Em ovações entusiasmadas ou em tom mais sóbrio, os poetas exaltavam a notícia: foi abolida a escravidão!
José Américo Miranda
Um menino mulato, nascido no Rio de Janeiro, completava 7 anos de idade no dia 13 de maio de 1888 – data em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando todos os escravos do Brasil. Para comemorar o acontecimento, o pai o levou para ver a multidão nas ruas. O nome do menino era Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922). Mais tarde, em 1911, o escritor já consagrado registraria em uma crônica a lembrança daquele dia: “Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas...”
Chegava ao auge uma crescente comoção pública em louvação à liberdade. Havia tempo que as discussões sobre a abolição já não se limitavam às salas e aos ambientes fechados — tinham migrado para a praça pública. As festas se espraiaram por todo o Império. Antes mesmo da assinatura da Lei, as comemorações já aconteciam nos mais diversos pontos do país. “Aclamações populares” no Maranhão, “delírio” no Recife, “estrondosas manifestações de regozijo popular em Natal”, uma multidão aglomerada nas ruas de Fortaleza.
Diante da empolgação generalizada, a cabeça e o coração dos artistas não poderiam ficar insensíveis. Grande parte da nata dos poetas brasileiros compôs e declamou em público versos que exaltavam aquele momento. Em diversos estilos e formas, expressando emoções diferentes, os poetas colocaram seus versos a serviço de uma causa maior, não só política, mas humanitária.
Nas ruas do Rio de Janeiro, durante as festividades que se estenderam por toda a semana seguinte à assinatura da Lei, dezenas de poesias em panfletos coloridos foram distribuídas aos populares. Os panfletários se esbaldaram, liberando as emoções com todos os excessos e transbordamentos a que tinham direito. Artur Azevedo (1855-1908) foi um deles:
“Arcanjo de liberdade,
Da Pátria loura esperança
Mimosa flor de Bragança
Celeste núncia do amor;...
...Princesa toda bondade,
Exemplo dos soberanos,
Vê que os corações humanos
Têm todos a mesma cor”.
“Arcanjo de liberdade” era a princesa Isabel, que merecia dos poetas as mais efusivas loas. Para Valentim Magalhães (1859-1903), uma “grande e santa mulher!” A grandiloqüência era a regra geral. A poetisa Adelina Lopes Vieira (1850 - ?), diante dos sucessos de nossa história, afirma que “Tudo na terra exulta!” Oscar Pederneiras (1860-1890), embora mais modesto na abrangência da exultação, é prolixo e arrojado: “Exulta o coração da Pátria arrebatada!” Já Soares de Sousa Júnior (1851-1893) traça um paralelo com um acontecimento bíblico: “O Lázaro ressurge! É findo o sofrimento!” Mais simples e direto, o poeta Oliveira e Silva (? - ?) escreve em versos de sete sílabas, mas sem abrir mão de suas típicas exclamações:
“Vamos! De pé! Abram alas
À idéia da Abolição!
Já não existem senzalas,
Foi outrora a escravidão!”
A imagem do sol correspondia, na poesia dessa festa pública, à idéia abstrata da liberdade. A. Peres Júnior (1865-1943) aclamou assim a boa nova: “Salve, ruidoso sol da Liberdade!” Entre os “luminosos”, Rodrigo Otávio (1866-1944) também pega carona nos feixes de luz: “Celebra, povo, a era luminosa!” E Virgílio Gentil (? - ?) enxerga a “deusa festiva” irrompendo “banhada em pura luz”.
Diante do extraordinário, Lúcio de Mendonça (1854-1909) não se contém: “Que assombroso espetáculo!” Exultante, Bernardino Queirós (? – 1892) anuncia: “Rasgou-se a folha negra!...”. Mais terno e sentimental, Henrique de Magalhães (1856 - ?) escreve: “E dos seios, enfim, da negra mãe chorosa/Não mais se há de arrancar choroso o filho negro!...”. Extravagante, o poeta B. Lopes (1859-1916) queria mesmo era comemorar: “Dêem-me daí um copo de cerveja!”
Não é de estranhar que um acontecimento público dessa dimensão estimulasse os poetas do tempo ao canto festivo, fazendo reviver com esse gesto uma das mais antigas funções da poesia lírica. Na Antiguidade, o poeta lírico emprestava sua voz à coletividade, na expressão de sentimentos que eram compartilhados por todos – especialmente em festas tradicionais. O mundo moderno seqüestrou o lirismo na intimidade da vida burguesa, afastando-o progressivamente da vida pública. As festas que se seguiram à abolição fizeram ressurgir em nossa História essa expressão antiga, remota, arcaica, da poesia.
São chamadas de poesias de circunstância aquelas obras que tiveram sua criação determinada ou induzida por um acontecimento ou fato exterior, conhecido por todos, alheio à intimidade do poeta. Para serem compreendidas e exercerem um efeito pleno, dependem do conhecimento prévio do contexto em que foram elaboradas. Opõem-se, assim, às poesias que se pretendem intemporais, que aspiram à transcendência e à universalidade.
É certo que toda poesia tem sua história, sua circunstância. O grande poeta Manuel Bandeira (1886-1968) chegou a afirmar certa vez que nunca conseguiu escrever poesia sem buscar apoio nos fatos, nas circunstâncias: “Sou poeta de circunstâncias e desabafos”.
Embora integrados ao espírito vivo daquele momento histórico, os panfletos abolicionistas também podem ser analisados segundo questões de técnica e estilo. Um bom exemplo para essa abordagem é o cronista Machado de Assis (1839-1908), cujos versos de circunstância remaram na contramão da euforia dos demais.
“Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembro ter visto”, escreveu Machado. A forte impressão que o evento lhe causou levou “o mais encolhido dos caramujos” – definição que deu a si próprio – a também render sua homenagem à musa das ruas. Num dos muitos panfletos distribuídos ao povo na procissão cívica — o que hoje chamamos de “desfile” ou mesmo “passeata” — do dia 20 de maio, o Bruxo do Cosme Velho ofereceu ao público o seguinte poema:
13 DE MAIO
“Brasileiros, pesai a longa vida
Da nossa pátria, e a curta vida nossa;
Se há dor que possa remorder, que possa
Odiar uma campanha, ora vencida,
Longe essa dor e os ódios seus extremos;
Vede que aquele doloroso orvalho
De sangue nesta guerra não vertemos...
União, brasileiros! e entoemos
O hino do trabalho.”
Em contraste com o clima festivo que dominava o ambiente, o que se destaca no poema é a sobriedade da expressão. Fiel ao estilo do autor, o vocabulário dos versos tem um grande valor pela recuperação dos sentidos originais de certas palavras. O verbo “pesar” no primeiro verso, por exemplo, significa “considerar, examinar com atenção”.
O aspecto exterior do poema, numa só estrofe de nove versos (oito de dez sílabas e o último de seis), lembra a forma de epigrama (breve e incisiva), mas tem um tom elevado, que funciona como contrapeso à tendência para a ligeireza. Os versos de dez sílabas, ora acentuados nas sílabas sexta e décima, ora nas sílabas quarta, oitava e décima, além de evocar o tom elevado e público dos assuntos de que trata, dão à estrutura do poema um equilíbrio notável.
Machado de Assis foi soberbo nesse momento: soube continuar sendo Machado de Assis – um homem circunspecto no meio da mais completa confusão, da alegria geral e das efusões expansivas. Como costumava, fez pose de estátua.
Àquela altura do século XIX, a grandiloqüência já era uma doença retórica nacional. A ocasião fez a festa. No momento em que todos os blocos se puseram nas ruas, a fantasia com que se vestiram todos os versos era constituída de metáforas grandiosas, hipérboles e pontos de exclamação. Era uma tentativa de levantar vôo. O condoreirismo, escola da última fase romântica no país, ainda estava no gosto e nos ouvidos do público. Com essa poesia panfletária, os versos de ocasião ultrapassaram todos os limites da tendência declamatória, grandiloqüente e retórica – no mau sentido da palavra.
Sobre a tendência ao excesso e o culto ao palavrório oco e retumbante na cultura brasileira, escreveu Aires da Mata Machado Filho (1909-1985): “Entre nós, parece que a incontinência verbal está na massa do sangue”. Ele não precisou conhecer essa poesia de festa para dizer o que disse, pois a tendência era generalizada, não caracterizava especificamente o grupo de poetas que celebrou nas ruas as festas da abolição.
Mas toda aquela exaltação denunciou que a linguagem exagerada da poesia brasileira já apresentava sinais de esgotamento. O patriotismo de elogios rasgados entrava em decadência e começava a ceder espaço a novas manifestações. Vinha chegando um novo tempo, em que Oswald de Andrade (1890-1954) e seus companheiros haviam de dar um basta nas formas antigas de manifestação artística e pôr outro bloco na rua, para – como está dito no “Manifesto da poesia pau-brasil” (1924) – “acertar o relógio império da literatura nacional”. Mas isso já é outra história...
José Américo Miranda é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do livro Maio de 1888: poesias distribuídas ao povo, no Rio de Janeiro, em comemoração à Lei de 13 de maio de 1888. (ABL, 1999)
Saiba Mais - Livros:
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto da poesia pau-brasil”. In: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v.3. BARRETO, Lima. Feiras e mafuás. São Paulo: Brasiliense, 1961.
MACHADO FILHO, Aires da Mata. Falar, ler e escrever. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956.
VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Panfletos abolicionistas. O 13 de maio em versos. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2007.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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