A história do capitalismo mostra que o sistema econômico enfrenta abalos financeiros desde o século XVII e que as crises estão ligadas ao eterno processo de empréstimos, investimentos e inadimplências
POR MARCOS LOBATO MARTINS
Multidão de investidores reunidos do lado de fora do Banco dos Estados Unidos, após anunciar falência, em 1931
Em setembro de 2008, o estouro da "bolha imobiliária" americana deu início a uma crise financeira de enormes proporções. Há quem chame essa crise de "o primeiro crash da globalização". Outros a vêem como o início do fim do "império norte-americano" e a certidão de óbito do neoliberalismo. Para os historiadores econômicos, a assombrosa perda de riqueza que está ocorrendo agora, graças ao derretimento do sofisticado mercado financeiro construído nos países centrais, evidencia algo mais prosaico, embora terrível: o capitalismo é inseparável de crises financeiras agudas. A história do capitalismo pode ser contada, portanto, por meio dos dramáticos enredos das numerosas crises financeiras que ele engendra. É o que se propõe neste artigo, com a devida brevidade.
LUCRO, COMPETITIVIDADE E INSTABILIDADE
Considerado o criador da moderna economia, o escocês Adam Smith (1723-1790), no livro A Riqueza das Nações, apreendeu o princípio motor do capitalismo: "Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu próprio auto-interesse". É a vontade de obter dinheiro e lucro que anima os agentes econômicos, que faz os mercados funcionarem e, segundo Smith, promoverem, de lambuja, o bem-estar dos indivíduos e da coletividade. O mercado capitalista, sob o regime do laissez-faire (deixai estar), produziria a marcha inelutável para o progresso. Ao Estado, caberia apenas garantir a ordem e a segurança contra os inimigos externos.
O alemão Karl Marx, fundador da teoria marxista, que influenciou as grandes revoluções do século XX
As crises econômicas e as revoluções sociais do século XIX colocaram em xeque a visão idealizada do liberalismo de Adam Smith. Karl Marx (1818- 1883), o mais eminente crítico do capitalismo, construiu uma poderosa e influente interpretação da economia capitalista, na qual ganharam relevo as falhas - e, portanto, as crises - inerentes à dinâmica das forças de mercado. O ponto de partida do marxismo é o mesmo: o mercado é o princípio organizador da sociedade capitalista, de maneira que essa sociedade está presa a forças subterrâneas que têm vida própria. No interior do mercado, movem-se indivíduos impulsionados pelo desejo de ganhar dinheiro, de acumular capital.
O mecanismo da competição econômica, segundo Marx, gerava simultaneamente tanto a riqueza quanto a pobreza, bem como a tendência à concentração dos capitais. Mas a trajetória da economia capitalista não é suave, tampouco apenas ascendente. Marx dedicou bastante atenção aos solavancos da roda da fortuna capitalista. Assinalou a tendência recorrente da economia de perder impulso e até mesmo de ir para trás, vivendo em "ciclos", passando de períodos de expansão para períodos de contração.
A explicação para os ciclos pode ser encontrada nos excessos e desajustes de oferta e demanda, nas retrações de crédito, nas variações de otimismo e pessimismo entre os agentes econômicos, no aparecimento de rupturas tecnológicas ou institucionais e alterações nas relações de força entre trabalho e capital (embates entre sindicatos, empresas, governos e opinião pública).Enfim, a interpretação de Marx põe em relevo três características do capitalismo histórico: a) aguda instabilidade; b) baixa previsibilidade; e c) difícil governabilidade.
Para se ter uma idéia da montanha-russa que é a economia capitalista, basta lembrar que, desde 1790, há registros confi- áveis de pelos menos 46 ciclos econômicos irregulares. Entre 1854 e 1919, a duração média de uma recessão era de 22 meses; nos Estados Unidos, a economia se retraía em média a cada 49 meses. Mesmo nos tempos atuais, as crises econômicas continuam freqüentes. Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), desde 1970 ocorreram 124 crises financeiras pelo mundo afora.
"Irei até o Paraíso (...) onde se vendeu a primeira ação do mundo. EVA COMPROU-A À SERPENTE, COM ÁGIO, VENDEU-A A ADÃO, também com ágio, até que ambos faliram. Machado de Assis, crônica de 23/10/1892"
Mais de mil homens desempregados marcham em direção à Tesouraria de Perth, na Autrália ocidental, para ver o Premier Sir James Mitchell, em 1931
Tendo em vista essas características do capitalismo, o economista Hyman Minsky (1919-1996), um dos pioneiros no estudo de crises financeiras, observou ironicamente, em 1982, que o mais significativo evento econômico desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) "é algo que não aconteceu: não houve uma depressão profunda e duradoura" na economia internacional.
CRESCIMENTO, CRÉDITO E MERCADO FINANCEIRO
O capitalismo depende da propensão para o consumo, fato que Henry Ford (1863-1947) expressou muito bem quando afirmou: "Quem faz o emprego do trabalhador é o consumidor, que é o próprio trabalhador". Para manter a pleno gás o reator da demanda, as empresas começaram a criar, elas próprias, as necessidades de novos bens e serviços, incrementando a pesquisa, o projeto e o marketing. Seduzidos, os consumidores precisam de crédito para comprar os bens e serviços que anseiam. As empresas também precisam de crédito para expansão de seus negócios, capital de giro, financiamento de inovações e da comercialização e de quem lhes ajudasse a lançar títulos nos mercados de capitais. Por isso.mesmo, os bancos são peças vitais da engrenagem capitalista contemporânea. Sem eles, a economia pára de funcionar.Os bancos operam, por natureza, alavancados.
No sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Essa cadeia liga os bancos entre si e aos clientes
Eles criam dinheiro, na medida em que possuem capacidade de gerar meios de pagamento. Os depósitos à vista que os bancos captam de indivíduos e empresas são multiplicados por meio de empréstimos para terceiros, inclusive outros bancos. Assim, o sistema bancário cria crédito e possibilita negócios que não seriam viáveis sem ele. O decisivo, porém, é o fato de que, no sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Uma cadeia intricada de créditos e débitos liga invisivelmente os bancos entre si e com seus clientes. De modo que a falência de um banco pode ser vista como a derrocada do sistema bancário, causando prejuízos generalizados.
O empresário Henry Ford, o inventor Thomas Edison, e o empreendedor Harvey Firestone, em 1929 - eles colaboraram para a formação das grandes indústrias
A posição estratégica dos bancos na economia é algo relativamente recente. Nos primórdios do capitalismo, o período mercantilista dos séculos XV a XVIII, a atividade principal dos bancos concentrou-se no financiamento da dívida pública dos Estados europeus (garantida por impostos) e do comércio a longa distância (monopolizado por companhias privilegiadas). Na Inglaterra da Revolução Industrial (1760-1830), os bancos mantiveram sua atuação tradicional, participando marginalmente do financiamento dos novos empreendimentos fabris.
As atividades industriais lançaram mão de economias familiares e do reinvestimento de lucros gerados pelas próprias indústrias, algo possível naqueles tempos pioneiros, uma vez que os capitais exigidos pelas fábricas eram relativamente modestos. Na segunda metade do século XIX, o papel dos bancos, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, sofreu transformações de monta. Enquanto os bancos ingleses aumentaram suas operações de desconto mercantil e reforçaram sua função de sistema de crédito internacional, as instituições financeiras americanas e alemãs assumiram a função de antecipação de capitaldinheiro para as empresas, colocando o crédito a serviço da formação de corporações econômicas gigantescas.
Na Holanda, no século XVII, as tulipas viraram uma febre: elas eram trocadas por terras, animais e casas
O capital a juros dos bancos, sob forma "livre" e líquida, possibilitou a fusão dos interesses entre os bancos e a indústria, concretizada na forma das "sociedades anônimas" no final do século XIX. A propósito, escreveu o economista inglês John Hobson (1858-1940), autor do livro Th e Evolution of Modern Capitalism: "Quando nos damos conta do duplo papel desempenhado pelos bancos no financiamento das grandes companhias, primeiramente como promotores e subscritores (e freqüentemente como possuidores de grandes lotes de ações não absorvidas pelo mercado) e, em segundo lugar, como comerciantes de dinheiro - descontando títulos e adiantando dinheiro - torna-se evidente que o negócio do banqueiro moderno é a gestão financeira geral e que a dominação financeira da indústria capitalista é exercida fundamentalmente pelos bancos".
Esse processo deu origem a uma "classe fi- nanceira", que torna a gestão empresarial intrinsecamente especulativa, repleta de práticas destinadas a ampliar "ficticiamente" o valor do capital existente. Essas práticas só podem ter livre curso com o alargamento do crédito, exigindo a constituição de enorme e complexo aparato financeiro. O "financista" utiliza sua função de direção dos fluxos de capital, que é legítima e profícua, para desenvolver abusivamente métodos de ganho privado, manipulando, como feiticeiro, pilhas de papéis e estimativas de retornos e riscos para atrair a confiança de poupadores que lhes destinam suas economias.
PRIMÓRDIO DAS CRISES: A BOLHA DAS TULIPAS
Desde o surgimento dos bancos na Idade Média, a história das finanças é repleta da imagem de investidores arruinados com os resultados da própria cupidez. O capitalismo, por assim dizer, banalizou essa imagem. Entre os séculos XV e XVIII, encontram-se antepassados dos grandes crashes dos séculos XX e XXI.
Um desses antepassados é a curiosa "bolha das tulipas", que produziu estragos na Holanda do século XVII. A "bolha das tulipas" é vista por muitos como a primeira bolha de mercado, e comparada à crise da Nasdaq, a bolsa das empresas pontocom nos Estados Unidos.
As tulipas chegaram à Europa, provavelmente vindas da Turquia, em meados dos anos 1500. Na Holanda, os portos encheram-se de flores, especiarias e plantas exóticas, destacando- se as tulipas, cujo cultivo teve início ali em 1593. No alvorecer do século XVII, a flor já era muito usada por jardineiros e apreciada por colecionadores, em decorrência de sua beleza. Rapidamente, a popularidade da tulipa cresceu. Mudas especiais receberam nomes extravagantes ou de almirantes da marinha holandesa. As mais desejadas tinham cores vívidas, linhas e pétalas flamejantes. A tulipa tornou-se artigo de luxo e símbolo de status, estabelecendo-se a competição entre indivíduos das classes altas, mercadores e artesãos, pela posse das variedades mais raras. Os preços começaram a disparar. Em 1623, um simples bulbo da variedade Semper Augustus custava 1.000 florins. As tulipas eram trocadas por terras, animais e casas. Um bom negociante de tulipas conseguia ganhar 6.000 florins por mês, quando a renda média anual, à época, era de 150 florins.
O movimento ascendente dos preços das tulipas não cessou até 1636. As tulipas eram negociadas nas bolsas de valores das ricas cidades holandesas. Muitas pessoas venderam ou negociaram suas posses no intuito de especular no mercado de tulipas.
Negociantes passaram a vender bulbos de tulipas que tinham acabado de plantar ou que tencionavam plantar - os chamados contratos futuros de tulipas -, em transações conhecidas como weindhandel ("negócio de vento"). Na base das expectativas exageradas a respeito da evolução dos preços das tulipas, estava o Banco de Amsterdã, com sua capacidade de estender o crédito e suportar o avanço da especulação.
Porém, no início de 1637, a "bolha das tulipas" estourou. Surgiu a suspeita de que a procura por tulipas não duraria. O movimento de subida dos preços dos bulbos terminou, induzindo os comerciantes a vendê-los. Os preços, então, subitamente caíram 90%. Alastrou-se o pânico no mercado. Muitos compradores deixaram de honrar os contratos de compra de tulipas. Outros se acharam na posse de bulbos cujo preço era, agora, muito inferior ao que haviam pagado. Os severos juízes holandeses consideraram as dívidas sem valor legal, porque resultantes de negócios especulativos, o que deixou os vendedores de tulipas sem o poder de executar o pagamento dos contratos. Por conseguinte, milhares de holandeses, incluindo membros da alta sociedade, tiveram prejuízos enormes.
O COLAPSO DOS MARES DO SUL
No início do século XVIII, a poderosa Inglaterra ficou às voltas com a "bolha dos Mares do Sul", episódio de especulação desenfreada envolvendo as ações da South Sea Company. Endividado por gastos de guerra, em 1711, o governo inglês obteve dessa companhia um empréstimo de 11 milhões de libras, a ser fi- nanciado a juros de 6%. A companhia recebeu, ainda, garantia do monopólio das trocas nos Mares do Sul. A empresa aceitou o negócio, de olho nas oportunidades de ganho com o comércio de escravos e as trocas nos portos das colônias espanholas.
Para financiar as operações, a South Sea Company começou a emitir ações. Os investidores foram atraídos pelos lucros potenciais associados ao monopólio em poder da companhia. Várias emissões de ações foram realizadas com sucesso, enquanto os diretores cuidavam de alimentar a imagem de prosperidade da empresa, abrindo diversos escritórios e espalhando boatos de que a Espanha garantira o uso total dos portos coloniais pelos navios da companhia. Virou mania possuir ações da South Sea Company, o que estimulou banoutras empresas a entrarem no mercado de ações. Os investidores responderam com avidez. Fortunas formaram-se do dia para a noite. A euforia cresceu - até mesmo Sir Isaac Newton (1643-1726) adquiriu ações da South Sea Company - e alcançou a Europa continental, onde muitos investidores compraram ações negociadas em Londres.
Mas, em 1718, o início da beligerância entre Inglaterra e Espanha inviabilizou os planos da South Sea Company. Os seus diretores, então, inescrupulosamente emitiram mais ações. Em seguida, venderam seus papéis, obtendo lucros elevados. Quando os investidores se aperceberam da realidade da companhia, as ações despencaram. Os diretores da South Sea Company fugiram para outros países. Isaac Newton perdeu 20 mil libras. Milhares de pessoas perderam muito dinheiro. O governo inglês reagiu proibindo a emissão de ações, medida que foi relaxada somente um século depois, em 1825. A economia da velha Albion, portanto, ressentiu- se com o episódio.
Há quem veja analogias entre a "bolha dos Mares do Sul" e a crise da falência da Enron, gigante americana da energia, ocorrida nos anos 1990. Corrupção, gestão fraudulenta, ganância de executivos, expectativas irreais, fiscalização leniente. Ingredientes que fomentam crises.
A FALÊNCIA DO INGLÊS OVEREND & GURNEY
A quebra do banco inglês Overend & Gurney ilustra o tipo de crise bancária decorrente de dificuldades de liquidez (dinheiro) que contagiam instituições financeiras menores. Antigo e respeitado banco da City, o Overend & Gurney era, conforme o jornal Th e Times of London, o maior instrumento de crédito do Reino, recebedor dos fundos excedentes dos pequenos bancos espalhados pela Inglaterra. Quando, em 1856, morreu Samuel Gurney (1786-1856), o fundador do banco, uma nova geração de sócios assumiu o comando da instituição e abandonou dois séculos de austera administração quaker.
Eles começaram a emprestar os fundos de curto prazo depositados no Overend & Gurney para financiar empreendimentos de retorno a longo prazo: navios, portos e, principalmente, estradas de ferro. Quando os resultados esperados não ocorreram (no caso das ferrovias, após a febre de construção em meados do século, a concorrência excessiva entre as empresas causou extraordinária queda dos lucros), boatos espalharam-se e os depositantes do banco Overend & Gurney começaram a exigir seu dinheiro de volta. Nas palavras de Walter Bagehot (1826-1877), à época editor do Th e Economist, os sócios geriram os negócios do banco "de maneira tão inescrupulosa e tola a ponto de qualquer criança que tivesse aplicado dinheiro na City teria se saído melhor". Em maio de 1866, a corrida bancária teve início.
A morte de Samuel Gurney (1786-1856), à esqueda, fundador do Overend & Gurney, desencadeou a crise que atingiu o banco inglês
Os controladores do Overend & Gurney acreditaram que viria socorro do Banco da Inglaterra. Este, por sua vez, decidiu deixar a casa falir, julgando que o pânico seria curto. A multidão furiosa rumou para Lombard Street, rua de Londres onde ficavam as sedes de muitos bancos. A polícia interveio. Muita gente teve perdas pesadas. Uns poucos depositantes do Overend & Gurney recuperaram seu dinheiro, após longos litígios judiciais. Os sócios desse banco perderam seus bens, obras de arte e dinheiro, foram processados criminalmente, mas terminaram absolvidos.
Em 1873 surgiu o livro de Walter Bagehot (1826-1877), Lombard Street, propondo que deveria existir um "emprestador de última instância" capaz de injetar liquidez temporária nas instituições que enfrentassem problemas de acesso a dinheiro, mas não eram insolventes. Para o jornalista e economista inglês, o "emprestador de última instância" deveria, diante da crise bancária, anunciar sua prontidão de emprestar sem limites para estabilizar o mercado e deter, no estado inicial, o "contágio" do sistema financeiro. Bagehot escreveu, ainda, que uma crise financeira possui três fases: o alarme, quando o público percebe que uma ou outra instituição está fragilizada e pode quebrar; o pânico, quando se desconfia que todo, ou quase todo, o sistema fi- nanceiro pode estar abalado; a loucura, quando cada um se convence de que não há mais salvação e é o "salve-se quem puder".
A crise do Barings Brothers é comparável à "crise da dívida externa" dos países emergentes, nos anos 1980
A revista norte-americana Puck Magazine, mostra o Tio Sam ao lado de Pierpont Morgan, fundador do banco Morgan, mostrando a disparidade entre a importância de cada um
APLICANDO A PROPOSTA
A proposta de Bagehot foi empregada pela primeira vez na crise do Barings Brothers, em 1890-1891, situação que guarda semelhanças com a chamada "crise da dívida externa" dos países emergentes na década de 1980, que perturbou os mercados financeiros americano e europeu.
Na década de 1880, havia grande massa de recursos financeiros no mercado inglês, à procura de oportunidades de investimentos de alta lucratividade. Esses capitais fluíram principalmente para os Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rússia. Na Argentina, esse dinheiro aportou em obras de infra-estrutura, ferrovias e sob a forma de empréstimos públicos. A entrada maciça de libras no país provocou o aumento das importações, forte expansão do crédito bancário interno, emissão excessiva de moeda, gasto público elevado e especulação de todo tipo, tudo lastreado no endividamento externo.
Por conseguinte, a balança de pagamentos argentina ficou bastante deficitária, mas a entrada de investimentos externos possibilitava o fechamento das contas. Porém, na década de 1890, a recessão na Europa provocou a diminuição da inversão externa na Argentina e a queda dos preços das exportações do país (lã, carnes e cereais). Por conseguinte, os argentinos começaram a ter dificuldades cada vez maiores para cumprir os compromissos externos. A desconfiança dos investidores europeus na capacidade de pagamento da Argentina levou o país à moratória, no ano de 1891.
Havia anos que a casa Barings canalizava para a Argentina vastas somas e garantia os rendimentos dos aplicadores. Quando a crise surgiu, em 1890, bancos argentinos faliram e as cotações das ações de empresas platinas e dos títulos da dívida pública desabaram. O Barings Brothers teve prejuízos enormes, fechando as portas provisoriamente. Dessa vez, porém, o governo britânico socorreu a instituição.
Em novembro de 1890, negociações secretas entre o Banco da Inglaterra e financistas de Londres, liderados pelo banco Rothschild, levaram à criação de um fundo de resgate de 18 milhões de libras esterlinas, antes que a extensão do prejuízo do Barings fosse conhecida publicamente. Esta intervenção, que contou com participação do Banco da França, do Banco da Rússia e do americano Morgan, evitou uma crise financeira de grandes proporções.
Imagem de 1907; aglomeração de pessoas em Wall Street, durante o "pânico dos banqueiros"
TENSÃO EM NOVA YORK NA BELLE ÉPOQUE
A quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1907, representou forte choque em um ambiente de grande liberdade de fluxo de capitais e bens, característico da "globalização", sob hegemonia britânica na belle époque. Desde a segunda metade da década de 1890, a economia norteamericana entrara numa fase de crescimento expressivo, com saldos positivos na balança de pagamentos e aumento da poupança interna, o que tornava o país muito atrativo para investimentos estrangeiros. O mercado de ações americano estava inflado e os bancos tinham emprestado dinheiro demais para corretores que não tinham condições de honrar suas obrigações. Mas tudo ia bem enquanto o crescimento prosseguia e o crédito era farto. Porém, o Banco da Inglaterra, visando reverter saídas de ouro rumo aos Estados Unidos, elevou a taxa de redesconto de 3,5% para 6%, em 1906. Essa medida enxugou a liquidez (quantidade disponível de dinheiro/crédito) nos Estados Unidos, provocando o crash de Wall Street no princípio de 1907 e o declínio da atividade econômica. Em outubro, teve início uma corrida contra os bancos, que foram forçados a suspender os pagamentos em dinheiro. Muitas instituições financeiras faliram. O país entrou em uma severa recessão. Pierpont Morgan (1837- 1913), fundador do banco Morgan, foi chamado para assumir o leme e restaurar a ordem financeira, liderando comissão de banqueiros.
Para boa parte desses diplomatas latino-americanos, o regime nazista simbolizava o autoritarismo bem-sucedido
O RESULTADO DO NEW DEAL
O acordo foi adotado pelo governo dos Estados Unidos logo após a posse de Franklin Roosevelt, em 1937. Com o plano, o Estado norte-americano interveio diretamente na economia e controlou a situação financeira do país
Sem dúvida, a face mais visível do New Deal foi a política de grandes obras públicas. Entre 1933 e 1942, o governo investiu US$ 13 bilhões na construção de infra-estrutura. A recuperação da economia americana, impulsionada pelo New Deal, ocorreu com certa lentidão. Nas vésperas da Segunda Guerra, o país recuperara os índices de atividade do ano de 1929.
Vale ressaltar um aspecto importante. A comissão chefiada por Morgan impôs ao presidente Th eodore Roosevelt (1858-1919) medidas que contrariaram sua bandeira política de caça aos trustes. Ele teve de concordar com a compra da Tennessee Coal and Iron Co. (uma empresa siderúrgica) pela poderosa U. S. Steel. A razão era simples: a corretora a que pertencia a TC&I estava insolvente, mas precisava ser salva. O pragmatismo suplantou os discursos inflamados e até certo ponto eleitoreiros do ocupante da Casa Branca.
Clientes sinalizam para os escritórios da Associação de Mercados de Nova York, em 1916
Os efeitos negativos logo alcançaram Inglaterra, França, Itália e América Latina também. A crise de 1907 foi fator importante para avançar o consenso político nos Estados Unidos sobre a necessidade de criação de um banco central. Em 1913, surgiu o sistema do Federal Reserve. Há certos paralelismos da crise de 1907 com a crise atual que devem ser ressaltados: a ampla liberdade de movimentação de capitais, a falta de boas regras financeiras, a farra de crédito que conduziu a ativos inflados e especulação desenfreada.
O GRANDE CRASH DE 1929
A quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, é considerada a maior crise econômica de todos os tempos. No fim da década de 1920, os Estados Unidos eram os maiores fornecedores mundiais de crédito, os maiores exportadores e importadores. A roda da economia girava em torno dos humores do mercado americano. Mas o crescimento dos Estados Unidos apresentava sérias fragilidades.
A onda de inovação tecnológica provocara grande aumento da produtividade, cujos efeitos colaterais foram o aumento da taxa de desemprego e a queda do valor real dos salários. No campo, a superprodução agrícola provocou a baixa dos preços dos produtos, fazendo declinar a renda dos fazendeiros. Assim, no fim dos anos 1920, mais de 60% das famílias norte-americanas tinham renda anual menor que US$ 2 mil. O que quer dizer que o tamanho do mercado consumidor era limitado, justamente quando as fábricas de bens de consumo duráveis e semiduráveis produziam a todo vapor. Porém, desde 1926, havia euforia, consumismo e especulação no mercado acionário.
No ano de 1929, surgiram sinais de que a expansão terminara. A acumulação de estoques nas fábricas e os cortes de encomendas feitas pelas grandes empresas comerciais geraram os primeiros balanços ruins. O pânico caiu sobre a Bolsa de Nova York. As ações despencaram. As corridas bancárias tiveram vez. As bancarrotas começaram. Enquanto isso, apegado à ortodoxia liberal, o presidente Herbert Hoover (1874-1964) limitou- se a assistir a quebradeira, a redução drástica do comércio internacional e o derretimento dos preços dos ativos. A repatriação de capitais norteamericanos aplicados na Europa, para fazer face às necessidades de dinheiro que cresciam nos Estados Unidos, provocou a desvalorização das moedas européias. Um a um, os países abandonaram o padrão-ouro, iniciaram desvalorizações competitivas e adotaram medidas protecionistas, o que teve o efeito de "travar" o comércio internacional. A inércia de Hoover transformou o crash da Bolsa de Nova York na Grande Depressão.
Entre 1929 e 1933, nos Estados Unidos, 110 mil empresas faliram e 8.812 bancos desapareceram. O desemprego atingiu 25% em 1933. A produção industrial reduziu-se à metade e o PIB caiu 46%. Os salários tiveram queda de 60%. Os preços agrícolas reduziram-se 55% e os dos bens de produção 26%.
As palavras de Winston Churchill (1874-1965) ilustram o quadro da maior déblâcle do capitalismo: "Toda a riqueza tão velozmente acumulada nas carteiras de títulos dos anos anteriores desfez-se em fumaça. A prosperidade de milhões de lares norteamericanos havia crescido sobre uma estrutura gigantesca de crédito inflado, que subitamente se revelou um fantasma. Afora a especulação com ações em âmbito nacional, que até os mais famosos bancos haviam incentivado por meio de empréstimos fáceis, um vasto sistema de crediários na compra de casas, móveis, automóveis e inúmeros tipos de utensílios e artigos domésticos de luxo havia crescido. Ruíram juntos.As poderosas linhas de produção foram lançadas na tormenta e na paralisia. (...) Agora, as dores atrozes dos salários em declínio e do crescente desemprego afligiam a comunidade inteira" (Memórias da 2a Guerra Mundial).
Pessoas protestam nas ruas de Nova York durante a crise de 1929
Com a eleição de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), em 1933, os Estados Unidos organizaram sua reação à Grande Depressão. Foi posto em prática o plano conhecido como New Deal. No campo financeiro, o governo passou a exigir das instituições maior rigor na concessão de créditos, para os quais foram aumentadas as reservas mínimas que os bancos deveriam manter no Fed. O Glass-Steagall Act proibiu o envolvimento direto dos bancos comerciais em operações nos mercados de capitais e nos mercados imobiliários. Por meio da criação do FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), o governo garantiu depósitos de até US$ 2.500. Também foi criada a SEC (Securities and Exchange Commission), entidade federal encarregada de supervisionar e fiscalizar as operações de bolsa.
As crises originam-se nos países avançados e espalhamse, em seguida, para as regiões periféricas do globo
No decurso da administração Roosevelt, os Estados Unidos passaram a contar com os seguintes meios de intervenção e controle para remediar fragilidades bancárias: a) o emprestador de última instância (o banco central); b) exigências de solvência que os bancos comerciais têm que obedecer; c) sistema de supervisão para monitorar as atividades de bolsa e bancárias; e d) esquemas de seguro de depósitos bancários. O Acordo de Bretton Woods (1944) produziu o efeito de generalizar gradualmente esses elementos pelas economias capitalistas. Há quem sustente que a escassez de crises financeiras nas três décadas que se seguiram ao acordo deve ser atribuída, em boa medida, à "repressão financeira" resultante do acordo.
Retrospectivamente, o crash de 1929 guarda algumas semelhanças com a crise que se vive hoje. Ambas estão associadas a explosões de bolhas de crédito que produzem contração violenta de patrimônios, receitas, atividades e empregos. Tanto em 1929 quanto em 2008, assiste-se a uma deflação pela dívida. Porém, há duas diferenças importantes. A primeira diz respeito à ação das autoridades. Em 1929, como assinalou o economista Milton Friedman (1912-2006), luminar do chamado neoliberalismo, houve falha das autoridades monetárias e do governo.
Hoje, as autoridades mundiais compreenderam a escala da ameaça e estão agindo com maior presteza e medidas drásticas. A segunda diferença é que, em 1930, os Estados Unidos estavam sozinhos - todas as reservas do mundo estavam com eles, e o país era o motor solitário do crescimento internacional. Mas agora os americanos têm a China e outros países emergentes como parceiros.
AS CORRIDAS BANCÁRIAS NO SÉCULO XIX
O século XIX foi marcado por grande número de crises financeiras, que tiveram como protagonistas bancos e corretoras de valores. Desde 1825 até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocorreram tensões no mundo inteiro, em todas as décadas. O quadro abaixo, que recolhe apenas casos mais famosos, evidencia esse fato:
Crises financeiras na Europa e nos Estados Unidos (1772 a 1907)
Evento Páis de Origem Ano
Quebra do Ayr Bank Escócia Junho 1772
Quebra do Pole, Thornton & Co. Inglaterra Dezembro 1825
Quebra da Bolsa de Valores Inglaterra Dezembro 1836
Bolha das Ferrovias Inglaterra 1847
Bolha das Ferrovias Estados Unidos Agosto 1857
Quebra do Overend & Gurney Inglaterra Maio 1866
Quebra do Crédit Mobilier França 1867-1871
Quebra da Bolsa de Valores Áustria/Alemanha 1873
Quebra do Jay Cooke & Co. Estados Unidos Setembro 1873
Quebra do Union Générale França 1882
Quebra do Barings Brothers Inglaterra Novembro 1890
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1893
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1907
AS LIÇÕES DAS CRISES FINANCEIRAS
Em uma perspectiva histórica, as crises bancárias e de bolsas de valores não são novidades. As "bolhas de crédito" são muitas e recorrentes. Os custos dessas crises, em termos de riquezas dilapidadas e sofrimentos humanos, são enormes. O mercado financeiro capitalista não aprende. As pessoas não aprendem. Os investidores muito menos. Sempre há quem fique alavancado em demasia, quem assuma riscos excessivos ou mal conhecidos ao lidar com inovações financeiras cada vez mais complexas.
Na base das crises financeiras modernas, há sempre o mesmo erro de avaliação dos agentes econômicos: as pessoas acreditam que, dessa vez, realmente o mundo mudou e a economia funciona sobre bases sólidas e definitivas. Alimentam expectativas de retorno desmedidas, lançam mão do crédito abundante para fazer negócios, produzindo uma espiral de ativos intangíveis. As crises têm início quando há rápida deterioração dos indicadores econômicos e surgem boatos ou notícias da dificuldade financeira de uma empresa ou de um banco para cumprir seus compromissos.
A evidência histórica também permite pensar que as crises financeiras são transmitidas pelos canais do comércio internacional, dos empréstimos entre países ricos e pobres, dos mercados de commodities e bolsas de valores e das arbitragens em mercados de títulos de curto prazo. Do século XVII a meados do século XX, as crises originaram- se, predominantemente, nos países avançados da Europa (com destaque para a Grã-Bretanha) e nos Estados Unidos, espalhando-se, em seguida, para as regiões periféricas do mundo.
Quanto ao problema de abreviar as crises fi- nanceiras, de modo a diminuir os impactos negativos que elas causam nos setores produtivos da economia, a história ensina que os Estados têm de agir rapidamente para salvar o sistema financeiro. Os Estados devem ser pragmáticos. Os governos precisam se lembrar de que eles criam mercados, e que mercados só podem existir com regulamento. Que não se alimente o falso debate governo versus mercado.
Outra lição é a de que existem limites para a expansão econômica baseada no crédito. O endividamento excessivo de famílias, empresas e países gera catástrofes enormes. Quando o emprego e a renda não acompanham a oferta de crédito, os negócios das famílias, empresas e instituições financeiras logo se chocam com a realidade da inadimplência. O trabalho e a produção devem ter prioridade sobre a compra e venda de papéis.
A fotografia tirada na Califórnia pela fotógrafa Dorothea Lange (1895-1965), em 1936, foi intitulada de "Mãe Migrante". A imagem virou ícone da Grande Depressão
REFERÊNCIAS
CHANCELLOR, Edward. Salve-se quem puder: uma história da especulação financeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FIORI, José Luís (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. FRIEDMAN, Milton; SCHWARTZ, Anna J. A monetary history of the United States, 1867-1960. Princeton: Princeton University Press, 1963. KINDLEBERGER, Charles P. Manias, panics, and crashes: a history of financial crises. 3. ed. New York: John Wiley and Sons, 1986. MAURO, Frédéric. História econômica mundial, 1790-1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. MORRIS, Charles R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John D. Rockefeller, Jay Gould e J. P. Morgan inventaram a supereconomia americana. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
MARCOS LOBATO MARTINS é Doutor em História Econômica pela USP. Professor dos Cursos de História e Direito das Faculdades Pedro Leopoldo, MG (FPL).
Revista Leituras da Historia