sexta-feira, 13 de agosto de 2010

AFROGRAFIAS DA MEMÓRIA


A imagem nas águas
Marina De Mello E Souza

As congadas, danças rituais que festejam Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e outros santos cultuados pelos negros desde os primeiros tempos de sua conversão ao catolicismo, fazem parte do rico universo da cultura popular brasileira. Leda Maria Martins se debruçou sobre a história e a análise de uma congada, realizada em Jatobá, nas cercanias de Belo Horizonte, tendo sido para isso escolhida pelo capitão-mor João Lopes, detentor máximo do saber relativo àquele rito festivo. Congregando em si a vivência da festa, da qual foi princesa durante 10 anos, e o saber erudito adquirido na academia, a autora foi identificada pelo líder maior daquela comunidade como a pessoa ideal para registrar em outro código o conhecimento transmitido há gerações por meio da oralidade, da observação e da experiência. Assumindo a tarefa para a qual havia sido designada, ela entrevistou membros dos Reinados do Jatobá e do Ibirité, que no passado eram uma única congregação, visitou congadas de outras localidades, vasculhou arquivos e, à luz de seu arcabouço conceitual, apresentou-nos os resultados da pesquisa.
A introdução do livro mostra como a África e o Brasil encontram-se unidos e separados pelo oceano transposto pelos navios negreiros que, além de escravos africanos, carregavam suas normas de comportamento e sistemas cognitivos. Oriundos de diferentes regiões, falando línguas diversas e portadores de culturas específicas, esses homens e mulheres forjaram na América novas identidades que conciliaram essa variedade com a cultura ibérica dominante, imposta pela colonizador, recodificada pelo dominado. Atenta a esse entroncamento de códigos culturais, a autora considera os ritos que cultuam Nossa Senhora do Rosário uma "performance mitopoética" que reinterpreta "as travessias dos negros da África às Américas".
No primeiro capítulo do livro, a autora invoca estudos referentes à cultura nagô para entender a "reterritorialização" de tradições africanas eminentemente bantos, como são as congadas e reinados. Sua argumentação poderia ser reforçada se tivesse recorrido a estudos sobre a cultura banto. Isso fica ainda mais evidente no segundo capítulo, quando nos apresenta diversas narrativas que explicam a origem do culto à Nossa Senhora do Rosário a partir do momento da aparição de uma imagem nas águas, de onde os senhores brancos tentaram retirá-la sem sucesso, o que só foi conseguido pelos escravos e seus tambores. A água da qual emerge a santa também separa a África do Brasil e, ao resgatar a sua imagem, os escravos estariam entrando em contato com seu passado africano. Estudos sobre religiosidade e cosmogonia bantos, como os de Wyatt Macgaffey, John Thornton e Anne Hilton, mostraram que, neste macrogrupo cultural, o mundo dos vivos e o dos mortos, isto é, dos ancestrais, estão separados pela água, cuja travessia permite a passagem de um a outro mundo. Como todo conhecimento dos vivos é oriundo dos ancestrais, a possibilidade de atravessar as águas que separam os dois mundos permite o acesso à sabedoria dos mortos. Se a autora tivesse recorrido a estudos referentes à cultura banto, ficaria reforçada sua interpretação de que o culto a Nossa Senhora do Rosário permite que seus descendentes entrem em contato direto com o saber dos ancestrais, num exemplo de compreensão eminentemente africana de uma simbologia católica.
A narrativa da retirada da imagem é interpretada por Leda Maria Martins também como a descrição da situação de repressão vivida pelo escravo, uma vez que a princípio o senhor branco não permite que ele cultue a santa, havendo num segundo momento uma reversão simbólica dessa situação com a retirada da santa das águas pela força do som dos tambores, o que então funda um outro poder, que agrupa a comunidade em torno do reinado. Esse mito fundador organiza as relações entre os próprios negros, oriundos de diferentes etnias, e entre estes e os senhores.
No terceiro capítulo, a autora volta-se para a história da congregação que realiza a festa, o reinado e as danças de Congo e Moçambique. As informações levantadas em arquivos e depoimentos confirmam a predominância de negros bantos nas fazendas aonde nasceu uma primeira congregação, ainda no século 19 -a de Ibirité-, da qual saiu uma dissidência que formou, no início do século 20, a congregação do Jatobá.
O capítulo 4, que conta com a ajuda da musicóloga Glaura Lucas, é dedicado às melodias tocadas pelos ternos do Congo e Moçambique, e o capítulo 5 à descrição do rito propriamente dito, com suas procissões, missa, coroação, insígnias, execução de cantos, danças e refeição festiva. Para completar o retrato traçado, um caderno de fotografias dá rosto aos nomes citados, formas aos instrumentos, ritmo às danças, cores aos trajes e emblemas.
O trabalho de Leda Maria Martins é de especial importância por conciliar a vivência com o saber teórico, a emoção com a análise. No entanto, a autora fez algumas opções que comprometem a acuidade da interpretação, ao evocar características da cultura nagô para entender manifestações elaboradas por grupos bantos, e ao deixar fora da sua análise os componentes católicos do Reinado do Jatobá. Apesar de apontar que "os congadeiros definem-se como católicos" e que "o Congado se ergue como efeito dos cruzamentos entre os arquivos simbólicos africanos e a herança cristã ocidental", sua análise, além de recorrer a conceitos excessivamente herméticos, não buscou entender a contribuição do catolicismo para a construção da identidade do grupo.
Marina de Mello e Souza é doutoranda na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo

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