domingo, 1 de março de 2009

Quando copiar era um estímulo intelectual

Era a biblioteca, e não a igreja, o local mais provável de encontrar um monge copista na Europa medieval. Copiando às vezes para fugir do tédio, eles acabaram preservando a cultura ocidental.
por Pierre Riché


Não há nada de original em pensar que, no princípio da vida monástica, os monges eram copistas e leitores assíduos. Se no século V eles copiavam manuscritos, era para escapar da ociosidade e para ganhar o sustento. Cultivavam essa atividade, mas também fabricavam pães, ou outros objetos de artesanato. Contentavam-se com um único livro, a Bíblia, cujas passagens aprendiam e sabiam de cor, sobretudo os salmos. A palavra bibliotheca foi empregada para designar os diferentes livros da Bíblia. A regra de São Bento (480-540), à qual sua ordem religiosa (conventos beneditinos), era submetida, menciona apenas o estudo das Escrituras.

Um outro italiano, Cassiodoro (490-581), fundou um mosteiro para organizar o estudo de textos religiosos e profanos. Antigo ministro do imperador bizantino Teodorico, Cassiodoro converteu-se à vida religiosa em meados do século VI e, após criar um mosteiro em uma das suas propriedades na Calábria, decidiu recopiar uma grande parte das obras latinas. No livro As instituições, fez uma espécie de catálogo analítico de sua biblioteca, e o elogio dos copistas: "Ao reler as escrituras, eles enriquecem sua inteligência, multiplicam os preceitos do Senhor, por meio das suas transcrições. Feliz aplicação, estudo digno de louvor: pregar pelo trabalho das mãos, abrir e dar seus dedos às línguas, levar silenciosamente a vida eterna aos homens, combater as sugestões do diabo pela pena e pela tinta...". Depois da morte de Cassiodoro, uma parte dos seus livros religiosos foi transferida para a biblioteca de Latrão, sede do bispado de Roma. De lá, muitos acabaram na Inglaterra.

O Renascimento carolíngio foi gestado nos mosteiros da Gaula no sul da França], a partir do final do século VII. Com efeito, os monges de Luxeuil fizeram os manuscritos com uma nova escritura, tal como podemos ver no Lectionnaire - Lecionário - de Luxeuil. Os escribas, que recopiavam os livros vindos de Roma, aperfeiçoaram a escritura, ancestral da Carolina, a escrita caligráfica surgida na Europa entre os séculos VIII e IX, que originou a distinção de maiúsculas e minúsculas nas modernas escritas européias. Nas margens do Loire (a cerca de 200 km de Paris), as abadias de Saint-Martin-de-Tours e de Fleury (hoje Saint-Benoît-sur-Loire) possuíam ateliês de escritura já ativos. Nas margens do Sena, os mosteiros de Saint-Denis e Saint-Wandrille participaram igualmente dessa produção de manuscritos em miniaturas, mais bem escritos e, até mesmo, mais bem adornados.

Desse modo, assim que Carlos Magno restaurou as escolas e os scriptoria em todo o reino [leia mais no dossiê "Carlos Magno, a espada e a fé", História Viva, ed. 22], ele investiu no trabalho dos mosteiros. Em sua célebre Admoestação geral, coleção de antigos cantos eclesiásticos, trechos da missa e responsórios, ele insiste em que cada clérigo e cada monge deveria aprender a gramática, o cálculo, o canto e as notas tironianas. E especifica que o trabalho dos escribas não seria confiado a jovens, mas a homens de idade adulta, de modo que os missais, os evangeliários e os livros de salmos não tivessem nenhum erro. A partir de então, a nova escrita iria se impor em todos os scriptoria. Chamada de Carolina, por causa de Carlos Magno, ela se caracterizava pelo tamanho pequeno, bem legível e regular, que encontramos na escrita atual, desde que os primeiros impressores do século XV a escolheram entre muitas outras.

Jamais será excessivo insistir sobre o prodigioso trabalho dos scriptoria carolíngios. Milhares de manuscritos foram recopiados - quase oito mil foram conservados: as obras dos fundadores da Igreja, de gramáticos, poetas, prosadores. Graças aos copistas, uma grande parte da herança literária latina foi salva e preservada. Cícero, Virgílio, Tácito e muitos outros só se tornaram conhecidos pelo trabalho dos carolíngios.

Ao mesmo tempo, os escribas e os pintores fabricavam manuscritos de luxo. Na corte carolíngia, as bíblias, os evangeliários e os livros de salmos, ricamente adornados com iluminuras, eram depositados e preservados na capela real. Carlos, o Calvo, neto de Carlos Magno, foi um entusiasta dos belos manuscritos. Quando esteve em Roma para receber a coroa imperial das mãos do papa João VIII, levou de presente uma Bíblia magnífica.

As bíblias de Tours estão entre as mais belas editadas naquela época. Na Alemanha, os mosteiros de Saint-Gall, Reichenau e Fulda também possuíam equipes de escribas e de pintores.

Enquanto sob Carlos Magno os escribas recopiaram, sobretudo, obras religiosas, foi sob seus sucessores, Luís, o Pio, e Carlos, o Calvo, que ocorreu o que ficou conhecido como o "segundo Renascimento carolíngio", quando os autores profanos tiveram uma importância até então desconhecida, como os textos de César e Seutônio.

Nessa época, certos manuscritos eram sobrecarregados de sinais, chamados de "neumas", ou seja, notas musicais que permitem cantar o texto. Os monges as utilizavam para o canto a capela, mas também o faziam os alunos das escolas, para decorar os poemas dos salmos. A divisão do império carolíngio entre os netos de Carlos Magno - ocorrida na segunda metade do século IX - e as invasões normandas seguidas das húngaras complicaram a vida monástica. Mosteiros caíram nas mãos dos aristocratas laicos, ou foram arruinados pelos invasores. Muitos monges escaparam carregando relíquias e manuscritos para locais onde puderam se refugiar, sobretudo na região da Borgonha.

No começo do século X, foi fundado o mosteiro de Cluny (Borgonha), que se transformou no modelo das abadias reformadas, algumas décadas mais tarde. Outras reformas e reconstruções aconteceram em locais diversos, e a vida religiosa e o estudo renasceram nos mosteiros, em meados daquele século. As bibliotecas foram reconstituídas, e os scriptoria reativados. O século X caracterizou-se - pelo menos na sua segunda metade - por uma renovação intelectual e artística que prolongou o Renascimento carolíngio.

Os mosteiros que produziam manuscritos são numerosos. Entre eles, houve exemplos extraordinários. Na Alemanha, os otonianos foram os sucessores dos carolíngios - Oto I restaurou o Império germânico em 962 -, e o mosteiro de Saint-Gall foi o de maior prestígio. Centenas de manuscritos saíram do seu scriptorium, fosse para servir à biblioteca, da qual se conhece o catálogo, fosse para serem trocados por manuscritos de outras bibliotecas, particularmente a do mosteiro vizinho em Reicheneau, ou para serem vendidos. Ricos manuscritos, belamente adornados com iluminuras, foram executados nessas abadias. Na segunda metade do século X, muitas obras de luxo, destinadas à corte e ao bispo, foram escritas e pintadas em Reichenau.

No norte da Itália, a abadia de Bobbio, fundada pelos irlandeses no século VII, possuía a maior biblioteca do Ocidente. Um catálogo da época descreve 650 manuscritos. E foi o que entusiasmou um erudito de Reims, logo que foi nomeado abade de Bobbio em 982. No começo da sua formação, Gerbert d\\'Aurillac iniciou os estudos de teologia, ciências, aritmética e astronomia. Depois de uma temporada em Reims, ele foi para Bobbio.

Em sua correspondência, fala sobre os livros que encontrou, e de que modo comissionou a confecção de manuscritos. Ele exigiu do seu arcebispo permissão para recopiar obras provenientes de outras abadias. Hoje esta biblioteca só é conhecida em função de um inventário feito por um abade antes da peregrinação à Terra Santa. Além disso, Gerbert foi convidado por seu aluno, o imperador Oto I, a subir ao trono de São Pedro, sob o nome de papa Silvestre II (ano de 999), quando então legou uma parte dos seus livros à corte imperial, os quais ainda podem ser consultados na biblioteca do bispado de Bamberg (Baviera, Alemanha).

A Aquitânia, que vegetara desde a reconquista carolíngia em meados do século VIII, teve monges prósperos no século XI e tornou-se uma das cortes mais letradas e cultas da França. O abade Abbon do mosteiro Saint-Benoît-sur-Loire no ano 1000 e contemporâneo de Gebert tinha estreitas relações com a Inglaterra, com a qual fazia intercâmbios. Nos séculos X e XI, as abadias da Inglaterra eram tão ativas quanto as do continente. Em Canterbury e Winchester, escribas e pintores deixaram esplêndidos manuscritos litúrgicos.

Na segunda metade do século XI, as abadias se transformaram. A herança da cultura carolíngia cedeu espaço a uma outra cultura unicamente religiosa. Na França, em especial na abadia de Saint-Bernard de Clairvaux (abadia cisterciense), os manuscritos religiosos tiveram a prioridade, e os responsáveis pelas iluminuras foram restritos a uma ascese artística. A austeridade era de rigor: o ouro e as iniciais ornadas foram banidos. Em Paris, freqüentemente se contratava o trabalho de escribas fora do mosteiro. Nessa época, os fabricantes de livros apareceram nas cidades.

Até o final da Idade Média, cada mosteiro continuou a ter seu scriptorium. Mas o belo período da grandiosa produção de manuscritos havia terminado. Foram a escola episcopal, a biblioteca eclesiástica da cidade e, depois, no século XIII, as universidades que ficaram encarregadas de produzir os manuscritos.
Os escribas trabalhavam cercados do seu material: cartuchos de tinta, penas, raspadeiras, folhas de pergaminho. O pergaminho, fornecido pelo abade, era um material caro, que podia ser comprado, ou fornecido pelos membros do mosteiro. Quando uma solicitação de um manuscrito era feita ao scriptorium, o requerente podia enviar o pergaminho necessário, como podemos constatar na carta de Gerbert, dirigida ao abade de Saint-Julien-de-Tours.

O pergaminho era preparado previamente, a partir de pele de vitela ou de carneiro. Imersas num banho de cal durante alguns dias, essas peles eram espichadas e raspadas dos dois lados, depois cortadas e, eventualmente, tingidas numa cor púrpura para os manuscritos de luxo. Quando faltava pergaminho, era possível reutilizar as folhas já escritas de um manuscrito incompleto ou usado, raspando-se cuidadosamente sua superfície. Ao contrário do que se disse muitas vezes, os monges não substituíam de forma sistemática as obras profanas por textos religiosos. Graças a esses palimpsestos, posteriormente pôde-se descobrir textos antigos pela leitura de pergaminhos, com o auxílio de uma lâmpada de Wood, que emite raios ultravioletas.

Uma vez preparado, o pergaminho recebia um acabamento: uma grande folha podia ser recortada em quatro pedaços (de onde vem a expressão in quarto), ou em oito (de onde vem a expressão in octavo). Esses pedaços podiam ser encadernados em formatos pequenos, que continham um número maior de fólios. Mais tarde, o pergaminho foi apresentado em forma de rolo, como os antigos volumina, sobretudo para usos litúrgicos.

O escriba sentava-se num banco, os pés pousados sobre um escabelo. Colocava o pergaminho sobre os joelhos ou, ainda melhor, sobre uma escrivaninha. Na mão direita, segurava a pena que molhava no tinteiro. Ele podia ter uma raspadeira na mão esquerda. Um manuscrito de Bamberg mostra as etapas do trabalho do escriba em pequenos desenhos. Ele talhava a pena, escrevia seu rascunho numa tabuinha de cera. Essas tabuinhas sempre foram utilizadas na Idade Média, e se acompanhavam de estiletes de metal, que tinham uma ponta de um lado, e na outra uma parte achatada para apagar a escrita. No lugar da tabuinha de cera, o escriba podia usar um velho manuscrito ou, ainda melhor, escutar o ditado do leitor.

Antes de começar, o escriba experimentava a pena, ao traçar algumas letras do alfabeto nas margens, ou os primeiros versos de um salmo. Pode-se também encontrar reflexões pessoais do tipo: "Como o pergaminho é felpudo"; "Como está frio hoje"; "A lâmpada emite uma luz ruim"; ou, ainda, "Agora é a hora do almoço". Como o silêncio devia reinar no scriptorium, pode-se imaginar os escribas passando essas reflexões, uns para os outros.

O trabalho era difícil durante o inverno, sobretudo pela penumbra. Por causa do esforço de olhar fixamente os manuscritos, os monges poderiam ficar cegos. Aquele que ditava o texto, o dictator, o fazia com rapidez. Os monges tinham dificuldade de seguir o ditado.

Raramente o escriba trabalhava sozinho. A arrumação do mosteiro de Saint-Gall previa sete assentos no scriptorium. Apesar de os nomes não serem registrados, era muito fácil reconhecer a mudança da mão. A duração da execução de um livro variava segundo a habilidade dos copistas e os mais hábeis se vangloriavam de fazer um livro em dois dias ou de copiar 30 folhas por dia. Em geral, era preciso dois a três meses para copiar um manuscrito de dimensão média. Depois do manuscrito terminado, era necessário reler e corrigir os erros. Muitos escribas eram inexperientes, alguns quase analfabetos, e recopiavam os textos de uma maneira automática, sem compreender seu conteúdo. Aqueles que escreviam a partir do ditado acabavam usando uma ortografia fonética.

O chefe do ateliê revia o manuscrito. Um bom revisor corrigia a pontuação e a ortografia, sublinhava uma palavra incompreensível e marcava a margem com a palavra que julgava conveniente e adequada. Depois do término do manuscrito, se fosse um livro luxuoso de salmos ou um evangeliário encomendado por um bispo, ou por um príncipe, o pintor sucedia o escriba. Ele decorava as iniciais, enquadrava as páginas, pintava o que ficara em branco, segundo seu próprio talento ou segundo o estilo da escola onde fora formado. Temos então o manuscrito copiado, corrigido e ornamentado.

Em seguida, era necessário reunir as folhas, formar os cadernos para fazer um códice. Sobre o desenho já citado de Bamberg, pode-se ver o monge dobrar, costurar as folhas, cortar e depois preparar as encadernações. Desde a época carolíngia, a encadernação era utilizada para os livros valiosos, e era feita com peles de cervos. Assim, Carlos Magno autorizou os monges de um mosteiro francês a caçar cervos para criar um estoque do couro destinado à encadernação. A superfície lisa das encadernações era confiada a ourives, ou a artesãos que trabalhavam com marfim.

Cópias a preço de ouro
Abaixo, uma carta de Gerbert d\\'Aurillac para o abade de Saint-Julien-de-Tours.

"Tendo considerado que a ciência moral e a ciência da língua não são separadas da filosofia, sempre misturei estudos de bem viver, e estudos de bem falar (...) para me preparar, jamais cessei de constituir uma biblioteca. E mesmo que recentemente em Roma, e em outras regiões da Itália, na Alemanha e também na Bélgica, eu tenha resgatado copistas e cópias de obras a preço de ouro, graças à ajuda benévola, e à solicitude dos meus amigos nessas províncias, do mesmo modo deixe-me vos pedir que seja assim no vosso mosteiro, e por vosso intermediário. No final das cartas nós vos indicaremos o que queremos copiar. Segundo vossas instruções, nós enviaremos o pergaminho para os copistas, e os fundos que serão necessários, sem esquecer não mais de vos indicar a nossa benevolência." (Extrato da carta 44.)

Um trabalho para a alma
O texto abaixo do scriptorium de Saint-Martin-de-Tours busca orientar o trabalho dos copistas.

"Que tomem lugar os que escrevem as palavras da lei santa, assim como os ensinamentos dos santos padres. Que eles não se permitam misturar suas tagarelices frívolas, com medo de que essa frivolidade não induza sua mão ao erro.

Que consigam textos corrigidos com cuidado, a fim de que a pena do pássaro siga certa pelo seu caminho. Que distingam as nuances dos sentidos das palavras, por membros e incisos, e que coloquem cada ponto em seu lugar, a fim de que o leitor não leia coisas falsas, ou talvez permaneça repentinamente interditado na igreja diante dos seus irmãos na religião.

De resto, deve-se fazer obra valiosa, e copiar os livros santos, e o escriba não será privado da sua própria recompensa. Mais do que cavar a videira, é bom copiar livros: lá se trabalha para a venda, aqui, para a alma. Do novo e do antigo, todo mestre poderá produzir em abundância, se ele ler os ensinamentos dos santos padres." (Alain, "Poème no 94".)

Um manuscrito no centro de mistério
O cotidiano dos copistas medievais é o cenário que o escritor italiano Umberto Eco escolheu para seu romance O nome da rosa (Difel), que viria a se transformar em filme de sucesso. A ação se passa num mosteiro em algum lugar no norte da Itália, no qual há uma imensa biblioteca com obras profanas e sagradas. E o enredo fala de uma série de crimes que, como se vê pelo desenrolar da história, estão de alguma forma ligados a esses livros. A reconstituição é perfeita e até o nome scriptorium é utilizado, embora as legendas do filme usem a palavra "escritório", que, apesar de ter derivado da primeira, não traduz o sentido específico, qual seja, o local onde trabalhavam os copistas.

Pierre Riché é professor emérito de História Medieval na Universidade de Paris X, Nanterre; publicou livros relacionados à História da cultura e da educação na idade média ocidental, entre eles, La Vie Quotidienne dans L´Empire Carolingien ( Paris, 1973).

Revista Historia Viva

2 comentários:

GoldShine disse...

Interessante como conseguimos salvar parte de toda nossa historia, com os escritos. Na realidade, essas pessoas nem sabiam que suas ações ao copiar, nos trariam essas oportunidades de conhecer a historia, e apronfundar mais.

http://xcafedamadrugadax.blogspot.com

Caillean )0( disse...

Muito interessante seu blog adoro historia e este espaço é um poço de informaçoes.
Obrigada por me seguir, também estarei te seguindo e vindo, sempre que puder,aprender mais um pouquinho.

Beijos
)0(