Entre retratos e cadáveres: a fotografia na Guerra do Paraguai
André Amaral de ToralDoutor em História Social pela FFLCH - USP
A TRANSCEDÊNCIA AO ALCANCE DE TODOS
A partir da invenção do daguerreótipo em 1839, impressão da imagem em metal, a fotografia deixou de ser apenas experimentação e tornou-se atividade profissional. Já a partir de 1842, daguerreotipistas norte-americanos anunciavam seus serviços no Brasil; em 1847, o Almanaque Laemmert anunciou três oficinas especializadas no Rio de Janeiro1.
O daguerreótipo, que só permitia um original montado como jóia em estojos especiais, teve, no entanto, circulação restrita. A técnica que permitiu a expansão da fotografia nas décadas de 1860 e 1870 foi a "dobradinha", negativo de colódio úmido e cópia sobre papel albuminado2. A elaboração de um negativo à base de colódio sobre chapas de vidro ou metal e a possibilidade de produção de múltiplas ampliações sobre papel agilizou a produção e reprodução de registros fotográficos, possibilitando um rentável aproveitamento comercial.
A reprodução de sua própria imagem, antes privilégio dos que podiam fazer-se retratar por um artista, amplia-se para um público mais amplo. A partir de 1854, popularizam-se pequenos retratos, chamados carte-de-visite por terem o tamanho de um cartão de visita. Eram destinados a serem oferecidos a amigos e parentes com indefectíveis dedicatórias escritas no verso onde aparecia como prova de amizade, despedida, saudação ou simplesmente para marcar um compromisso.
O costume, comum nos dias de hoje, de se trocar retratos com pessoas significativas, ou de colecioná-los, uma vez que não havia publicação de fotografias, formou-se explosivamente entre 1850 e 1870. A descoberta da disponibilidade da própria imagem, para um público que nunca tinha tido acesso a um retrato, era uma coisa quase mágica, que ia além daquilo que se considerava possível. Por intermédio da fotografia, cada família tinha possibilidade de construir uma crônica de si mesma, "coleção portátil de imagens que testemunha sua coesão"3.
Boris Kossoy afirma que "o retrato apresentado dessa forma tornou-se a moda mais popular que a fotografia assistiu em todo o século passado". Seu amplo consumo traria a padronização do produto fotográfico e de seu conteúdo, estereotipando cenários e poses dos retratados4.
A troca de cartões e o problema de como acondicioná-los daria início aos álbuns de fotografias, destinados aos temas mais diversos como família, amigos, autoridades e personalidades, paisagens, tipos humanos pitorescos, guerra, erótico etc.
Como resultado da popularidade dos carte- de-visite, multiplicavam-se os estúdios na maioria das capitais européias e, principalmente, nos Estados Unidos. Para se ter uma idéia da rapidez do processo, nesse último país, o total de fotógrafos passa de 938 em 1851 para 7.558 em 1870. Em Londres, os 66 fotógrafos de 1855 aumentaram para 284 em 1866. Em Paris, em 1861, 33 mil pessoas viviam da produção de fotografias5. Chegando a um tal grau de desenvolvimento do mercado produtor de fotografias, era de se esperar que pelo menos uma parte desse grande número de profissionais se voltasse à exploração de mercados ainda não saturados.
Todas as capitais dos países envolvidos na guerra do Paraguai, e boa parte de suas províncias, receberam a visita desses profissionais itinerantes vindos da Europa e dos Estados Unidos, que se anunciavam pela imprensa e partiam depois de "fazer a praça". Ao mesmo tempo que executavam seus retratos, procuravam registrar costumes ou lugares, para aproveitamento futuro, como material de gênero pitoresco, vendidas em álbuns ou foto por foto, no seu retorno aos seus países de origem.
O Rio de Janeiro, embora em parâmetros mais modestos, também experimentou um crescimento no seu número de fotógrafos: 11 em 1857 e 30 em 18646. Em 1869, o primeiro censo nacional da Argentina registrou 190 fotógrafos no país, 130 dos quais concentrados em Buenos Aires7. Montevideo, que lucrava com os fornecimentos para a guerra, também atraiu um bom número de fotógrafos entre 1863 e 1870. O Paraguai, mais isolado, recebeu, entre 1846 e 1870, cerca de sete fotógrafos itinerantes: norte-americanos, franceses, italianos e ingleses. Apenas um deles, Pedro Bernadet, ao que se sabe, chegou a estabelecer estúdio em Asunción, entre 1865 e 708.
Dos muitos estúdios atuantes no Brasil na segunda metade do século passado, vale destacar, utilizando-se os levantamentos de Bóris Kossoy, em São Paulo, o de Militão Augusto de Azevedo, Renouleau, Carlos Hoenen; no Rio, capital da fotografia no Império, os de José Ferreira Guimarães, Joaquim Insley Pacheco, Carneiro & Gaspar, Alberto Henschel & Cia.; em Salvador, Lindemann, Wilhelm Gaensly, João Goston; no Recife, Augusto Stahl, João Ferreira Villela, Labadie; em Porto Alegre, Luiz Terragno, Virgílio Calegari, entre outros9.
Movendo-se entre as capitais de províncias do Brasil e da Argentina, esses fotógrafos, cujo trabalho em boa parte permanece anônimo, produziram considerável quantidade de retratos de autoridades, tipos humanos utilizados para fotografias de gênero pitoresco (muito próximas das pinturas e desenhos de mesmo gênero) como índios e negros, soldados e principalmente de homens e mulheres de classes médias urbanas. Na Argentina, no Uruguai e no Brasil, os estúdios encontravam-se, em sua maioria, nas mãos de estrangeiros, principalmente norte-americanos, alemães, portugueses e franceses.
Além dos retratos, no mundo inteiro, um outro gênero de fotografias de paisagens urbanas e da natureza, panoramas, tipos e lugares pitorescos, vendidas unitariamente ou em tiragens montadas como álbuns também tiveram grande aceitação. Seu formato podia ser o de carte-de-visite ou o cabinet size, um pouco maior.
A fotografia desenvolveu-se como atividade comercial particular, sendo muito poucos os casos em que foi subvencionada por governantes. O único trabalho que recebeu apoio oficial, embora nenhuma subvenção, foi no Uruguai, onde uma firma norte-americana teve apoio para documentação da guerra do Paraguai.
Surpreendentemente, mesmo no Brasil, onde o imperador era fotógrafo amador e colecionador, a fotografia recebeu pouco apoio oficial. D. Pedro II conhecia os trabalhos dos profissionais mais renomados estabelecidos no Rio de Janeiro ou que visitavam a cidade. Fez-se retratar por boa parte deles. Concedeu o título "fotógrafo da Casa Imperial" a mais de duas dezenas de fotógrafos entre 1851 e 188910. Toda sua coleção particular, intitulada Coleção Teresa Cristina, com mais de vinte mil fotos, foi doada, após a proclamação da República e o exílio, à Biblioteca Nacional e ao Museu Nacional principalmente.
Fala-se muito no "mecenato" do Imperador11 mas, além de colecionador e entusiasta conhece-se apenas um fotógrafo que D. Pedro II teria apoiado efetivamente como "mecenas". Entre 1857 e 1862, gastou cerca de 12 contos e 27 mil réis por um trabalho de Victor Frond, um francês que tinha o projeto de fotografar os "cantos mais longínquos do Império". Até hoje, não se conhece nenhum original do trabalho, apenas as litografias feitas a partir das fotos que se encontram no álbum "Brasil Pittoresco", impresso em Paris.
O CARTE-DE-VISITE VAI À GUERRA
É nesse quadro de crescimento da importância comercial da fotografia que se deve ser buscar as origens do tipo de cobertura dada à guerra do Paraguai. Como se deduz facilmente, a maior parte da documentação fotográfica da guerra é representada pelos milhares de carte-de-visite de soldados a generais feitos entre 1864 e 1870. As melhores coleções de material fotográfico sobre a guerra são os álbuns, formados de carte-de-visite dedicados ao tema, que se salvaram no tempo.
De novembro de 1864 até o final do ano seguinte, as declarações de guerra do Paraguai, seguidas de invasões ao Brasil e à Argentina, causaram uma onda de indignação na opinião pública desses dois países. Exigia-se uma resposta militar. Mitre e D. Pedro II experimentaram um efêmero momento de grande popularidade, como defensores de seus respectivos países, ameaçados por um ataque "traiçoeiro", embora perfeitamente esperado.
Os fotógrafos aproveitavam esse clima de patriotismo inicial que imperava nas capitais dos países que formariam a Tríplice Aliança. Em praticamente todas as cidades havia muita procura de retratos dos soldados que partiam para a guerra ou que já se encontravam em campanha.
Diversos estúdios ofereciam retratos dos governantes que formavam a Aliança, ou carte-de-visite de personagens políticos ou comandantes militares, vendidos separadamente. Nos jornais do Brasil e da Argentina, anunciavam-se descontos especiais para retratos de soldados.
Esse clima contagiou até o severo D. Pedro II que, como muitos outros soldados, fez-se retratar em trajes militares, "uniforme de gala e traje de campanha", em dois carte-de-visite feitos por Luiz Terragno, em 1865, provavelmente em Porto Alegre. Procurando dar o exemplo como "primeiro voluntário da pátria", o imperador brasileiro tentava se identificar com o cotidiano de soldados e oficiais, ao menos nos seus sinais exteriores, como vestir uniforme e tirar fotografias.
A guerra, evidentemente, era um grande negócio para os fotógrafos. E naquele momento, era a melhor coisa aparecida desde a invenção do carte-de-visite. O conflito inaugurou uma competição feroz12 entre os fotógrafos que disputavam o enorme mercado, representado pelos milhares de soldados. Durante todo o período de mobilização de tropas, esses profissionais fizeram excelentes negócios, fotografando os jovens soldados em seus flamantes uniformes.
A quantidade de carte-de-visite retratando militares no mundo inteiro, a partir de 1860, foi tão grande que chegou a marcar, segundo alguns autores, o surgimento da fotografia militar. Nesse aspecto, a guerra do Paraguai foi a mais fotografada da América, de forma similar à guerra da Secessão nos Estados Unidos13.
A guerra, de resto, já servia como tema à fotografia há bastante tempo. A produção de retratos e de paisagens, cenas do front e outros temas militares iniciou-se provavelmente com os daguerreótipos sobre a guerra entre México e Estados Unidos (1846-48), prosseguindo depois com as guerras Sikh (1848-49) na Índia inglesa, guerra da Birmânia (1852), guerra da Criméia (1854-56), onde Inglaterra, França e Turquia lutaram contra a Rússia, rebelião dos Cipaios ou Indian Mutiny na Índia inglesa (1857-59) e finalmente, a guerra civil norte-americana (1860-65)14. Correspondentes fotográficos do The Times e do Illustrated London News acompanharam in loco as operações militares da guerra da Criméia, que teve a maior quantidade de imagens. Os retratos, dada a impossibilidade técnica de serem reproduzidos pela imprensa na época, eram copiados através de litografias e publicados.
O interesse na produção e divulgação de material sobre guerra, em geral, foi descoberto pelos fotógrafos e pela imprensa ilustrada no Brasil em função do conflito com o Paraguai. Terminada a guerra, os jornais começaram, imediatamente, a divulgar imagens sobre o conflito franco-prussiano que então se iniciava. Em termos de imagens, como se verá melhor na parte dedicada à imprensa ilustrada, havia necessidade de uma guerra, qualquer uma.
O registro da guerra do Paraguai foi de pequeno interesse para os war corresponsals europeus e norte-americanos. Apenas uma firma norte- americana sediada em Montevideo mandou correspondentes para registrar a guerra, e não só para tirar retratos como todos os outros fotografos que fizeram a campanha do Paraguai. Isso não quer dizer que não havia interesse em imagens do conflito na Europa. Ao contrário. Revistas francesas, como L'Illustration, Tour de Monde, entre outras, reproduziram em litografias, entre 1864 e 1870, abundante material a partir de fotos sobre a guerra. A imprensa inglesa e norte-americana publicava, desigual e esporadicamente, litografias feitas sobre fotos.
EM TENDAS E BARRACOS: OS FOTÓGRAFOS NO "TEATRO DE OPERAÇÕES"
Os fotógrafos seguiram os exércitos aliados pelos seis anos que durou o conflito, de 1864 e 1870, no Brasil, na Argentina e interior do Paraguai. Durante todo esse tempo, fotógrafos que estiveram no "teatro de operações" militares atuaram a partir de Uruguaiana, Corrientes e Rosário, na fase inicial da guerra; depois, no extremo sul do território paraguaio, Tuiuti, Paso da Pátria e Tuiu-cuê, acampando junto aos exércitos aliados; estiveram em Humaitá sitiada e ocupada e, finalmente, em Asunción na última fase.
Devido à itinerância dos fotógrafos e às dificuldades de registro de suas passagens, nunca se saberá ao certo quantos e quais profissionais estiveram na guerra do Paraguai. A identificação do material que chegou aos nossos dias também é problemática. Uma boa parte dos carte-de-visite permanece com autoria anônima. Autores dos mais conhecidos, como Esteban Garcia e sua equipe enviados por Bate & Cia., têm diversas atribuições duvidosas.
Enquanto a guerra desenrolou-se no Rio Grande do Sul, até a rendição da coluna invasora de Estigarríbia em Uruguaiana, em setembro de 1865, muitos fotógrafos gaúchos e uruguaios foram favorecidos pela proximidade com o front. É o caso, entre outros, de Luiz Terragno que retratou o imperador em Porto Alegre; e, em Montevideo, de Saturnino Masoni, que editou uma série de cópias com a imagem do Gal. Venancio Flores, presidente e comandante do exército uruguaio.
Montevideo, como porto de passagem, recebeu milhares de soldados da Aliança durante toda a guerra. Os estúdios de Desiderio Jouant, Chutte & Brooks e Bate & Cia realizaram centenas de retratos15. Além disso, foram mencionados outros profissionais que trabalharam como retratistas na capital oriental durante a guerra, como Alfredo Vigouroux, Anselmo Fleurquin, Enrique Schikendantz, Martínez y Bidart, George Bate e Juan Wander Weyde.
Os fotógrafos argentinos, ou que a partir da Argentina faziam seus negócios, também foram favorecidos pela proximidade com seus estúdios na primeira fase da guerra. É o caso, dentre outros, em Rosário, do alemão Jorge Enrique Alfed, e em Corrientes, de Pedro Bernadet16.
Depois da rendição da coluna de Estigarríbia, alguns prisioneiros paraguaios foram levados a Porto Alegre e fotografados pela iniciativa de um oficial brasileiro, cujo nome se perdeu. O fotógrafo também é desconhecido. Uma das fotos traz a legenda: "Soldado paraguaio Antonio Gomes, prisioneiro em Uruguaiana. Tem 21 anos de idade. Natural da vila de Jaguarão, no Paraguai. Mandei tirar este retrato em Porto Alegre, em 27 de abril de 1867". Como a rendição paraguaia ocorreu em 18 de setembro de 1865, este e os outros que compõem uma série de aproximadamente seis retratos de prisioneiros, atualmente na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, esperaram sete meses para serem feitos.
O retrato de prisioneiros paraguaios parece ter se tornado prática comum entre os retratistas que atuaram ao lado das tropas da aliança. Diversos profissionais, todos anônimos, retratavam oficiais e soldados paraguaios, vendendo as fotos em formato carte-de-visite.
Após a derrota dos aliados em Curupaití, em setembro de 1866, a guerra sofreu uma parada, em que os aliados trocaram seus comandantes e reorganizaram seu exército. As operações militares decisivas só seriam retomadas a partir de setembro de 1867. Esse período, em que os aliados permaneceram estacionados em Tuiutí, representou uma verdadeira benção para os fotógrafos: eram milhares de potenciais clientes acantonados. Foi grande a produção nesse período. Centenas de carte-de-visite retratam os soldados aliados, com o acampamento como fundo. O cotidiano do grande exército imobilizado foi registrado por diversos fotógrafos anônimos: a rua do comércio, uma procissão no acampamento, a guarda do general Caxias, soldados ao redor do fogo etc.
Outras fotos, como a que leva a legenda "officiaes brasileiros, de volta de uma descoberta", apesar de evidentemente arranjadas, são uma tentativa de se chegar perto da ação no front, ao retratar homens que retornam de uma patrulha junto às linhas inimigas.
Após a conquista de Humaitá, em julho de 1868, a guerra mudou seu curso: uma série de vitórias aliadas foi o prenúncio do fim do conflito. Carlos Cesar, fotógrafo do Rio de Janeiro, esteve em Humaitá ocupada nesse ano, fazendo retratos de exterior e interior da igreja destruída na antiga fortaleza paraguaia e no acampamento brasileiro em Tuiu-cuê, fotografando oficiais brasileiros em suas barracas e ranchos.
As crianças paraguaias, que disfarçadas de soldados com barba postiça e rifles de madeira lutaram na última fase da guerra, também foram retratadas. No Museu Histórico de Buenos Aires conservam-se as duas fotografias em formato carte-de-visite que mostram corpos lacerados de meninos, ao que tudo indica infantes sobreviventes das batalhas de Lomas Valentinas e Acostañu. Cuarterolo afirma que se trata do único exemplo que sobrevive do uso da imagem como "instrumento político" durante a guerra do Paraguai17. Isso devido ao emprego que foi dado aos retratos, utilizados como "prova" de que o regime de López não tinha o menor escrúpulo em sacrificar qualquer habitante do Paraguai para se manter no poder.
No final, numa Asunción ocupada, apareceu um inglês radicado em Montevideo, John Fitzpatrick, que realizou fotografias da cidade, dos prisioneiros etc. Numerosas vistas da cidade foram também produzidas por fotógrafos anônimos, mostrando a estação de trens, a catedral etc.
A partir de 1869 e até 1870, aparece uma série de fotos tomadas no Paraguai, de autoria anônima, que mostrava o país derrotado e os sinais do afastamento de López do poder: o palácio de López ocupado pela infantaria brasileira e com uma torre a menos, efeito dos bombardeios da esquadra imperial, a propriedade rural de madame Lynch em Patiño-Cue cercada de tendas do exército brasileiro, festas e comemorações de militares, trincheiras aliadas e tropas brasileiras em manobras próximas à capital paraguaia.
O francês Pedro Bernadet, que também trabalhou em Corrientes, realizou, em Asunción, uma série de fotos do marechal López, de seu filho Panchito, de madame Lynch e outros personagens entre 1865 e 187018. Uma conhecida foto de Francisco López, taciturno, pouco tempo antes de sua morte, também foi de sua autoria.
ESTEBAN GARCIA: FOTÓGRAFO DE BATE & CIA.
A documentação fotográfica da guerra do Paraguai, apesar do volume de retratos produzidos, ficou marcada pela iniciativa do estúdio e firma Bate & Cia. de Montevideo, que mandou Esteban Garcia, um técnico uruguaio, para produzir uma série de fotografias sobre o conflito entre abril e setembro de 1866.
Chegados ao Prata em 1859, os norte-americanos Bate estabeleceram-se como fotógrafos em Montevideo em junho de 1861. O estúdio era de propriedade de George Thomas Bate e seu irmão, do qual não se conhece o prenome. A empresa tinha sucursais em Londres e em La Havana, ao que tudo indica a cargo do irmão de George Bate, que retornou à Inglaterra em 186119.
No final de 1864 e início do ano seguinte, os fotógrafos de Bate & Cia. registraram o bombardeio de Paisandu, cidade uruguaia que resistia às forças de Flores, apoiado por brasileiros e argentinos. Seis imagens foram editadas com o título "Paysandú, 2 de enero de 1865" e postas à venda. O "Álbum de Paysandú", no Arquivo Histórico de la Armada Argentina, traz estas fotografias e outras referentes ao episódio20.
Além dessa experiência, certamente os irmãos Bate conheciam o trabalho dos fotógrafos britânicos na guerra da Criméia e de Mathew Brady e sua equipe na guerra de Secessão. Em 1865, Wander Weyde passou a ser o proprietário de Bate & Cia., que continuou mantendo o nome dos antigos proprietários.
Foi Wander Weyde, um químico belga, quem realizou as gestões junto ao governo uruguaio para obtenção de salvo-conduto a fim de que seus fotógrafos pudessem presenciar as operações do sudeste paraguaio. Apesar de não ter caráter oficial, a expedição contou com auxílio de transporte das autoridades, obtendo, inclusive, a exclusividade de comercialização das fotos até seis meses depois de finalizada a guerra.
Embora a empresa fosse, na época, propriedade de Weyde, foi inegável a participação dos Bate no projeto de fazer um registro da guerra. Esteban Garcia, o mais hábil profissional da firma, chefiava os trabalhos, realizados entre maio e setembro de 1866, dezesseis meses depois de Paisandu21. Na verdade, o período em que Garcia esteve na guerra é algo nebuloso. Diversas fotografias que lhe foram atribuídas têm datas posteriores a esse período. É o caso da foto que registra a saída do comboio do Marquês de Caxias de Tuiu-cuê, onde os aliados só chegariam em julho de 1867.
Garcia deixou registrada a crueza da vida de trincheira: os soldados e oficiais uruguaios, brasileiros e argentinos, hospitais e missas, prisioneiros paraguaios, baterias de artilharia, o front com as linhas inimigas ao fundo, cadáveres paraguaios abandonados etc. Vale menção especial uma foto da Legião paraguaia, formada por Flores e integrada por paraguaios adversários de López.
Também dedicou atenção especial às paisagens que serviram de palco para os combates, como as ruínas da tomada de Itapiru (18 de abril de 1866) ou da batalha do Sauce, ou Boqueirão (18 de julho de 1866).
Garcia conseguiu também o primeiro "instantâneo" da guerra, ao retratar o coronel uruguaio León Palleja no exato instante que, ferido mortalmente na batalha do Boqueirão, foi levado numa maca para a retaguarda. Soldados negros do batalhão uruguaio Florida apresentam armas ao respeitado oficial, um dos melhores cronistas da primeira fase da guerra.
Mas a foto mais impressionante do conjunto, e de toda a guerra talvez, é a que se intitula "montón de cadáveres paraguayos" e que retratou precisamente corpos ressecados de soldados mal cobertos por panos, provavelmente vítimas insepultas dos combates de 24 de maio de 1866. Esta foto e a que mostra as crianças paraguaias sobreviventes dos combates de Lomas Valentinas e Acosta-ñu, de autoria desconhecida, são, sem dúvida, os registros fotográficos mais dramáticos da violência da guerra.
Garcia trabalhava com grandes negativos de colódio úmido sobre placa de vidro de 20 por 14 cm, em precários laboratórios montados em tendas de campanha. Acampava junto às tropas uruguaias. Ao contrário de seus colegas, não parece ter tirado retratos de soldados, dedicando-se exclusivamente às "vistas da guerra".
No final de 1866, a primeira série de dez fotografias foi posta à venda, em cópias no tamanho original do negativo. Ao que tudo indica, o empreendimento não teve muito êxito. Depois de Curupaiti (22 de setembro de 1866) e da morte de milhares de jovens nas trincheiras paraguaias, "a guerra se converteu em um assunto impopular para a sociedade rioplatense"22. Se as fotos não venderam como o esperado, pelo menos parece terem sido reproduzidas em volume considerável, inclusive em formato carte-de-visite, até muito tempo depois da venda do estúdio.
Raras coleções particulares da época não trazem pelo menos uma das fotos tiradas por Bate & Cia. As coleções pessoais de Mitre e de D. D. Pedro II, por exemplo, não são exceções. A última possui o álbum "La guerra contra el Paraguay. Bate & Cia. W, Montevideo", com 12 fotos.
Em fevereiro de 1867, Weyde anunciou a venda do estúdio. O novo proprietário, de posse dos negativos do Paraguai e Paisandu, anunciou uma nova coleção de 21 vistas da guerra. Os atores mudavam, os negócios prosseguem.
O FOTÓGRAFO NO ACAMPAMENTO
A novidade para os fotógrafos itinerantes envolvidos na cobertura da guerra, era, digamos, a situação de campo. Acostumados às condições de vida em cidades, tiveram que se transportar e ao seu equipamento em carros de boi por milhares de quilômetros até os acampamentos das tropas, onde se acomodavam como podiam em tendas ou em desmantelados barracos de palha, meio cobertos por lonas. Uma litografia, feita sobre fotografia, e publicada na Vida Fluminense em 1866, dá uma imagem das duras condições de vida dos fotógrafos no pobre rancho descrito como "Estabelecimento de Erdmann & Catermole", na ilha Serrito.
Os profissionais dos carte-de-visite estabeleciam-se próximos às "ruas do Comércio", existente nos acampamentos das tropas da Aliança durante quase toda a guerra. Recebiam a clientela em seus precários estúdios ou indo até suas tendas e barracas. Às fotos feitas em estúdio, com cortinas com desenhos geométricos gregas, colunas e balaustradas greco-romanas, agora se somavam aquelas feitas com fundo natural e de inspiração guerreira: tendas, fogueiras, sarilhos, espadas penduradas, enfim, o acampamento e suas rústicas condições. Outros fotógrafos, como os enviados por Bate & Cia. de Montevideo em 1866, montaram sua tenda em pleno acampamento de tropas em Tuiuti, junto a um posto de observação elevado, mangrullo.
Se, para profissionais brasileiros ou que atuavam no Brasil, a situação de fotografar numa guerra era uma novidade, o mesmo não pode ser dito dos argentinos. Existia, na Argentina, uma tradição de registros fotográficos de conflitos internos, anterior à guerra do Paraguai23. De 1853 a 1862, durante a luta dos estados argentinos (com os Federalistas da Confederação Argentina, com capital na cidade de Paraná, disputando o controle da nação com os Unitários do Estado de Buenos Aires, sediados na cidade de mesmo nome), daguerreotipistas e fotógrafos registraram continuamente retratos de caudilhos, montoneros insurretos e exércitos regulares.
As primeiras fotografias tomadas em Buenos Aires já podiam ser consideradas fotografias militares, visto que uma delas mostra o exército de Urquiza entrando na cidade após a derrota de Rosas e outra é o retrato do vencedor24. O formato carte-de-visite veio acentuar a produção de retratos militares, mas não fundou o gênero, como no Brasil.
Além de saírem do estúdio das cidades e de se transportarem para os acampamentos militares, os fotógrafos da guerra souberam incorporar novidades na composição de seus trabalhos, que ganhavam em realismo, deixando de ser apenas "retratos". Até o mais prosaico carte-de-visite passava, por força do momento, a adquirir significado especial como um documento histórico.
OS RETRATOS DA GUERRA
Até a guerra do Paraguai, nunca se tinha visto imagens de tropas do Brasil combatendo, muito menos no exterior. Na Argentina e no Uruguai já se conheciam daguerreótipos e fotografias de episódios militares da conturbada vida política desses dois países entre as décadas de 1840 a 1860. O público desses países podia ver, por meio das fotografias, não só as tropas nacionais mas também o "inimigo".
Mesmo explorando gêneros e temas de fotografias já consolidados, como retratos e paisagens sobre temas militares, o conjunto de material produzido apresenta significativas diferenças em relação à produção anterior ou dos tempos de paz. Qualquer que fosse o assunto, a guerra como que transformou a qualidade do material produzido.
As tentativas, ainda que hoje nos pareçam precárias, de se captar a ação nas linhas de combate são significativas. As fotos de "officiaes brasileiros, de volta de uma descoberta", de um oficial argentino, pretensamente em combate e armado de sabre e revólver, ou o retrato da morte do coronel Palleja são tentativas de fazer o registro fotográfico ganhar agilidade, escapando da previsibilidade e imobilidade do estúdio.
Os fotógrafos abandonaram uma certa rigidez na composição das fotos em ambientes fechados e passaram, dadas as condições, a fazer retratos em campo aberto, em meio a tendas, baterias de canhões, cadáveres, barracas e soldados. Muitas fotos, infelizmente anônimas, fizeram do cotidiano do acampamento guerreiro o seu fundo. Temos fotos que, ao contrário do que era feito na época, cultivavam uma realidade sem retoques, com os personagens em situações apresentadas como espontâneas, não em poses rígidas.
Para a fotografia da época, cujo enquadramento e composição eram regidos pela lógica de composição da pintura acadêmica, aquilo era uma mudança. Não era uma alteração no panorama internacional da fotografia, uma vez que trabalhos como o de Mathew Brady sobre a guerra civil norte-americana já traziam muitas dessas "novidades". Era uma inovação, no entanto, no tipo de fotografia que se fazia no cone sul nas décadas de 1850 e 60.
Em termos formais, a guerra do Paraguai arejou as composições das fotos mas o assunto tornou-as mais pesadas, mais "históricas". De qualquer forma, os profissionais envolvidos, pelas condições e pelo assunto, foram forçados a adotar soluções originais para uma situação nova, que a maioria deles nunca havia fotografado: retratar civis em trajes domingueiros num estúdio era bem diferente de retratar soldados no campo de batalha.
As particularidades do acompanhamento da guerra faziam os fotógrafos, principalmente os que atuavam próximos ao front, a repensarem alguns dos fundamentos do ofício: como trabalhar com o instável colódio no calor e umidade, como fazer a composição das fotos fora do estúdio, como fazer retratos "naturais" de soldados e paisagens, como fotografar novas poses e assuntos pedidos pelos próprios soldados etc.
Mesmo os simples retratos ganhavam dramaticidade. Muitos dos retratados, a maioria oficiais que podiam pagar para terem sua imagem imortalizada, morriam pouco tempo depois em combate ou por doenças. A imprensa ilustrada, principalmente no Brasil e menos na Argentina e no Uruguai, reproduzia litografias dos bravos que morriam baseados em cópias de carte-de-visite. Os heróis agora tinham um rosto e os mortos deixavam de ser anônimos. A individualização das vítimas da guerra fazia seus custos humanos parecerem maiores.
A foto ganhava importância, enfim, como última imagem dos muitos que não voltaram. Os carte-de-visite transformaram-se em testemunhos de que aquelas pessoas, tão comuns, conviveram, no entanto, com algo extraordinário. Seu valor como objeto de afeto e documento histórico muda, se comparado aos realizados em tempo de paz.
Os retratos transformaram-se em algo novo. As fotos de prisioneiros paraguaios, feitas em Porto Alegre e mencionadas atrás, são um exemplo disso. A visão do "inimigo", subitamente transformado em ser humano, tocava até os mais duros defensores da guerra. O carte-de-visite transforma-se em documento histórico, em testemunho e denúncia. Como neste caso, muitos dos outros registros, de retratos a paisagens, feitos por evidente interesse comercial, tornaram-se, involuntariamente, documentos de crítica da guerra.
Isso porque, ao mesmo tempo que registravam o heroísmo dos combatentes, registravam também o acampamento mambembe, a precariedade dos exércitos, os homens desmazelados, os milhares de mortos, a miséria, enfim, de todos os contendores.
A visão crítica trazida pelos registros fotográficos e a impopularidade do conflito devido ao número de baixas, ausência de vitórias e o início dos recrutamentos compulsórios, já a partir de setembro de 1865, ajudam a explicar o pouco sucesso de edições de fotos exclusivamente dedicadas à guerra, como de Bate & Cia. Já bastavam as notícias textuais do conflito interminável.
As imagens da guerra não permitiam ufanismo, mesmo as de sua fase inicial. Vendo o inimigo prisioneiro, ou em pilhas de cadáveres, só se conseguia sentir pena. Longe de emularem os espíritos guerreiros, as fotos faziam desejar a paz.
As fotos do conflito também inauguraram a possibilidade de sua utilização como propaganda de guerra. Os registros da guerra do Paraguai, mesmo aqueles que foram utilizados em propaganda anti-López, iam muito além dos seus fins ideológicos imediatos. Denunciavam a estupidez da guerra.
Não se deve subestimar a importância do registro fotográfico, em formato carte-de-visite ou por meio de sua cópia e publicação em litografias pela imprensa da época, na formação de uma opinião pública contrária à continuidade do conflito nos países da Aliança, apenas um ano depois de seu início.
A crueza do assunto, em resumo, fez com que gêneros de fotografias já conhecidos, como retratos e paisagens, se transformassem em algo novo. A guerra "arejou" a fotografia em termos formais, dando-lhe liberdade de composição e escolha de assuntos novos. Ao trazer a fotografia para o campo do noticiário, fez com que deixasse de circular apenas como prova de afeto entre pessoas.
A guerra do Paraguai estabeleceu a importância da utilização jornalística da fotografia de guerra, mesmo por intermédio de cópias, em litografias, dos originais, no Brasil, na Argentina e, num grau menor, no Uruguai. A imprensa ilustrada, a gravura e a pintura devem muito à fotografia do período, utilizada por quase todos os autores do período como referência.
Mas a fotografia também desenvolveu uma linguagem própria, por meio dos álbuns, baseada na agilidade do registro e de sua rentabilidade comercial. Enquanto assunto, deixou de ser uma coisa familiar e privada e transformou-se em coisa de interesse público. A guerra, sem dúvida, ampliou os limites de produção e consumo da fotografia no cone sul.
A guerra do Paraguai com a Tríplice Aliança ocorreu contemporaneamente à descoberta de processos técnicos que permitiram, no período, uma oferta de imagens até então inédita, por meio da imprensa ilustrada e da gravura, da pintura e da fotografia.
Resultado de projetos nacionalistas oficiais e do próspero mercado de imagens, a iconografia da guerra do Paraguai não inovou apenas em trazer a guerra para junto da opinião pública. A rentabilidade comercial do assunto inaugurou a cobertura visual de conflitos, ao mesmo tempo que lançou e viabilizou as técnicas, a fotografia e a litografia, que possibilitariam sua continuidade. A pintura, apesar das altas taxas de visitação das exposições, esteve longe de poder acompanhar a rapidez com que se produziam imagens em estúdios fotográficos ou em redações de jornais. Tornava-se impossível, aos governos, evitar a "subversão imagística" trazida pela fotografia e pela imprensa ilustrada. Agora, a sociedade tinha outras imagens para contrapor à iconografia "oficial".
Diante da massa desordenada de informações e de novos assuntos trazidos pela fotografia, as pinturas acadêmicas transformaram-se em alegorias destinadas a prédios e repartições públicas. Não estiveram ao alcance do público durante a guerra a não ser em exposições na corte e em feiras internacionais.
Talvez a maior herança deixada por essa "febre de imagens" do período foi, primeiramente, esta possibilidade do seu uso jornalístico, ocorrida simultaneamente com uma certa "laicização", no sentido da sua maior independência em relação às representações quase oficiais da pátria. Não eram só os governos, afinal, os responsáveis pela formulação do que seriam as características nacionais desses países.
A pintura acadêmica subvencionada pelo Estado perdeu sua hegemonia de uma forma brusca, como forma de representação da nação. Extratos médios da população urbana, tecnicamente qualificados e politicamente excluídos, buscavam, como no caso brasileiro, formas de representatividade e cidadania num país real, longe das idealizações classicistas ou românticas. O "realismo" pretendido pela fotografia combinava com a tarefa de levantar, cientificamente, os problemas nacionais a que pretendia o pensamento progressista da época.
André Amaral de ToralDoutor em História Social pela FFLCH - USP
A TRANSCEDÊNCIA AO ALCANCE DE TODOS
A partir da invenção do daguerreótipo em 1839, impressão da imagem em metal, a fotografia deixou de ser apenas experimentação e tornou-se atividade profissional. Já a partir de 1842, daguerreotipistas norte-americanos anunciavam seus serviços no Brasil; em 1847, o Almanaque Laemmert anunciou três oficinas especializadas no Rio de Janeiro1.
O daguerreótipo, que só permitia um original montado como jóia em estojos especiais, teve, no entanto, circulação restrita. A técnica que permitiu a expansão da fotografia nas décadas de 1860 e 1870 foi a "dobradinha", negativo de colódio úmido e cópia sobre papel albuminado2. A elaboração de um negativo à base de colódio sobre chapas de vidro ou metal e a possibilidade de produção de múltiplas ampliações sobre papel agilizou a produção e reprodução de registros fotográficos, possibilitando um rentável aproveitamento comercial.
A reprodução de sua própria imagem, antes privilégio dos que podiam fazer-se retratar por um artista, amplia-se para um público mais amplo. A partir de 1854, popularizam-se pequenos retratos, chamados carte-de-visite por terem o tamanho de um cartão de visita. Eram destinados a serem oferecidos a amigos e parentes com indefectíveis dedicatórias escritas no verso onde aparecia como prova de amizade, despedida, saudação ou simplesmente para marcar um compromisso.
O costume, comum nos dias de hoje, de se trocar retratos com pessoas significativas, ou de colecioná-los, uma vez que não havia publicação de fotografias, formou-se explosivamente entre 1850 e 1870. A descoberta da disponibilidade da própria imagem, para um público que nunca tinha tido acesso a um retrato, era uma coisa quase mágica, que ia além daquilo que se considerava possível. Por intermédio da fotografia, cada família tinha possibilidade de construir uma crônica de si mesma, "coleção portátil de imagens que testemunha sua coesão"3.
Boris Kossoy afirma que "o retrato apresentado dessa forma tornou-se a moda mais popular que a fotografia assistiu em todo o século passado". Seu amplo consumo traria a padronização do produto fotográfico e de seu conteúdo, estereotipando cenários e poses dos retratados4.
A troca de cartões e o problema de como acondicioná-los daria início aos álbuns de fotografias, destinados aos temas mais diversos como família, amigos, autoridades e personalidades, paisagens, tipos humanos pitorescos, guerra, erótico etc.
Como resultado da popularidade dos carte- de-visite, multiplicavam-se os estúdios na maioria das capitais européias e, principalmente, nos Estados Unidos. Para se ter uma idéia da rapidez do processo, nesse último país, o total de fotógrafos passa de 938 em 1851 para 7.558 em 1870. Em Londres, os 66 fotógrafos de 1855 aumentaram para 284 em 1866. Em Paris, em 1861, 33 mil pessoas viviam da produção de fotografias5. Chegando a um tal grau de desenvolvimento do mercado produtor de fotografias, era de se esperar que pelo menos uma parte desse grande número de profissionais se voltasse à exploração de mercados ainda não saturados.
Todas as capitais dos países envolvidos na guerra do Paraguai, e boa parte de suas províncias, receberam a visita desses profissionais itinerantes vindos da Europa e dos Estados Unidos, que se anunciavam pela imprensa e partiam depois de "fazer a praça". Ao mesmo tempo que executavam seus retratos, procuravam registrar costumes ou lugares, para aproveitamento futuro, como material de gênero pitoresco, vendidas em álbuns ou foto por foto, no seu retorno aos seus países de origem.
O Rio de Janeiro, embora em parâmetros mais modestos, também experimentou um crescimento no seu número de fotógrafos: 11 em 1857 e 30 em 18646. Em 1869, o primeiro censo nacional da Argentina registrou 190 fotógrafos no país, 130 dos quais concentrados em Buenos Aires7. Montevideo, que lucrava com os fornecimentos para a guerra, também atraiu um bom número de fotógrafos entre 1863 e 1870. O Paraguai, mais isolado, recebeu, entre 1846 e 1870, cerca de sete fotógrafos itinerantes: norte-americanos, franceses, italianos e ingleses. Apenas um deles, Pedro Bernadet, ao que se sabe, chegou a estabelecer estúdio em Asunción, entre 1865 e 708.
Dos muitos estúdios atuantes no Brasil na segunda metade do século passado, vale destacar, utilizando-se os levantamentos de Bóris Kossoy, em São Paulo, o de Militão Augusto de Azevedo, Renouleau, Carlos Hoenen; no Rio, capital da fotografia no Império, os de José Ferreira Guimarães, Joaquim Insley Pacheco, Carneiro & Gaspar, Alberto Henschel & Cia.; em Salvador, Lindemann, Wilhelm Gaensly, João Goston; no Recife, Augusto Stahl, João Ferreira Villela, Labadie; em Porto Alegre, Luiz Terragno, Virgílio Calegari, entre outros9.
Movendo-se entre as capitais de províncias do Brasil e da Argentina, esses fotógrafos, cujo trabalho em boa parte permanece anônimo, produziram considerável quantidade de retratos de autoridades, tipos humanos utilizados para fotografias de gênero pitoresco (muito próximas das pinturas e desenhos de mesmo gênero) como índios e negros, soldados e principalmente de homens e mulheres de classes médias urbanas. Na Argentina, no Uruguai e no Brasil, os estúdios encontravam-se, em sua maioria, nas mãos de estrangeiros, principalmente norte-americanos, alemães, portugueses e franceses.
Além dos retratos, no mundo inteiro, um outro gênero de fotografias de paisagens urbanas e da natureza, panoramas, tipos e lugares pitorescos, vendidas unitariamente ou em tiragens montadas como álbuns também tiveram grande aceitação. Seu formato podia ser o de carte-de-visite ou o cabinet size, um pouco maior.
A fotografia desenvolveu-se como atividade comercial particular, sendo muito poucos os casos em que foi subvencionada por governantes. O único trabalho que recebeu apoio oficial, embora nenhuma subvenção, foi no Uruguai, onde uma firma norte-americana teve apoio para documentação da guerra do Paraguai.
Surpreendentemente, mesmo no Brasil, onde o imperador era fotógrafo amador e colecionador, a fotografia recebeu pouco apoio oficial. D. Pedro II conhecia os trabalhos dos profissionais mais renomados estabelecidos no Rio de Janeiro ou que visitavam a cidade. Fez-se retratar por boa parte deles. Concedeu o título "fotógrafo da Casa Imperial" a mais de duas dezenas de fotógrafos entre 1851 e 188910. Toda sua coleção particular, intitulada Coleção Teresa Cristina, com mais de vinte mil fotos, foi doada, após a proclamação da República e o exílio, à Biblioteca Nacional e ao Museu Nacional principalmente.
Fala-se muito no "mecenato" do Imperador11 mas, além de colecionador e entusiasta conhece-se apenas um fotógrafo que D. Pedro II teria apoiado efetivamente como "mecenas". Entre 1857 e 1862, gastou cerca de 12 contos e 27 mil réis por um trabalho de Victor Frond, um francês que tinha o projeto de fotografar os "cantos mais longínquos do Império". Até hoje, não se conhece nenhum original do trabalho, apenas as litografias feitas a partir das fotos que se encontram no álbum "Brasil Pittoresco", impresso em Paris.
O CARTE-DE-VISITE VAI À GUERRA
É nesse quadro de crescimento da importância comercial da fotografia que se deve ser buscar as origens do tipo de cobertura dada à guerra do Paraguai. Como se deduz facilmente, a maior parte da documentação fotográfica da guerra é representada pelos milhares de carte-de-visite de soldados a generais feitos entre 1864 e 1870. As melhores coleções de material fotográfico sobre a guerra são os álbuns, formados de carte-de-visite dedicados ao tema, que se salvaram no tempo.
De novembro de 1864 até o final do ano seguinte, as declarações de guerra do Paraguai, seguidas de invasões ao Brasil e à Argentina, causaram uma onda de indignação na opinião pública desses dois países. Exigia-se uma resposta militar. Mitre e D. Pedro II experimentaram um efêmero momento de grande popularidade, como defensores de seus respectivos países, ameaçados por um ataque "traiçoeiro", embora perfeitamente esperado.
Os fotógrafos aproveitavam esse clima de patriotismo inicial que imperava nas capitais dos países que formariam a Tríplice Aliança. Em praticamente todas as cidades havia muita procura de retratos dos soldados que partiam para a guerra ou que já se encontravam em campanha.
Diversos estúdios ofereciam retratos dos governantes que formavam a Aliança, ou carte-de-visite de personagens políticos ou comandantes militares, vendidos separadamente. Nos jornais do Brasil e da Argentina, anunciavam-se descontos especiais para retratos de soldados.
Esse clima contagiou até o severo D. Pedro II que, como muitos outros soldados, fez-se retratar em trajes militares, "uniforme de gala e traje de campanha", em dois carte-de-visite feitos por Luiz Terragno, em 1865, provavelmente em Porto Alegre. Procurando dar o exemplo como "primeiro voluntário da pátria", o imperador brasileiro tentava se identificar com o cotidiano de soldados e oficiais, ao menos nos seus sinais exteriores, como vestir uniforme e tirar fotografias.
A guerra, evidentemente, era um grande negócio para os fotógrafos. E naquele momento, era a melhor coisa aparecida desde a invenção do carte-de-visite. O conflito inaugurou uma competição feroz12 entre os fotógrafos que disputavam o enorme mercado, representado pelos milhares de soldados. Durante todo o período de mobilização de tropas, esses profissionais fizeram excelentes negócios, fotografando os jovens soldados em seus flamantes uniformes.
A quantidade de carte-de-visite retratando militares no mundo inteiro, a partir de 1860, foi tão grande que chegou a marcar, segundo alguns autores, o surgimento da fotografia militar. Nesse aspecto, a guerra do Paraguai foi a mais fotografada da América, de forma similar à guerra da Secessão nos Estados Unidos13.
A guerra, de resto, já servia como tema à fotografia há bastante tempo. A produção de retratos e de paisagens, cenas do front e outros temas militares iniciou-se provavelmente com os daguerreótipos sobre a guerra entre México e Estados Unidos (1846-48), prosseguindo depois com as guerras Sikh (1848-49) na Índia inglesa, guerra da Birmânia (1852), guerra da Criméia (1854-56), onde Inglaterra, França e Turquia lutaram contra a Rússia, rebelião dos Cipaios ou Indian Mutiny na Índia inglesa (1857-59) e finalmente, a guerra civil norte-americana (1860-65)14. Correspondentes fotográficos do The Times e do Illustrated London News acompanharam in loco as operações militares da guerra da Criméia, que teve a maior quantidade de imagens. Os retratos, dada a impossibilidade técnica de serem reproduzidos pela imprensa na época, eram copiados através de litografias e publicados.
O interesse na produção e divulgação de material sobre guerra, em geral, foi descoberto pelos fotógrafos e pela imprensa ilustrada no Brasil em função do conflito com o Paraguai. Terminada a guerra, os jornais começaram, imediatamente, a divulgar imagens sobre o conflito franco-prussiano que então se iniciava. Em termos de imagens, como se verá melhor na parte dedicada à imprensa ilustrada, havia necessidade de uma guerra, qualquer uma.
O registro da guerra do Paraguai foi de pequeno interesse para os war corresponsals europeus e norte-americanos. Apenas uma firma norte- americana sediada em Montevideo mandou correspondentes para registrar a guerra, e não só para tirar retratos como todos os outros fotografos que fizeram a campanha do Paraguai. Isso não quer dizer que não havia interesse em imagens do conflito na Europa. Ao contrário. Revistas francesas, como L'Illustration, Tour de Monde, entre outras, reproduziram em litografias, entre 1864 e 1870, abundante material a partir de fotos sobre a guerra. A imprensa inglesa e norte-americana publicava, desigual e esporadicamente, litografias feitas sobre fotos.
EM TENDAS E BARRACOS: OS FOTÓGRAFOS NO "TEATRO DE OPERAÇÕES"
Os fotógrafos seguiram os exércitos aliados pelos seis anos que durou o conflito, de 1864 e 1870, no Brasil, na Argentina e interior do Paraguai. Durante todo esse tempo, fotógrafos que estiveram no "teatro de operações" militares atuaram a partir de Uruguaiana, Corrientes e Rosário, na fase inicial da guerra; depois, no extremo sul do território paraguaio, Tuiuti, Paso da Pátria e Tuiu-cuê, acampando junto aos exércitos aliados; estiveram em Humaitá sitiada e ocupada e, finalmente, em Asunción na última fase.
Devido à itinerância dos fotógrafos e às dificuldades de registro de suas passagens, nunca se saberá ao certo quantos e quais profissionais estiveram na guerra do Paraguai. A identificação do material que chegou aos nossos dias também é problemática. Uma boa parte dos carte-de-visite permanece com autoria anônima. Autores dos mais conhecidos, como Esteban Garcia e sua equipe enviados por Bate & Cia., têm diversas atribuições duvidosas.
Enquanto a guerra desenrolou-se no Rio Grande do Sul, até a rendição da coluna invasora de Estigarríbia em Uruguaiana, em setembro de 1865, muitos fotógrafos gaúchos e uruguaios foram favorecidos pela proximidade com o front. É o caso, entre outros, de Luiz Terragno que retratou o imperador em Porto Alegre; e, em Montevideo, de Saturnino Masoni, que editou uma série de cópias com a imagem do Gal. Venancio Flores, presidente e comandante do exército uruguaio.
Montevideo, como porto de passagem, recebeu milhares de soldados da Aliança durante toda a guerra. Os estúdios de Desiderio Jouant, Chutte & Brooks e Bate & Cia realizaram centenas de retratos15. Além disso, foram mencionados outros profissionais que trabalharam como retratistas na capital oriental durante a guerra, como Alfredo Vigouroux, Anselmo Fleurquin, Enrique Schikendantz, Martínez y Bidart, George Bate e Juan Wander Weyde.
Os fotógrafos argentinos, ou que a partir da Argentina faziam seus negócios, também foram favorecidos pela proximidade com seus estúdios na primeira fase da guerra. É o caso, dentre outros, em Rosário, do alemão Jorge Enrique Alfed, e em Corrientes, de Pedro Bernadet16.
Depois da rendição da coluna de Estigarríbia, alguns prisioneiros paraguaios foram levados a Porto Alegre e fotografados pela iniciativa de um oficial brasileiro, cujo nome se perdeu. O fotógrafo também é desconhecido. Uma das fotos traz a legenda: "Soldado paraguaio Antonio Gomes, prisioneiro em Uruguaiana. Tem 21 anos de idade. Natural da vila de Jaguarão, no Paraguai. Mandei tirar este retrato em Porto Alegre, em 27 de abril de 1867". Como a rendição paraguaia ocorreu em 18 de setembro de 1865, este e os outros que compõem uma série de aproximadamente seis retratos de prisioneiros, atualmente na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, esperaram sete meses para serem feitos.
O retrato de prisioneiros paraguaios parece ter se tornado prática comum entre os retratistas que atuaram ao lado das tropas da aliança. Diversos profissionais, todos anônimos, retratavam oficiais e soldados paraguaios, vendendo as fotos em formato carte-de-visite.
Após a derrota dos aliados em Curupaití, em setembro de 1866, a guerra sofreu uma parada, em que os aliados trocaram seus comandantes e reorganizaram seu exército. As operações militares decisivas só seriam retomadas a partir de setembro de 1867. Esse período, em que os aliados permaneceram estacionados em Tuiutí, representou uma verdadeira benção para os fotógrafos: eram milhares de potenciais clientes acantonados. Foi grande a produção nesse período. Centenas de carte-de-visite retratam os soldados aliados, com o acampamento como fundo. O cotidiano do grande exército imobilizado foi registrado por diversos fotógrafos anônimos: a rua do comércio, uma procissão no acampamento, a guarda do general Caxias, soldados ao redor do fogo etc.
Outras fotos, como a que leva a legenda "officiaes brasileiros, de volta de uma descoberta", apesar de evidentemente arranjadas, são uma tentativa de se chegar perto da ação no front, ao retratar homens que retornam de uma patrulha junto às linhas inimigas.
Após a conquista de Humaitá, em julho de 1868, a guerra mudou seu curso: uma série de vitórias aliadas foi o prenúncio do fim do conflito. Carlos Cesar, fotógrafo do Rio de Janeiro, esteve em Humaitá ocupada nesse ano, fazendo retratos de exterior e interior da igreja destruída na antiga fortaleza paraguaia e no acampamento brasileiro em Tuiu-cuê, fotografando oficiais brasileiros em suas barracas e ranchos.
As crianças paraguaias, que disfarçadas de soldados com barba postiça e rifles de madeira lutaram na última fase da guerra, também foram retratadas. No Museu Histórico de Buenos Aires conservam-se as duas fotografias em formato carte-de-visite que mostram corpos lacerados de meninos, ao que tudo indica infantes sobreviventes das batalhas de Lomas Valentinas e Acostañu. Cuarterolo afirma que se trata do único exemplo que sobrevive do uso da imagem como "instrumento político" durante a guerra do Paraguai17. Isso devido ao emprego que foi dado aos retratos, utilizados como "prova" de que o regime de López não tinha o menor escrúpulo em sacrificar qualquer habitante do Paraguai para se manter no poder.
No final, numa Asunción ocupada, apareceu um inglês radicado em Montevideo, John Fitzpatrick, que realizou fotografias da cidade, dos prisioneiros etc. Numerosas vistas da cidade foram também produzidas por fotógrafos anônimos, mostrando a estação de trens, a catedral etc.
A partir de 1869 e até 1870, aparece uma série de fotos tomadas no Paraguai, de autoria anônima, que mostrava o país derrotado e os sinais do afastamento de López do poder: o palácio de López ocupado pela infantaria brasileira e com uma torre a menos, efeito dos bombardeios da esquadra imperial, a propriedade rural de madame Lynch em Patiño-Cue cercada de tendas do exército brasileiro, festas e comemorações de militares, trincheiras aliadas e tropas brasileiras em manobras próximas à capital paraguaia.
O francês Pedro Bernadet, que também trabalhou em Corrientes, realizou, em Asunción, uma série de fotos do marechal López, de seu filho Panchito, de madame Lynch e outros personagens entre 1865 e 187018. Uma conhecida foto de Francisco López, taciturno, pouco tempo antes de sua morte, também foi de sua autoria.
ESTEBAN GARCIA: FOTÓGRAFO DE BATE & CIA.
A documentação fotográfica da guerra do Paraguai, apesar do volume de retratos produzidos, ficou marcada pela iniciativa do estúdio e firma Bate & Cia. de Montevideo, que mandou Esteban Garcia, um técnico uruguaio, para produzir uma série de fotografias sobre o conflito entre abril e setembro de 1866.
Chegados ao Prata em 1859, os norte-americanos Bate estabeleceram-se como fotógrafos em Montevideo em junho de 1861. O estúdio era de propriedade de George Thomas Bate e seu irmão, do qual não se conhece o prenome. A empresa tinha sucursais em Londres e em La Havana, ao que tudo indica a cargo do irmão de George Bate, que retornou à Inglaterra em 186119.
No final de 1864 e início do ano seguinte, os fotógrafos de Bate & Cia. registraram o bombardeio de Paisandu, cidade uruguaia que resistia às forças de Flores, apoiado por brasileiros e argentinos. Seis imagens foram editadas com o título "Paysandú, 2 de enero de 1865" e postas à venda. O "Álbum de Paysandú", no Arquivo Histórico de la Armada Argentina, traz estas fotografias e outras referentes ao episódio20.
Além dessa experiência, certamente os irmãos Bate conheciam o trabalho dos fotógrafos britânicos na guerra da Criméia e de Mathew Brady e sua equipe na guerra de Secessão. Em 1865, Wander Weyde passou a ser o proprietário de Bate & Cia., que continuou mantendo o nome dos antigos proprietários.
Foi Wander Weyde, um químico belga, quem realizou as gestões junto ao governo uruguaio para obtenção de salvo-conduto a fim de que seus fotógrafos pudessem presenciar as operações do sudeste paraguaio. Apesar de não ter caráter oficial, a expedição contou com auxílio de transporte das autoridades, obtendo, inclusive, a exclusividade de comercialização das fotos até seis meses depois de finalizada a guerra.
Embora a empresa fosse, na época, propriedade de Weyde, foi inegável a participação dos Bate no projeto de fazer um registro da guerra. Esteban Garcia, o mais hábil profissional da firma, chefiava os trabalhos, realizados entre maio e setembro de 1866, dezesseis meses depois de Paisandu21. Na verdade, o período em que Garcia esteve na guerra é algo nebuloso. Diversas fotografias que lhe foram atribuídas têm datas posteriores a esse período. É o caso da foto que registra a saída do comboio do Marquês de Caxias de Tuiu-cuê, onde os aliados só chegariam em julho de 1867.
Garcia deixou registrada a crueza da vida de trincheira: os soldados e oficiais uruguaios, brasileiros e argentinos, hospitais e missas, prisioneiros paraguaios, baterias de artilharia, o front com as linhas inimigas ao fundo, cadáveres paraguaios abandonados etc. Vale menção especial uma foto da Legião paraguaia, formada por Flores e integrada por paraguaios adversários de López.
Também dedicou atenção especial às paisagens que serviram de palco para os combates, como as ruínas da tomada de Itapiru (18 de abril de 1866) ou da batalha do Sauce, ou Boqueirão (18 de julho de 1866).
Garcia conseguiu também o primeiro "instantâneo" da guerra, ao retratar o coronel uruguaio León Palleja no exato instante que, ferido mortalmente na batalha do Boqueirão, foi levado numa maca para a retaguarda. Soldados negros do batalhão uruguaio Florida apresentam armas ao respeitado oficial, um dos melhores cronistas da primeira fase da guerra.
Mas a foto mais impressionante do conjunto, e de toda a guerra talvez, é a que se intitula "montón de cadáveres paraguayos" e que retratou precisamente corpos ressecados de soldados mal cobertos por panos, provavelmente vítimas insepultas dos combates de 24 de maio de 1866. Esta foto e a que mostra as crianças paraguaias sobreviventes dos combates de Lomas Valentinas e Acosta-ñu, de autoria desconhecida, são, sem dúvida, os registros fotográficos mais dramáticos da violência da guerra.
Garcia trabalhava com grandes negativos de colódio úmido sobre placa de vidro de 20 por 14 cm, em precários laboratórios montados em tendas de campanha. Acampava junto às tropas uruguaias. Ao contrário de seus colegas, não parece ter tirado retratos de soldados, dedicando-se exclusivamente às "vistas da guerra".
No final de 1866, a primeira série de dez fotografias foi posta à venda, em cópias no tamanho original do negativo. Ao que tudo indica, o empreendimento não teve muito êxito. Depois de Curupaiti (22 de setembro de 1866) e da morte de milhares de jovens nas trincheiras paraguaias, "a guerra se converteu em um assunto impopular para a sociedade rioplatense"22. Se as fotos não venderam como o esperado, pelo menos parece terem sido reproduzidas em volume considerável, inclusive em formato carte-de-visite, até muito tempo depois da venda do estúdio.
Raras coleções particulares da época não trazem pelo menos uma das fotos tiradas por Bate & Cia. As coleções pessoais de Mitre e de D. D. Pedro II, por exemplo, não são exceções. A última possui o álbum "La guerra contra el Paraguay. Bate & Cia. W, Montevideo", com 12 fotos.
Em fevereiro de 1867, Weyde anunciou a venda do estúdio. O novo proprietário, de posse dos negativos do Paraguai e Paisandu, anunciou uma nova coleção de 21 vistas da guerra. Os atores mudavam, os negócios prosseguem.
O FOTÓGRAFO NO ACAMPAMENTO
A novidade para os fotógrafos itinerantes envolvidos na cobertura da guerra, era, digamos, a situação de campo. Acostumados às condições de vida em cidades, tiveram que se transportar e ao seu equipamento em carros de boi por milhares de quilômetros até os acampamentos das tropas, onde se acomodavam como podiam em tendas ou em desmantelados barracos de palha, meio cobertos por lonas. Uma litografia, feita sobre fotografia, e publicada na Vida Fluminense em 1866, dá uma imagem das duras condições de vida dos fotógrafos no pobre rancho descrito como "Estabelecimento de Erdmann & Catermole", na ilha Serrito.
Os profissionais dos carte-de-visite estabeleciam-se próximos às "ruas do Comércio", existente nos acampamentos das tropas da Aliança durante quase toda a guerra. Recebiam a clientela em seus precários estúdios ou indo até suas tendas e barracas. Às fotos feitas em estúdio, com cortinas com desenhos geométricos gregas, colunas e balaustradas greco-romanas, agora se somavam aquelas feitas com fundo natural e de inspiração guerreira: tendas, fogueiras, sarilhos, espadas penduradas, enfim, o acampamento e suas rústicas condições. Outros fotógrafos, como os enviados por Bate & Cia. de Montevideo em 1866, montaram sua tenda em pleno acampamento de tropas em Tuiuti, junto a um posto de observação elevado, mangrullo.
Se, para profissionais brasileiros ou que atuavam no Brasil, a situação de fotografar numa guerra era uma novidade, o mesmo não pode ser dito dos argentinos. Existia, na Argentina, uma tradição de registros fotográficos de conflitos internos, anterior à guerra do Paraguai23. De 1853 a 1862, durante a luta dos estados argentinos (com os Federalistas da Confederação Argentina, com capital na cidade de Paraná, disputando o controle da nação com os Unitários do Estado de Buenos Aires, sediados na cidade de mesmo nome), daguerreotipistas e fotógrafos registraram continuamente retratos de caudilhos, montoneros insurretos e exércitos regulares.
As primeiras fotografias tomadas em Buenos Aires já podiam ser consideradas fotografias militares, visto que uma delas mostra o exército de Urquiza entrando na cidade após a derrota de Rosas e outra é o retrato do vencedor24. O formato carte-de-visite veio acentuar a produção de retratos militares, mas não fundou o gênero, como no Brasil.
Além de saírem do estúdio das cidades e de se transportarem para os acampamentos militares, os fotógrafos da guerra souberam incorporar novidades na composição de seus trabalhos, que ganhavam em realismo, deixando de ser apenas "retratos". Até o mais prosaico carte-de-visite passava, por força do momento, a adquirir significado especial como um documento histórico.
OS RETRATOS DA GUERRA
Até a guerra do Paraguai, nunca se tinha visto imagens de tropas do Brasil combatendo, muito menos no exterior. Na Argentina e no Uruguai já se conheciam daguerreótipos e fotografias de episódios militares da conturbada vida política desses dois países entre as décadas de 1840 a 1860. O público desses países podia ver, por meio das fotografias, não só as tropas nacionais mas também o "inimigo".
Mesmo explorando gêneros e temas de fotografias já consolidados, como retratos e paisagens sobre temas militares, o conjunto de material produzido apresenta significativas diferenças em relação à produção anterior ou dos tempos de paz. Qualquer que fosse o assunto, a guerra como que transformou a qualidade do material produzido.
As tentativas, ainda que hoje nos pareçam precárias, de se captar a ação nas linhas de combate são significativas. As fotos de "officiaes brasileiros, de volta de uma descoberta", de um oficial argentino, pretensamente em combate e armado de sabre e revólver, ou o retrato da morte do coronel Palleja são tentativas de fazer o registro fotográfico ganhar agilidade, escapando da previsibilidade e imobilidade do estúdio.
Os fotógrafos abandonaram uma certa rigidez na composição das fotos em ambientes fechados e passaram, dadas as condições, a fazer retratos em campo aberto, em meio a tendas, baterias de canhões, cadáveres, barracas e soldados. Muitas fotos, infelizmente anônimas, fizeram do cotidiano do acampamento guerreiro o seu fundo. Temos fotos que, ao contrário do que era feito na época, cultivavam uma realidade sem retoques, com os personagens em situações apresentadas como espontâneas, não em poses rígidas.
Para a fotografia da época, cujo enquadramento e composição eram regidos pela lógica de composição da pintura acadêmica, aquilo era uma mudança. Não era uma alteração no panorama internacional da fotografia, uma vez que trabalhos como o de Mathew Brady sobre a guerra civil norte-americana já traziam muitas dessas "novidades". Era uma inovação, no entanto, no tipo de fotografia que se fazia no cone sul nas décadas de 1850 e 60.
Em termos formais, a guerra do Paraguai arejou as composições das fotos mas o assunto tornou-as mais pesadas, mais "históricas". De qualquer forma, os profissionais envolvidos, pelas condições e pelo assunto, foram forçados a adotar soluções originais para uma situação nova, que a maioria deles nunca havia fotografado: retratar civis em trajes domingueiros num estúdio era bem diferente de retratar soldados no campo de batalha.
As particularidades do acompanhamento da guerra faziam os fotógrafos, principalmente os que atuavam próximos ao front, a repensarem alguns dos fundamentos do ofício: como trabalhar com o instável colódio no calor e umidade, como fazer a composição das fotos fora do estúdio, como fazer retratos "naturais" de soldados e paisagens, como fotografar novas poses e assuntos pedidos pelos próprios soldados etc.
Mesmo os simples retratos ganhavam dramaticidade. Muitos dos retratados, a maioria oficiais que podiam pagar para terem sua imagem imortalizada, morriam pouco tempo depois em combate ou por doenças. A imprensa ilustrada, principalmente no Brasil e menos na Argentina e no Uruguai, reproduzia litografias dos bravos que morriam baseados em cópias de carte-de-visite. Os heróis agora tinham um rosto e os mortos deixavam de ser anônimos. A individualização das vítimas da guerra fazia seus custos humanos parecerem maiores.
A foto ganhava importância, enfim, como última imagem dos muitos que não voltaram. Os carte-de-visite transformaram-se em testemunhos de que aquelas pessoas, tão comuns, conviveram, no entanto, com algo extraordinário. Seu valor como objeto de afeto e documento histórico muda, se comparado aos realizados em tempo de paz.
Os retratos transformaram-se em algo novo. As fotos de prisioneiros paraguaios, feitas em Porto Alegre e mencionadas atrás, são um exemplo disso. A visão do "inimigo", subitamente transformado em ser humano, tocava até os mais duros defensores da guerra. O carte-de-visite transforma-se em documento histórico, em testemunho e denúncia. Como neste caso, muitos dos outros registros, de retratos a paisagens, feitos por evidente interesse comercial, tornaram-se, involuntariamente, documentos de crítica da guerra.
Isso porque, ao mesmo tempo que registravam o heroísmo dos combatentes, registravam também o acampamento mambembe, a precariedade dos exércitos, os homens desmazelados, os milhares de mortos, a miséria, enfim, de todos os contendores.
A visão crítica trazida pelos registros fotográficos e a impopularidade do conflito devido ao número de baixas, ausência de vitórias e o início dos recrutamentos compulsórios, já a partir de setembro de 1865, ajudam a explicar o pouco sucesso de edições de fotos exclusivamente dedicadas à guerra, como de Bate & Cia. Já bastavam as notícias textuais do conflito interminável.
As imagens da guerra não permitiam ufanismo, mesmo as de sua fase inicial. Vendo o inimigo prisioneiro, ou em pilhas de cadáveres, só se conseguia sentir pena. Longe de emularem os espíritos guerreiros, as fotos faziam desejar a paz.
As fotos do conflito também inauguraram a possibilidade de sua utilização como propaganda de guerra. Os registros da guerra do Paraguai, mesmo aqueles que foram utilizados em propaganda anti-López, iam muito além dos seus fins ideológicos imediatos. Denunciavam a estupidez da guerra.
Não se deve subestimar a importância do registro fotográfico, em formato carte-de-visite ou por meio de sua cópia e publicação em litografias pela imprensa da época, na formação de uma opinião pública contrária à continuidade do conflito nos países da Aliança, apenas um ano depois de seu início.
A crueza do assunto, em resumo, fez com que gêneros de fotografias já conhecidos, como retratos e paisagens, se transformassem em algo novo. A guerra "arejou" a fotografia em termos formais, dando-lhe liberdade de composição e escolha de assuntos novos. Ao trazer a fotografia para o campo do noticiário, fez com que deixasse de circular apenas como prova de afeto entre pessoas.
A guerra do Paraguai estabeleceu a importância da utilização jornalística da fotografia de guerra, mesmo por intermédio de cópias, em litografias, dos originais, no Brasil, na Argentina e, num grau menor, no Uruguai. A imprensa ilustrada, a gravura e a pintura devem muito à fotografia do período, utilizada por quase todos os autores do período como referência.
Mas a fotografia também desenvolveu uma linguagem própria, por meio dos álbuns, baseada na agilidade do registro e de sua rentabilidade comercial. Enquanto assunto, deixou de ser uma coisa familiar e privada e transformou-se em coisa de interesse público. A guerra, sem dúvida, ampliou os limites de produção e consumo da fotografia no cone sul.
A guerra do Paraguai com a Tríplice Aliança ocorreu contemporaneamente à descoberta de processos técnicos que permitiram, no período, uma oferta de imagens até então inédita, por meio da imprensa ilustrada e da gravura, da pintura e da fotografia.
Resultado de projetos nacionalistas oficiais e do próspero mercado de imagens, a iconografia da guerra do Paraguai não inovou apenas em trazer a guerra para junto da opinião pública. A rentabilidade comercial do assunto inaugurou a cobertura visual de conflitos, ao mesmo tempo que lançou e viabilizou as técnicas, a fotografia e a litografia, que possibilitariam sua continuidade. A pintura, apesar das altas taxas de visitação das exposições, esteve longe de poder acompanhar a rapidez com que se produziam imagens em estúdios fotográficos ou em redações de jornais. Tornava-se impossível, aos governos, evitar a "subversão imagística" trazida pela fotografia e pela imprensa ilustrada. Agora, a sociedade tinha outras imagens para contrapor à iconografia "oficial".
Diante da massa desordenada de informações e de novos assuntos trazidos pela fotografia, as pinturas acadêmicas transformaram-se em alegorias destinadas a prédios e repartições públicas. Não estiveram ao alcance do público durante a guerra a não ser em exposições na corte e em feiras internacionais.
Talvez a maior herança deixada por essa "febre de imagens" do período foi, primeiramente, esta possibilidade do seu uso jornalístico, ocorrida simultaneamente com uma certa "laicização", no sentido da sua maior independência em relação às representações quase oficiais da pátria. Não eram só os governos, afinal, os responsáveis pela formulação do que seriam as características nacionais desses países.
A pintura acadêmica subvencionada pelo Estado perdeu sua hegemonia de uma forma brusca, como forma de representação da nação. Extratos médios da população urbana, tecnicamente qualificados e politicamente excluídos, buscavam, como no caso brasileiro, formas de representatividade e cidadania num país real, longe das idealizações classicistas ou românticas. O "realismo" pretendido pela fotografia combinava com a tarefa de levantar, cientificamente, os problemas nacionais a que pretendia o pensamento progressista da época.
NOTAS
Revista Brasileira de História
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