As transgressões da moda
Na Idade Média o fato da mulher vestir-se, enfeitar-se e maquiar-se para mostrar-se em público configurava uma subversão das regras sociais. A exteriorização de seu corpo de forma banal causava extremo desagrado e atiçava a polêmica dos clérigos contra esse tipo de comportamento. A vigilância e o controle excessivo imprimem na mulher uma idéia de inferioridade espiritual e servem, na verdade, para incitá-la aos cuidados com o corpo.
Impregnada de uma idéia de inferioridade espiritual a mulher investe naturalmente na aparência driblando as regras impostas, encontrando uma via de acesso que lhe permite a vaidade e os enfeites.
A partir do fim da Idade Média, os surgem os chapins* e as anquinhas*, duas modas de grande projeção na Renascença que, são exemplo de um comportamento transgressor da mulher. De maneira geral, estigmatizadas, revelam uma leitura do vestuário feminino segundo uma visão eclesiástica e tradicional. As duas modas provocarem um aumento substancial na quantidade de tecido empregado na confecção dos vestidos femininos. Tudo indica que as críticas lançadas contra elas eram mais de cunho moral que econômico, pois, foram provavelmente concebidas para beneficiar o comércio. Na medida em que os tecidos se avolumavam a questão se tornava mais séria. “As caudas por exemplo, cujo extravagante consumo de tecido, tinha outrora suficiente para sua condenação, tornam-se agora um esconderijo para diabos mais do que um sinal de pretensão aristocrática.”44
No século XV, os chapins*, sapatos de solas altas em couro, madeira ou cortiça, que se tornaram populares tiveram uma conotação negativa. Em algumas cidades italianas, bem como na Espanha, se propagava a idéia de que esses poderiam contribuir para a esterilidade e causar dano espiritual à mulher, sendo mais apropriados às prostitutas, às quais foram atribuídas de ofício por alguns governos. O confessor da rainha Isabel da Espanha queixavase dos sapatos vulgares que estavam esgotando as reservas de cortiça nacionais. Em Veneza, os legisladores condenaram tal moda alegando que “mulheres grávidas, que andavam pelas ruas calçadas com chapins* tão altos que não podiam sequer manter o equilíbrio, tinham caído, o que lhes tinha causado tão grandes danos que tinham perdido os filhos ou abortado, levando à perdição do seu corpo e da sua alma.”45 Essa característica suscitava comparações com o costume das chinesas de atarem os pés. Os legisladores italianos, também destacaram que os chapins* elevavam as mulheres bem acima do solo provocando uma instabilidade evidente que impediam-nas de caminhar e faziam com que elas oscilassem. Todavia, as mulheres, de uma maneira geral, desdenhavam das leis que regulavam o uso de peças que nfluenciavam a quantidade de tecido a ser utilizado nos vestidos, mostrando caudas cada vez mais longas que se arrastavam pelo chão.
Em meados do século XV, surge uma das modas mais condenadas, as anquinhas*, consideradas também como uma das mais sedutoras. Sendo inicialmente uma armação* que mantinha os vestidos afastados das ancas, tornam-se um aro* ou série de aros* cuja rigidez, semelhante à de um escudo, sugeriram na Itália e na Espanha o nome de guardinfante* como extensões das ancas, ou verdugos.A ampla política de alianças matrimoniais da corte castelhana divulgou-as no estrangeiro. Os ingleses notaram imediatamente que “Catarina de Aragão e as suas damas usavam abaixo da cintura uns arcos que mantinham os vestidos afastados dos seus corpos, à maneira do seu país”.46 Nota-se que a moda seguia o gosto aristocrático, exemplo disso era o da rainha Isabel que gostava das anquinhas* e fez delas uma moda verdadeiramente inglesa, tal como foram as vertugalles* consideradas uma moda francesa na corte de Francisco I.
Os arcos tornaram-se uma marca distintiva e um suporte da moda da Renascença tardia, mantendo os vestidos afastados dos contornos naturais do corpo e exigindo, como os chapins*, jardas adicionais de tecido para cobri-lo. No entanto, “os críticos da moda preferiam os argumentos morais aos argumentos econômicos, referindo os segredos que as anquinhas* encobriam mais do que o tecido que exibiam.”47 Mas o que geralmente incomodava, não era tanto a sua revelação ou a constrição que provocava na função natural da mulher, mas a ocultação dos prazeres meretrícios. Tem-se no discurso que permeia o uso da vestimenta a idéia de idolatrar o corpo para depois corromper-se.
Assim, tal como os chapins*, as anquinhas* eram criticadas porque vergavam o corpo feminino para servir à moda. “forçando uma perversão do seu uso natural, talvez afetando a concepção de filhos, pois, cujos aros* e armações rígidas ameaçavam afetar o desenvolvimento fetal”.48 “.
Além disso, tinha-se a idéia de que essas permitiam às mulheres manter a gravidez escondida sob os volumosos vestidos que sustentavam, mantendo assim uma leviandade sexual inaceitável na época. a esconder conseqüências da liberdade sexual.
(...) para que servem essas anquinhas*, senão a produzir escândalos?”49 Segundo um cortesãohistoriador, da corte de Joana de Portugal, consorte famosa de Henrique IV, a rainha considerava as anquinhas* (1468, época de sua Muitos, no entanto, teriam concordado com o autor anônimo de Le Blason des Basquines et Vertugalles de que os aros* serviam como uma forma de manter secretas as conseqüências de uma indiscrição. A exemplo da rainha, as damas da corte se sentiram encorajadas a usá-las para assumirem o aspecto de matronas grávidas. Se os chamados guardinfantes* escondiam as crianças por nascer, estas eram, assim, crianças cuja legitimidade podia ser contestada. Longe de estabelecer uma marca de patrilinearidade, a moda permitia que as esposas escapassem ao sinal mais notório de seus compromissos socais.
Ambas as modas estavam ligadas a uma ameaça de esterilidade. Um desenho de época sugere essa idéia através da representação de uma cortesã veneziana elegantemente vestida, levantando com ambas as mãos a grande saia que cobriam as suas anquinhas*. Ela põe à vista não só os seus gigantescos chapins*, mas também calças masculinas que insinuam o comércio de prazeres sodomitas e revelavam uma liberdade de travestir que permite às mulheres o controle do seu corpo. Os chapins* e as anquinhas* parecem atribuir um contraste feminino ao estilo masculino, na verdade, fazem parte de um mesmo conjunto. “Subvertendo o papel conferido ao vestuário de instrumento de desígnio patrilinear, as armações das saias, os corpetes e os sapatos de solas altas oferecem formas particulares de liberdade que se pode chamar de transgressiva.”50
Uma interpretação sexual do vestuário pode também produzir moda. Os eclesiásticos tentaram no século XIII criar uma categoria visual de honra feminina insistindo no véu como um sinal da mulher convenientemente casada, uma moda expressamente recusada por muitos governos urbanos às prostitutas que tinham de andar na rua com o rosto descoberto. Essa iniciativa fracassara com a invenção de véus de seda transparente que nada ocultavam e com a de outros véus mais elaborados e volumosos que escondiam muito, dissimulando perigosamente a identidade e o estatuto de uma mulher, embora as autoridades cívicas estivessem menos inclinadas a criar estilos especiais de vestuário, preferindo apenas reagir às modas, à medida que estas surgiam. Após seis anos de casamento, anos durante os quais a moda podia servir de atrativo sexual para reforçar o vínculo matrimonial, as esposas dos cidadãos florentinos, por exemplo, deviam guardar as suas roupas coloridas para então usar vestidos pretos (fig.4). Era permitido, no entanto, exibir corpetes, mangas e colarinhos coloridos. Essas manchas de cor tinham por sua vez de ser abandonadas depois de doze anos de casamento, quando, presumivelmente, a sexualidade produtiva dos anos de fertilidade chegava ao fim.
Após o segundo ano do primeiro casamento, a interdição do uso de roupas de cor a todas as mulheres casadas em Siena, era acompanhada, numa conivência implícita com as velhas categorias mendicantes, da sua atribuição às prostitutas. Em Florença e em Veneza, era permitido o uso da cor apenas às mulheres não nobres no campo e às não cidadãs dentro da cidade. “A diferenciação sexual acabou não apenas por controlar os sinais da honra feminina, mas também por demarcar o decoro do espaço urbano da aberrante cacofonia da licenciosidade rural e das classes com as virtudes nobres nas cortes da Borgonha e da Espanha.”51 A adoção do preto como cor, pode ter igualmente servido a finalidades mercantilistas ao afastar as mulheres mediterrâneas dos têxteis coloridos de uma nova manufatura atlântica. Assim, as idéias de extravagância sexual e econômica ter-se-iam mais uma vez fundido para definir as categorias suntuárias femininas.
(...) para que servem essas anquinhas*, senão a produzir escândalos?”49 Segundo um cortesãohistoriador, da corte de Joana de Portugal, consorte famosa de Henrique IV, a rainha considerava as anquinhas* (1468, época de sua Muitos, no entanto, teriam concordado com o autor anônimo de Le Blason des Basquines et Vertugalles de que os aros* serviam como uma forma de manter secretas as conseqüências de uma indiscrição. A exemplo da rainha, as damas da corte se sentiram encorajadas a usá-las para assumirem o aspecto de matronas grávidas. Se os chamados guardinfantes* escondiam as crianças por nascer, estas eram, assim, crianças cuja legitimidade podia ser contestada. Longe de estabelecer uma marca de patrilinearidade, a moda permitia que as esposas escapassem ao sinal mais notório de seus compromissos socais.
Ambas as modas estavam ligadas a uma ameaça de esterilidade. Um desenho de época sugere essa idéia através da representação de uma cortesã veneziana elegantemente vestida, levantando com ambas as mãos a grande saia que cobriam as suas anquinhas*. Ela põe à vista não só os seus gigantescos chapins*, mas também calças masculinas que insinuam o comércio de prazeres sodomitas e revelavam uma liberdade de travestir que permite às mulheres o controle do seu corpo. Os chapins* e as anquinhas* parecem atribuir um contraste feminino ao estilo masculino, na verdade, fazem parte de um mesmo conjunto. “Subvertendo o papel conferido ao vestuário de instrumento de desígnio patrilinear, as armações das saias, os corpetes e os sapatos de solas altas oferecem formas particulares de liberdade que se pode chamar de transgressiva.”50
Uma interpretação sexual do vestuário pode também produzir moda. Os eclesiásticos tentaram no século XIII criar uma categoria visual de honra feminina insistindo no véu como um sinal da mulher convenientemente casada, uma moda expressamente recusada por muitos governos urbanos às prostitutas que tinham de andar na rua com o rosto descoberto. Essa iniciativa fracassara com a invenção de véus de seda transparente que nada ocultavam e com a de outros véus mais elaborados e volumosos que escondiam muito, dissimulando perigosamente a identidade e o estatuto de uma mulher, embora as autoridades cívicas estivessem menos inclinadas a criar estilos especiais de vestuário, preferindo apenas reagir às modas, à medida que estas surgiam. Após seis anos de casamento, anos durante os quais a moda podia servir de atrativo sexual para reforçar o vínculo matrimonial, as esposas dos cidadãos florentinos, por exemplo, deviam guardar as suas roupas coloridas para então usar vestidos pretos (fig.4). Era permitido, no entanto, exibir corpetes, mangas e colarinhos coloridos. Essas manchas de cor tinham por sua vez de ser abandonadas depois de doze anos de casamento, quando, presumivelmente, a sexualidade produtiva dos anos de fertilidade chegava ao fim.
Após o segundo ano do primeiro casamento, a interdição do uso de roupas de cor a todas as mulheres casadas em Siena, era acompanhada, numa conivência implícita com as velhas categorias mendicantes, da sua atribuição às prostitutas. Em Florença e em Veneza, era permitido o uso da cor apenas às mulheres não nobres no campo e às não cidadãs dentro da cidade. “A diferenciação sexual acabou não apenas por controlar os sinais da honra feminina, mas também por demarcar o decoro do espaço urbano da aberrante cacofonia da licenciosidade rural e das classes com as virtudes nobres nas cortes da Borgonha e da Espanha.”51 A adoção do preto como cor, pode ter igualmente servido a finalidades mercantilistas ao afastar as mulheres mediterrâneas dos têxteis coloridos de uma nova manufatura atlântica. Assim, as idéias de extravagância sexual e econômica ter-se-iam mais uma vez fundido para definir as categorias suntuárias femininas.
Fig. 4: Casamento de Boccacci Adimari, Florença, c. 1470. Academia Foto Scala.
Fonte: LAVER, James. A Roupa e a Moda: uma história concisa.
Parte integrante da tese de Mestrado
A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental Medieval
Reflexo da opressão sofrida pela mulher na Idade Média (século: XI-XV)
Orientadora: Prof.ª Drª Maria Eurydice Barros Ribeiro
Aluna: Georgia M. de Castro Santos
Dissertação para obtenção do grau de mestre em
Arte Contemporânea, Área de concentração:
Teoria e História da Arte.
A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental Medieval
Reflexo da opressão sofrida pela mulher na Idade Média (século: XI-XV)
Orientadora: Prof.ª Drª Maria Eurydice Barros Ribeiro
Aluna: Georgia M. de Castro Santos
Dissertação para obtenção do grau de mestre em
Arte Contemporânea, Área de concentração:
Teoria e História da Arte.
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