Celso Furtado
O economista Celso Furtado conversa com o presidente Lula, em 2004
"Eu venho de um mundo que me parecia catastrófico. Pombal é das cidades mais ásperas do sertão. Região seca, de homens secos. Muito menino, eu olhava pela fresta da janela a chegada dos cangaceiros...
...Quando a Coluna Prestes passou por perto, ouvi os adultos dizerem que era como uma praga de gafanhotos, que tomavam as reses dos ricos, para comer, e deixavam, como pagamento, papéis rabiscados. Poucos sabiam o que queriam aqueles homens, vistos como desertores do Exército comandados por um capitão de 26 anos...
...O governador João Pessoa era tido como uma espécie de santo. Quando foi assassinado, as pessoas saíram às ruas em procissões. Foi no dia 26 de julho de 1930, em que eu completava dez anos. As empregadas da casa me levaram a essas manifestações cívicas, que mostravam a revolta contida do povo...
...Ia publicando em revistas de prestígio, escrevia para as que existiam na época. Por exemplo, a revista Cultura Política, que era, na verdade, subsidiada pelo governo. Mas nós, que não éramos simpáticos ao governo - que éramos, pelo contrário, críticos - tínhamos acesso a ela porque o seu secretário era Graciliano Ramos. Ele é que fazia o editing da revista, lia as provas dos artigos. Ele me chamou lá e me disse: 'Esse filho é seu?'. Eu disse: 'Sim'. Era um artigo sério, circunspecto...
...Hoje, uma reflexão sobre a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) deve partir do reconhecimento de que ela constituiu a única escola de pensamento sobre política econômica, surgida na vasta área conhecida como Terceiro Mundo...
...Se eu não estivesse fora do Brasil, provavelmente não teria prestado atenção, mas o fato de viver fora, de trabalhar numa equipe internacional, me obrigou a enfrentar esse desafio que era decifrar o Brasil, entender onde estavam os erros. Será que nós, brasileiros, éramos realmente inferiores, como muita gente insinuava? Ou será que a classe dirigente brasileira é que não tinha política, não tinha uma visão clara das coisas, não tinha projeto para alavancar o País?...
...Juscelino (Kubitschek) era uma pessoa imaginativa, corajosa, e ao mesmo tempo demasiado otimista. Acreditava muito em tudo o que fazia. Quando fui ao Palácio Rio Negro (fim dos anos 50), em Petrópolis, expor os planos para agir no Nordeste (fase embrionária da Sudene), ele me disse: 'Você precisa de quantos dias para pôr tudo isso no papel?' Caí na besteira de dizer: 'Umas três semanas'. Não tive mais sossego.
...Ouvi pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, figurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Processo secreto. Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade!...
...No Nordeste, as conseqüências do golpe militar foram muito graves, pois a repressão exercida, desde o início, liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior e que prenunciavam ampla reconstrução de suas estruturas. O Nordeste acumulara, historicamente, o maior atraso social do País. A criação da Sudene, que me coube dirigir, desde sua implantação em 1959 até o golpe militar, era uma tentativa de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão desvalida...
Celso Furtado concebeu a Sudene, em 1959, com o apoio do presidente Juscelino, no centro da foto
...Em 1971, passei uma temporada de dois meses no Brasil e, quando voltei para a França, escrevi o livro Análise do modelo brasileiro, para mostrar a situação em que se encontrava o País. Expus como todo o desenvolvimento que se fazia era anti-social, muito mais ainda que no passado; tudo era feito para promover um formidável arrocho e concentração de renda, o que decorria do fato de não haver mais sociedade civil organizada, pois ela estava prostrada e morta. Foi uma certa revanche, já que diziam que eu não sabia o que se passava no Brasil...
...Nos anos 80, tínhamos perdido muitas batalhas. Não havia muita esperança e a margem de manobra era pequena. Depois da grande crise de 82, com a crise de pagamentos, o endividamento e a explosão da dívida externa, o espaço para fazer política no Brasil se reduzira drasticamente. E passou a me preocupar principalmente o social. O que me interessava era a aplicação de categorias mais amplas. Não a temática diretamente econômica...
...Participei de um projeto nacional, o da industrialização. Vencemos quem defendia um país essencialmente agrícola, e ele cresceu. Mas esse não era o projeto da elite. Foi um tiro que saiu pela culatra. Ela era contra, mas não conseguiu impedir projetos concretos, específicos. Juscelino, Jango e Jânio, todos seguiram essa política. Hoje, o que se coloca é exatamente isto: voltar a pensar o Brasil como sistema econômico..."
Trechos de site editados e depoimento coletado pela jornalista Sucena Shkrada Resk
Revista Leituras da Historia
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