por Aymar du Chatenet
O artista denunciou seus funcionários e perseguiu celebridades com o apoio do Senado americano
Walt Disney não foi apenas o pai de Mickey e Donald, o produtor de Branca de Neve, Bambi, Dumbo e Pinóquio e o genial inventor da Disneylândia. Durante 26 anos, de 1940 a 1966, o artista forneceu aos agentes do governo americano relatórios sobre atividades consideradas subversivas das estrelas de Hollywood, dos sindicatos de técnicos e das associações de artistas, roteiristas, produtores e escritores.
A atuação de Disney como informante do FBI, o Federal Bureau of Investigation, foi divulgada inicialmente pelo escritor Marc Eliot em O príncipe sombrio de Hollywood (Ed. Marco Zero). A biografia, classificada como “não autorizada” pela imprensa americana, traz uma análise de 470 páginas de informações produzidas pelo próprio órgão estatal. Para acessar o dossiê, Eliot recorreu ao Freedom of Information Act, um dispositivo legal que autoriza qualquer cidadão americano a ter acesso aos arquivos de uma administração. O material não está completo: faltam 100 páginas e muitas das recebidas pelo autor foram escurecidas, para garantir o anonimato de informantes ou de pessoas colocadas sob suspeita por Disney.
Segundo os dados obtidos, a parceria começou em 1940, quando o artista tinha 39 anos. Nessa época, o poderoso e temido chefe do FBI, John Edgar Hoover, colecionador inveterado de segredos de alcova, assuntos de família e fofocas de todo tipo, se propôs a ajudar Disney na busca por sua árvore genealógica. O assunto era um tormento para o animador desde a adolescência, quando descobriu que não possuía certidão de nascimento. Acreditando ser adotado, ele fez inúmeras pesquisas para encontrar suas origens, todas sem resultado. A oferta do FBI era uma ótima oportunidade para finalmente atingir seu objetivo. Em troca do esforço dos agentes, Disney tornou-se informante e manteve uma relação quase filial com Hoover.
O acordo, imediatamente colocado em prática, levou dois investigadores americanos à cidade de Mojacar, na Espanha, em busca do atestado de nascimento. Eles encontraram o registro de uma criança, nascida por volta de 1890, cuja mãe teria sido Isabel Zamora Ascencio.
O pai, um notável chamado José Guirao, era casado com outra mulher e não assumiu a relação com a amante. Após sua morte, a señorita Zamora teria embarcado para a América e Disney seria, na verdade, o pequeno José, nome de batismo do bebê espanhol. Pura especulação, as informações foram habilmente utilizadas por Hoover para manter estreitos laços com o cineasta.
Disney e Charles Chaplin, vítima célebre da caça as bruxas empreendida no macarthismo
Mas a aliança era bilateral e Disney utilizou-a muitas vezes, fora da alçada particular inicial. Recorreu à polícia federal contra os sindicatos e, em outro nível, para quebrar o monopólio das grandes companhias cinematográficas, que controlavam a distribuição e exportação da produção hollywoodiana. Para ele, os sindicatos eram certamente comunistas e as empresas, a expressão de um complô tramado por imigrantes do leste europeu. Não seria Hoover quem iria contradizê-lo.
Em 1941, o artista realizou uma de suas obras-primas, Fantasia. O filme, protagonizado por Mickey Mouse, foi um fracasso de público. O cineasta atribuiu a péssima recepção da animação a uma “conspiração sindical”, em um período em que seus funcionários entraram em greve por melhores condições de trabalho.
Greve e perseguição
A mobilização eclodiu quando os diretores do estúdio proibiram o estabelecimento de sindicatos filiados à Cartoonist Guild, espécie de federação dos cartunistas. Com barricadas e piquetes, a queda-de-braço durou vários meses. Por fim, todos os líderes sindicais foram demitidos, e Disney aproveitou a Huac, Comissão de Investigação sobre as Atividades Antiamericanas, que funcionou entre os anos 1938 e 1975, para pedir investigação dos militantes. Por vingança, perseguiu os sindicalistas durante anos, mas foi obrigado a readmitir alguns após processos jurídicos.
Em fevereiro de 1944, ele participou da fundação da Motion Picture Alliance, uma máquina de guerra a serviço do anticomunismo. A organização agrupou a nata dos conservadores, entre eles, o milionário e magnata da imprensa, William Randolph Hearst, e os astros John Wayne e Gary Cooper. Em sua declaração de princípios, a MPA alertava para uma possível “dominação dos comunistas, dos radicais e desmiolados de todo tipo”.
Nove dos Dez de Hollywood, grupo de escritores de esquerda perseguidos no período
Em março do mesmo ano, Disney dirigiu-se ao Congresso dos Estados Unidos, solicitando à Huac que estudasse “a maneira flagrante com que a indústria do filme alimentou, em seu seio, comunistas e outros grupos de tendência totalitária, que trabalhavam na divulgação de idéias e de crenças antiamericanas”. O clima de inquisição em Hollywood estava criado. Qualquer pessoa suspeita de ser liberal ou progressista era ouvida pelos políticos, amplamente apoiados e encorajados em seus trabalhos pelo FBI. Em 1947, a Huac investigou, entre outros alvos, um grupo de escritores de esquerda conhecido como “Os dez de Hollywood”. Por se recusarem a responder às perguntas sobre uma eventual ligação com o partido comunista, eles tiveram suas carreiras prejudicadas e alguns cumpriram pena de prisão. A acusação era a de violação da primeira emenda da Constituição americana, que ironicamente regula a liberdade de expressão, de opinião e de manifestação.
No clima de perseguição, Disney também participou ativamente do Communist Pictures, um grupo de representantes do FBI dedicados a localizar subversivos. Entre os que se uniram a esse movimento, estava um ator de segunda categoria, então desconhecido do grande público: Ronald Reagan. O dossiê do FBI sobre aquele que se tornaria presidente dos Estados Unidos entre 1981 e 1989 é eloqüente. Militante sindicalista, Reagan logo tornou-se suspeito por sua atuação no comitê dos cidadãos para as artes, ciências e profissões liberais, considerado uma fachada para os comunistas.
Alertado por seu irmão Neil, membro do mesmo comitê, ele optou por colaborar com as investigações e fornecer aos agentes as listas de militantes ou simpatizantes do comunismo.
Denúncias públicas
Reagan foi brilhante e se tornou informante confidencial. Hoover aproveitou o talento de seu jovem recruta e fez com que fosse ouvido pela Huac.
Para jornais posteriores ao macarthismo, o termo para definir a perseguição política deveria ser "hooverismo", em referência a J. Edgar Hoover (acima)
Em 24 de outubro de 1947, foi a vez de Disney depor perante os políticos, no mesmo dia de Gary Cooper. No relatório da audiência, consta um trecho do diálogo em que os membros da comissão perguntavam se houve, “em qualquer período que seja, comunistas empregados no estúdio”. E o artista respondeu: “Sim. No passado tivemos algumas pessoas que acredito serem comunistas”. Questionado se a greve teria sido fomentada por membros do partido comunista, ele afirmou: “Estou profundamente convencido de que um grupo de comunistas tentou influenciar nossos artistas e conseguiu”. No depoimento, citou os nomes de Herbert Sorrell e Dave Hilberman, dois sindicalistas que participaram da mobilização. Porta-voz dos sindicatos hollywoodianos, Sorrell viu sua carreira naufragar e morreu após um ataque cardíaco aos 45 anos. Hilberman foi vigiado durante anos pelo FBI e teve de se mudar para Nova York, onde trabalhou para uma sociedade de produção tachada de socialista.
A postura anticomunista não escapou à União Soviética, que proibiu os filmes de Disney em todo seu território a partir de março de 1949. Em reação a essa sanção, o artista recebeu uma placa de bronze da Câmara do Comércio de Los Angeles, por sua contribuição ao comércio internacional. O clima de tensão se agravou em 1950, com o crescimento da popularidade do senador republicano Joseph MacCarthy, anticomunista fervoroso. Além da Huac, diversos outros instrumentos estavam atuando, como o Subcomitê Interno de Segurança do Senado e o Subcomitê Permanente de Investigações do Senado. Entre 1949 e 1954, mais de 109 dossiês foram analisados no Congresso americano e o termo “macarthismo” passou a definir a política de perseguição sistemática aos partidários da esquerda, embora alguns jornais tenham posteriormente afirmado que o nome ideal seria “hooverismo”. Toda pessoa que se recusasse a comparecer aos depoimentos era automaticamente fichada. John Huston, Katharine Hepburn, Lauren Bacall e Humphrey Bogart receberam muitas críticas por se limitaram a dar respostas evasivas. Os escritores: John Steinbeck, Arthur Miller, Tennessee Williams, Truman Capote, Dashiell Hammett e Thomas Mann também foram espionados. Outra vítima célebre dessa caça às bruxas foi Charles Chaplin, cujos protestos contra a histeria anticomunista irritavam Disney. Apesar de sua fama, o criador de Carlitos não escapou das perseguições, que o obrigaram ao exílio na Europa.
No Natal de 1954, o chefão do FBI nomeou Disney agente especial, o que fez dele um informante de confiança. Essa promoção não foi desinteressada, pois ocorreu no momento em que o artista estreou no mundo da televisão, assinando um acordo com o canal ABC. Hoover deu uma importância especial a essa mídia, pressentindo a força que iria adquirir nos anos seguintes. Em relatório confidencial, Hoover escreveu: “Tendo em vista o prestígio do sr. Disney, o produtor mais importante de desenhos animados da indústria do cinema, sua competência e suas vastas relações no domínio da produção, nós estimamos que sua colaboração para os serviços do Bureau pode se revelar preciosa. Por isso, recomendo que seja promovido a contato oficial de nossos serviços, sob o título de Special Agent in Charge”.
A lua-de-mel foi finalmente encerrada em 1956. Vítimas de sua paranóia, os homens de Hoover, se não o próprio, começaram a suspeitar de Disney quando ele solicitou uma área do FBI como locação de curtas-metragens do Clube do Mickey. Apesar de terem autorizado a filmagem, o clima de confiança nunca mais foi o mesmo. Em 1961, o artista aprovou o roteiro de Um piloto na Lua, que ridicularizava policiais. Quatro anos depois, se recusou a modificar o script de O espião com patas de veludo, pouco elogioso ao FBI.
Vítima de Hoover
Ignorando a qualidade de informante de Disney, os agentes fizeram uma investigação para provar que ele havia participado da Noite das Américas, evento do Conselho de Democracia Pan-americana, considerado uma associação subversiva, e de uma homenagem a Art Young feita pelo jornal New Masses, taxado como aliado do partido comunista americano. Quando o presidente Dwight Eisenhower (1953-1961) listou personalidades suscetíveis de serem nomeadas ao Conselho Nacional da Cultura, Hoover enviou os dossiês desses dois casos e o nome de Disney foi descartado.
O artista passou de colaborador à vítima do chefão do FBI, que de 1924 a 1972 reinou como mestre absoluto sobre toda a vida política dos Estados Unidos, fichando mais de 159 mil de pessoas. Até hoje, a família do homem vencedor de 29 Oscars e 4 Emmy nega sua participação no macarthismo, sob o argumento de que ele seria apenas um “contato” do FBI. Para seu biógrafo, o “público americano só conhecerá a verdade no dia em que todas as peças – sem cortes – do dossiê Disney, em poder do FBI, estiverem disponíveis”. Um forte indício de que as informações divulgadas até agora estão corretas é que nenhum processo foi aberto contra o livro, traduzido em 14 línguas.
Zé Carioca, um brasileiro em defesa dos EUA
Em plena Segunda Guerra Mundial, Walt Disney desembarcou no Brasil para colaborar com a “política da boa vizinhança”. À época, o governo Getúlio Vargas flertava com o Eixo, em detrimento dos Aliados, e os Estados Unidos adotaram uma campanha para ampliar sua influência política, econômica e cultural no país. Entre as iniciativas para aproximar as duas nações, estavam o impulso à carreira de Carmem Miranda e a viagem de 15 dias de Disney ao Rio de Janeiro. A missão do artista, instruído cuidadosamente por Nelson Rockefeller, diretor da influente Secretaria para Assuntos Interamericanos, era ganhar a simpatia dos brasileiros e o resultado foi a criação de Zé Carioca. O papagaio estreou no filme Alô, amigos de 1942, em que ciceroneava o Pato Donald pelo país. A passagem pela América Latina ainda rendou outros dois personagens: o Gauchinho Voador, representante da Argentina, e o galo mexicano Panchito. Todos se tornaram bons amigos de Donald, simbolizando o que deveria ser a relação com os americanos.
Aymar du Chatenet é jornalista e escritor
Revista Historia Viva
Um comentário:
Só assim pra conhecermos as histórias de vida das pessoas. Além das câmeras, do cinema e do desenho... ele foi um agente do FBI... grandes interesses por parte dos dos lados heim!
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