de zêlo do escravo (Henri Storch) ou ainda pelo fato de não compensar o lucro da lavoura escravista, em vista do alto risco do investimento (Ganilhl).

É verdade que há exceções: trata-se dos cálculos feitos por Dupont de Nemours e Benjamim Franklin, publicados no Ephémérides que, no entanto, não parecem ter tido muita credibilidade, posto que não apareceram mais nos textos ulteriores da economia política clássica e foram postos sob suspeita pelos estudos mais recentes.

De qualquer modo, era impossível que os economistas políticos nunca tivessem percebido as grandes fortunas que possuíam os donos de escravos absenteístas que viviam na Europa, o que era uma prova irrefutável da alta lucratividade do trabalho escravo.

Além do mais, lembremos que a abolição da escravidão foi na grande maioria dos casos uma iniciativa do Estado ou então promovida pela revolta de escravos, no caso excepcional do Haiti. Se o trabalho escravo era tão nocivo quanto os economistas faziam crer é de se supor que a iniciativa da emancipação devesse ter sido tomada pelos donos de escravos, fato que nunca ocorreu na história. Enfim, deve ser lembrada uma observação feita por Howard Temperley ao mostrar o erro de Adam Smith quando atribuiu à utilização dos braços escravos o motivo dos altos custos da produção do açúcar e do tabaco: "no final das contas não havia nenhuma lei que obrigasse a produção do açúcar e do tabaco a ser feita exclusivamente por escravos. Se eles pudessem ser produzidos a preço mais baixo pelo trabalho livre então, presumivelmente, alguém estaria fazendo isto" 5.

A mesma fragilidade está presente no argumento de que o escravo não tem motivação para o trabalho, porque jamais poderá se transformar num proprietário. Estamos efetivamente diante de um wishful thinking dos economistas políticos, pois tal idéia supõe que o trabalhador assalariado esteja motivado para o trabalho. Com efeito, tal posição desconsidera o dado fundamental da civilização cristã, onde o trabalho surgiu em decorrência de uma punição divina: o famigerado "ganharia o pão com o suor do teu rosto". Caso a propriedade viesse realmente a amenizar o castigo, gratificando de algum modo os homens, ela entretanto, não é suficiente para eliminar o caráter irrevogável da punição. Aliás, alguns economistas políticos chegaram a suspeitar da suposição de que o trabalhador livre tem sérios motivos para trabalhar. É o caso de A. Blanqui que, comentando uma passagem do Riqueza das Nações onde Smith apontava a motivação do trabalhador livre, afirmou que estava demonstrado "por todas as observações feitas a partir das pesquisas sobre a emancipação dos escravos nas colônias que onde o liberto trabalha (grifo do autor) seu trabalho é mais produtivo que o dos escravos; mas, infelizmente ele nem sempre trabalha" 6.

Assim sendo, há outros motivos que levam os homens a trabalhar, sejam eles livres ou escravos. No que diz respeito especificamente à motivação do escravo, recorro novamente a uma observação de Temperley: "em grande parte eles (os escravos) tinham as mesmas razões que as pessoas têm para trabalhar sob qualquer sistema - uma ambição de aumentar a auto-estima e conquistar a estima dos outros, acompanhada de um desejo de obter qualquer benefício na forma de recompensa material ou status oferecidos pelo sistema. Sob a escravidão os benefícios a serem alcançados eram severamente circunscritos, embora existissem. O fato de as recompensas serem limitadas não significa que os homens não concorram entusiasticamente - ou desesperadamente - por elas" 7.

Mas, os argumentos econômicos anti-escravistas não devem ser tratados como se tivessem sido produzidos por um equívoco dos economistas. A questão aqui não é de erro ou acerto, de verdade ou falsificação. Ocorre que estes argumentos fazem parte de um aspecto da Economia Política que se for subestimado compromete a compreensão do caráter do conhecimento econômico no período em questão: neste momento a ciência atribuía a si mesma um caráter filantrópico e libertário.

* * *

Tendo em mãos a idéia de que para os economistas políticos o fim da escravidão representava o primeiro passo para o acesso a um mundo utópico, podemos passar para a persistência desses argumentos anti-escravistas na historiografia.

Tais argumentos foram constituídos no momento mesmo que a Economia Política definia a província do saber que deveria ficar sob os cuidados do seu conhecimento; mas, criados naquele tempo, ainda hoje são repetidos à exaustão. Como se tivessem sido cristalizados no tempo, constituem verdadeiros legados ideológicos que passaram à condição de verdades científicas inquestionáveis, o que se deve, certamente, ao fato de que a Economia Política manifestou-se como a primeira ciência social dos tempos modernos.

Com efeito, as idéias anti-escravistas dos economistas políticos se instalaram na nossa memória e persistem até os nossos dias, dando instrumentos aos estudos históricos sobre a escravidão.

Tal persistência pode ser verificada em muitos estudos sobre a escravidão, que têm como moeda corrente argumentos como: o trabalho escravo é caro, a escravidão degrada o trabalho, a escravidão impede inovações tecnológicas...

Tomemos, como exemplo palpável, na historiografia brasileira, algumas opiniões de Emilia Viotti da Costa no seu livro Da Senzala à Colônia. Na "Introdução" a autora faz afirmações tais como: "o trabalho (...) corrompe-se com o regime da escravidão, quando se torna resultado de opressão, de exploração"; ou então: "o trabalho que deveria ser elemento de distinção e diferenciação na sociedade, embora unindo homens na colaboração, na ação comum, torna-se no sistema escravista dissociador e aviltante. A sociedade não se organiza em termos de cooperação, mas de espoliação" 8.

Um outro exemplo, mais recente, pode ser encontrado num artigo intitulado "O Branco Selvagem", escrito por Luis Felipe de Alencastro onde se lê que "... essa opção econômica (a escravidão) suscita formas de exploração que atrapalham a modernização tecnológica, a sociedade, o espírito público e a nação" 9.

Estes textos não foram previamente escolhidos, tampouco selecionados após uma pesquisa 10; são aqui citados por estarem à mão. Além disso, não há qualquer intenção de crítica aos trabalhos que estes historiadores fizeram sobre a escravidão, reconhecidamente de primeira qualidade. Mas, esses textos despertam interesse como documentos que já são da história das idéias. É unicamente sob este prisma que tentarei tratá-los aqui.

Após ter algum contato com as opiniões anti-escravistas da economia política as idéias desses historiadores brasileiros contemporâneos passam a ser bastante familiares. Isto, entretanto, não quer dizer que eles tenham algum vínculo ideológico com a economia política clássica; muito pelo contrário: explicitam a recusa dos pressupostos por ela formulados. A despeito disso, continuam veiculando o legado ideológico da Economia Política ao assegurar que o trabalho se corrompe com a escravidão, pois passa a ser resultado de "opressão, de exploração" e que a sociedade escravista "não se organiza em termos de cooperação, mas de espoliação" (Emilia Viotti), ou então que a opção econômica da escravidão leva à forma de exploração, que atrapalham "a sociedade, o espírito público, a nação" (Alencastro).

A partir de tais idéias o leitor poderá deduzir, lendo Emilia Viotti, que na sociedade organizada com bases no trabalho assalariado não há opressão, tampouco exploração; ou ainda que nesta última há cooperação e não espoliação. Passando para o artigo de Alencastro poderá inferir que com o trabalho assalariado não há nada mais que atrapalhe a sociedade, o espírito publico e a nação.

Tenho a mais absoluta certeza que não foi exatamente isto que esses historiadores quiseram sugerir, mas também nada explicitaram para desfazer o mal-entendido a que seus textos induzem. Sendo assim, conservaram na aparência as formulações feitas pela economia política clássica, preservando, sem o desejar voluntariamente, o legado ideológico das opiniões anti-escravistas dos economistas políticos.

Num certo sentido isto se deve a um tipo de fenômeno de longa duração. Só que não se trata de uma longa duração somente no mundo das idéias: o mesmo sistema capitalista que levou à emergência da Economia Política ainda persiste, e, embora a escravidão tenha sido extinta, a utopia da economia política clássica não o foi, mesmo porque se isto tivesse ocorrido ela deixaria de ser uma utopia.

Mas, as bases que sustentavam tais idéias sobre os trabalhadores livres foram desmontadas pela crítica que Friedrich Engels e Karl Marx fizeram à Economia Política, ainda na primeira metade do século XIX. Estes homens, também em nome da ciência econômica, fundaram uma nova utopia - a utopia do operariado - que nos faz crer que o oposto do escravo não é o assalariado, haja vista que este último nada tem de trabalhador livre: o trabalho livre somente será factível no socialismo. E a historiografia da escravidão, dividida por este embate de utopias, utiliza o instrumental herdado da economia política clássica em busca do verdadeiro trabalho livre, expressando um dos resultados da transferência para o marxismo da noção de progresso, muito cara à economia clássica.

Notas

Revista de História - USP

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