segunda-feira, 2 de março de 2009

Salve-se quem puder


Os governantes não sabiam o que fazer enquanto a cólera se transformava no primeiro desastre da saúde pública no país
Nikelen Acosta Witter

Autoridades batem cabeça diante do avanço de uma epidemia incontrolável. Este filme a gente está cansada de ver. Uma de suas versões mais assustadoras atendia pelo nome de cólera-morbo.

A cólera foi um dos grandes flagelos do século XIX. Antes mesmo de chegar às grandes capitais européias, a moléstia já chamava a atenção pela rapidez, virulência e grau de mortalidade do seu ataque. Por onde passava, deixava um rastro de dez a quarenta por cento de mortos.

Originária da região do delta do Rio Ganges, na Índia, a epidemia avançou para o Ocidente em ondas que, a partir de 1817, levaram pânico à Europa e às Américas. Causada pela ingestão de água e de alimentos contaminados por uma bactéria que se multiplica rapidamente no intestino, a doença provoca diarréia aguda, que pode levar à morte por desidratação.

Nenhuma das medidas profiláticas conhecidas sequer chegou perto de barrar seu avanço, o que fez dela a primeira grande pandemia, da qual nenhum continente foi poupado. Ao longo do século XIX, seis pandemias de cólera viajaram do Oriente em direção ao Ocidente. A terceira, identificada entre 1840 e 1860 e considerada a mais mortífera de todas, trouxe a doença para o Brasil.

Ela chegou a bordo da galera Deffensor, que aportou em Belém do Pará em 1855, trazendo colonos portugueses que vinham da cidade do Porto, um foco de risco da doença. Durante praticamente um ano, a epidemia assolou o Império: desceu pelo litoral infectando o Nordeste, a Corte no Rio de Janeiro e chegando até o extremo sul. Causou protestos em Pernambuco e foi especialmente mortífera na Bahia.

Não se pode dizer que as autoridades tenham sido pegas de surpresa. Naqueles anos, já se vinha exigindo do governo a formulação de ações mais efetivas no controle de doenças. A epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, no verão de 1849-50 [ver Revista de História nº 27], e os avanços da cólera-morbo na Europa e na América do Norte levaram à criação de uma Junta Central de Higiene. Subordinadas a ela, foram instituídas Comissões de Higiene Pública, que deveriam atuar nas províncias.

As notícias da chegada da cólera ao norte do país puseram em xeque o precário poder desses órgãos recém-criados. No primeiro momento, houve o reconhecimento do perigo. Em seguida, veio a aceitação frouxa de que a disseminação da epidemia era quase inevitável. E embora a Comissão de Higiene Pública tivesse apontado inúmeras vezes os focos geradores dos miasmas — vapores exalados por matérias em decomposição que, acreditava-se, propagavam a doença —, nenhuma providência foi tomada. As autoridades pareceram pouco seguras para determinar o que precisava ser feito de modo a impedir o alastramento da epidemia. As medidas propostas – quarentenas, limpeza de ruas, instalação de enfermarias de isolamento, inspeção de viajantes, etc – raramente foram postas em prática. O governo tinha dificuldade em ir contra os interesses de comerciantes e criadores de gado, que não queriam ver seus negócios paralisados só pela ameaça da epidemia. Além disso, as medidas mais caras e necessárias eram descartadas. Somente às vésperas da chegada da cólera é que se montou uma enfermaria nas proximidades do porto da cidade de Rio Grande.

Quando atingiu a província do Rio Grande do Sul, em outubro de 1855, a cólera já tinha uma fama aterradora. Seus estragos no resto do Império puseram de sobreaviso governantes e autoridades sanitárias da região, que se rendiam diante das notícias dos avanços da moléstia: a chegada do mal era praticamente inevitável. Nem os antigos discursos que celebravam a natural salubridade da província impediram que a moléstia fosse esperada com crescente terror.

O vapor Imperatriz, vindo do Rio de Janeiro, chegou ao porto de Rio Grande após uma escala na província de Santa Catarina, onde haviam desembarcado pelo menos dezesseis soldados infectados. Entre os passageiros, um escravo doente foi logo recolhido para observação e tratamento. Cientes da situação, as autoridades tentaram impor uma quarentena e impedir a comunicação da região portuária com o restante da província. Mas o controle não foi suficientemente rigoroso: os passageiros fugiram do isolamento e se espalharam em direção à capital e ao interior, levando consigo a doença.

Somente depois de confirmada a presença da cólera em solo gaúcho, o governo decidiu acionar a Comissão de Higiene Pública para diminuir seu impacto. A dificuldade em definir as formas de contágio gerou uma grande confusão de medidas preventivas, pois não se tinha certeza sobre qual foco propagador se devia atacar. Sabia-se que a doença podia ser carregada por meio de navios e pessoas infectadas, e isso pedia a aplicação de quarentenas e isolamentos. Por outro lado, a epidemia só se espalharia em ambientes propícios, onde houvesse a presença de miasmas, água insalubre e alimentos de má qualidade. Neste sentido, a limpeza pública era o item mais importante. Em nenhum dos dois casos, entretanto, a população reagiu bem às ordens do governo ou às solicitações dos médicos.

Grande parte dos esforços para barrar a cólera se concentrou na porta de entrada da província: o porto da cidade de Rio Grande, onde a Lagoa dos Patos desemboca no Oceano Atlântico. A Comissão teve que vencer a descrença dos habitantes nas previsões de epidemia. Além disso, houve um grande esforço para fazer com que a população adotasse medidas preventivas, como secar a água parada, bem como limpar matérias fecais, animais mortos, restos de alimentos, tudo o que era jogado nas ruas, nas calçadas e nos pátios vazios. A Comissão ainda teve de enfrentar a especulação dos proprietários de imóveis e dos donos de farmácias e casas de gêneros alimentícios, que passaram a aumentar os preços a fim de lucrar com a epidemia.

A dificuldade maior era definir a quem competiam as medidas de saúde pública e qual era o poder da Comissão. É o momento em que a própria idéia do que vem a ser Saúde Pública começa a ser elaborada. Discutia-se o papel deste setor junto à população, como poderia ser administrado, por quem, e quando sua atuação deveria ter mais ou menos poder. O número de fiscais, por exemplo, era insuficiente, não chegava nem a uma dezena em cada cidade, e eles sequer tinham autorização para autuar ou multar quem descumprisse as normas sanitárias recomendadas. Na maioria das vezes, seu papel se restringia a sugerir regras que deveriam ser adotadas pelas posturas municipais como, por exemplo, tentar impedir a venda de remédios fora das farmácias.

A Comissão de Higiene não foi bem recebida por outros setores da administração imperial, especialmente pelas Câmaras, nem pelas elites locais. Em cidades como Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, as elites estavam envolvidas com as irmandades que geriam as Santas Casas e não admitiam interferência em seus estabelecimentos. A fraqueza política da Comissão tornara-se evidente antes mesmo da chegada da moléstia. Uma inspeção na enfermaria da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre revelou um ambiente em péssimas condições sanitárias, sem que isso resultasse em qualquer queixa administrativa ou tentativa de mudança.

Na capital, Porto Alegre, as medidas preventivas foram ainda menores do que nas cidades litorâneas mais ao sul. As autoridades acreditavam que seria possível barrar a epidemia nas adjacências do porto de Rio Grande. Por isso, limitaram-se a montar alguns postos de atendimento na cidade e deixar de prontidão ambulâncias (carroças com medicamentos), que deveriam ser enviadas, com médicos, para as localidades onde a epidemia surgisse. Mas a população não esperou a doença chegar. A quantidade de pedidos de médicos e medicamentos, às vezes com quinze dias de antecedência, demonstra que, mesmo nas localidades mais afastadas, a sombra da cólera já era um fato presente e assustador.

O episódio da fuga dos passageiros do Imperatriz criou logo um surto de pânico, e em fins de outubro corria solta em Porto Alegre a boataria de que os doentes haviam sido vistos na capital. No dia 28 de outubro, porém, foi confirmado que um navio chamado Comércio havia chegado a Porto Alegre trazendo pessoas que tinham passado pelo Imperatriz. As autoridades determinaram que o navio fosse desinfetado e que os passageiros permanecessem a bordo, em observação. Mas nem os passageiros nem a tripulação aceitaram o confinamento e, mesmo sob ameaças de punição, abandonaram o local da quarentena.

Menos de um mês depois, a epidemia já era um fato inegável. Por suas condições precárias de higiene, as charqueadas ao redor de Pelotas (local onde os bois eram abatidos) e a própria cidade foram os primeiros lugares atingidos. Simultaneamente, foram registrados os primeiros casos em Rio Grande, e em pouco tempo a epidemia avançou para a vila de Jaguarão, no extremo sul, e para a capital, atacando as populações ribeirinhas. Apesar de os relatórios afirmarem que em Porto Alegre a epidemia assolou todas as classes, os mais atingidos foram os escravos e as pessoas mais pobres.

Deflagrada a epidemia, havia mais doentes do que a sociedade tinha condições de tratar e mais mortos do que era possível enterrar com decência. No Rio Grande do Sul, foram mais de quatro mil mortos em dois meses, 1700 destes somente em Porto Alegre, que, na época, tinha cerca de 17 mil habitantes. Quem podia fugir, fugiu; quem não podia, tentou escapar da morte apelando para tudo.

A cólera foi rápida e fulminante na província. Quando partiu, deixou lembranças dolorosas. A epidemia revelou a urgência e a gravidade de problemas sanitários que havia muito se arrastavam sem solução, como o fornecimento de água potável e o saneamento das cidades. Embora o número de vítimas da doença tenha sido pouco expressivo, o fantasma da cólera continuaria pairando por muito tempo, como um dos primeiros desastres da nossa saúde pública.

Nikelen Acosta Witter é professora da UNIFRA/RS e autora do livro Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul do Brasil (1845-1880) (EDIPUCRS, 2001).

Saiba Mais - Livros:

CAMUS, Albert. A Peste. 14ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
CHALHOUB, Sidney; MARQUES, Vera Regina Beltrão; SAMPAIO, Gabriela; SOBRINHO, Carlos Roberto Galvão. Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
DAVID, Onildo Reis. O Inimigo Invisível. Epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: Edufba/Sara Letras, 1996.
UJIVARI, Stefan Cunha. A História e suas Epidemias. A convivência do homem com os microorganismos. Rio de Janeiro: Editora Senac-Rio/São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2003.

Saiba Mais - Filmes:

“A Peste”, de Luiz Puezo, 1992.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Um comentário:

Café da Madrugada® Lipp & Van. disse...

A história sempre se repete não é?
e hoje em dia, as doenças são pragas piores e maiores. Fatais.