por Pietro Rinaldo Fanesi
Garibaldi na revolução – Anita Garibaldi, óleo sobre tela, Johann Moritz Rugendas, século XIX
Anita, a grande paixão da vida de Garibaldi, contribuiu para que o mito do aventureiro italiano assumisse um caráter popular no Brasil
Em 1836, o líder da Revolução Farroupilha, Bento Gonçalves, então preso no Rio de Janeiro, recebeu a visita de um imigrante que havia chegado há pouco da Itália e começava a circular pelos círculos da maçonaria brasileira. Seu nome era Giuseppe Garibaldi, e assim começava a trajetória política do revolucionário italiano pela América do Sul, que lhe renderia o título de “herói de dois mundos”.
Ao aportar no Brasil no final de 1835, Garibaldi havia imediatamente se dirigido à comunidade de italianos que adotaram o Rio de Janeiro como lar depois de expulsos de seu país por lutarem pela unificação italiana. Seu primeiro contato político foi Giuseppe Stefano Grondona, imigrante oriundo da Ligúria que chegara ao Rio em 1815, admirador do pensamento político do republicano italiano Giuseppe Mazzini. Grondona mantinha relações com os círculos democráticos de Marselha, porto de onde Garibaldi havia embarcado para a América, e aparentemente o recebeu bem na capital brasileira, introduziu-o nos meios da maçonaria local.
O recém-chegado estreitou relações com outros dois exilados italianos, Luigi Rossetti, instalado no Brasil desde 1827, e Giovanni Battista Cuneo, que era ao mesmo tempo o principal divulgador das idéias de Mazzini entre os italianos residentes no Brasil, por meio da revista Giovine Italia, e um grande captador de recursos para uma futura insurreição em sua terra natal. Foi por meio desses exilados e do também italiano Livio Zambeccari que Garibaldi entrou em contato com o gaúcho Bento Gonçalves, que se tornara também um simpatizante de Mazzini por meio da influência dos maçons italianos e representava um elo dos republicanos com a elite brasileira e, em particular, a do Rio Grande do Sul.
Sabe-se pouco sobre estas relações travadas no interior da maçonaria, motivadas por comuns ideais humanitários, internacionalistas e republicanos, mas elas podem ajudar a entender o mito que se criou no Brasil em torno da figura de Garibaldi que, após a libertação de Bento Gonçalves, lutou ao lado dos riograndenses na tomada de Laguna, em Santa Catarina, onde foi fundada a breve República Juliana em 1839. Foi ali que o “herói de dois mundos” conheceu a mulher que viria a ser a grande paixão de sua vida: Ana Maria de Jesus Ribeiro, ou simplesmente Anita Garibaldi. Por meio dessa relação o mito construído em torno de Garibaldi no Brasil assumiria uma forte ligação com a cultura popular local, permanecendo vivo até os nossos dias. Entre a população do sul do país tornou-se consenso ver no aventureiro italiano a figura de um herói popular, a não ser em áreas de grande imigração italiana procedente do Vêneto, com forte matriz católica e conservadora, como no caso da região de Caxias do Sul. Nessa região, a figura de Garibaldi foi objeto de uma confrontação política e cultural que teve conseqüências até épocas mais recentes.
Batalha dos Farrapos, óleo sobre tela, José Washington Rodrigues/ Prefeitura Municipal de São Paulo
Garibaldi lutou ao lado dos republicanos riograndeses na Revolução Farroupilha, o que fez dele um herói no sul do Brasil
Após a derrota da Revolução Farroupilha em 1840, Garibaldi estabeleceu-se no Uruguai e novamente lutaria ao lado dos republicanos e independentistas na guerra civil uruguaia ao participar da defesa de Montevidéu junto com os unionistas para libertar a cidade do cerco imposto pelas tropas do ditador argentino Manuel de Rosas e do líder conservador uruguaio Manuel Oribe. Ao contrário do Brasil, no entanto, no Uruguai as façanhas de Garibaldi não tiveram o mesmo reconhecimento unânime por parte da população local.
Na sociedade uruguaia a figura de Garibaldi sempre esteve no centro do debate entre as duas principais formações políticas do país: os colorados e os blancos. Os primeiros, representantes do liberalismo local, viam no revolucionário o chefe da Legião Italiana, herói da defesa de Montevidéu e da batalha de Santo Antonio del Salto, símbolo de uma visão laica e republicana da sociedade. Os outros, que representavam setores clericais e conservadores, viam nele apenas um mercenário intrometido numa guerra alheia.
A ligação de Garibaldi com o Uruguai foi tão forte que nas décadas posteriores ao seu retorno à Europa, várias ondas de exilados italianos aportaram em Montevidéu. Depois que os voluntários comandados por Garibaldi que marchavam para tomar Roma foram derrotados em Mentana, em 1867, mais de 1700 camisas vermelhas chegaram à capital uruguaia, muitos deles acompanhados pelas famílias, reforçando uma relação que nunca havia esvanecido. Esta imigração de tipo peculiar contribuiu com certeza para dar nova seiva, entre outras coisas, aos ideais garibaldinos que desde o primeiro momento tiveram fácil inserção na região do Rio da Prata dentro dos grupos inspirados pelos primeiros pensadores socialistas, como Saint-Simon, e depois por liberais ligados à maçonaria.
Por fim, também na Argentina foi construído um mito em torno de Garibaldi. Apesar do “herói de dois mundos” nunca ter de fato atuado nesse país, sua figura foi associada ao ativismo político ligado às idéias republicanas e, mais tarde, socialistas e anarquistas, pelo trabalho de Giovani Battista Cuneo e outros seguidores de Giuseppe Mazzini que atuavam na república platina. A presença dos exilados italianos na Argentina, e em Buenos Aires em particular, passou a ser marcante a partir de 1820, quando ativistas começaram a chegar ao Rio da Prata após serem expulsos de sua terra natal por participarem dos primeiros levantes republicanos na Itália.
Regresso de Garibaldi depois da Batalha de Santo Antonio, óleo sobre tela, Johann Moritz Rugendas, século XIX, Museu histórico de Montevidéu/ Museu Histórico de Montevidéu-Cabildo, Uruguai
No Uruguai, Garibaldi lutou pela causa republicana e tornou-se a grande figura na defesa de Montevidéu contra o cerco imposto pelos conservadores locais
Muitos marinheiros e mercantes instalaram-se na região e com certeza contribuíram para alimentar os ideais do Risorgimento entre os primeiros núcleos de imigrantes italianos e na própria sociedade portenha. Na Argentina, graças ao trabalho de Giovani Battista Cuneo, o pensamento de Mazzini influenciou fortemente os intelectuais liberais da chamada “Geração dos Proscritos”, e da Joven Generación Argentina, também conhecida como Asociación de Mayo, ponto de reunião, desde 1837, de figuras como Esteban Echeverria, Juan Battista Allberdi, Bartolomé Mitre e Miguel Irigoyen, que formavam a flor da elite rioplatense nos anos da grande imigração. Cuneo foi, muitas vezes, o respaldo intelectual da ação de Garibaldi na América Latina, e sua relevância foi tal que foi escrito que “a história da difusão do pensamento de Mazzini na América Latina foi em grande parte a história deste grande italiano imigrante”.
Em todos os países sul-americanos onde atuou, Garibaldi tornou-se um mito que foi utilizado de forma ambígua como elemento de identificação das comunidades italianas, relacionado ao binômio patriotismo-italianidade: de um lado Garibaldi maçom, anticlerical, democrático, internacionalista; do outro, o “pai da Pátria” (em particular a partir dos primeiros anos do século XX), sacralizado em alguns casos não apenas pela parte laica da sociedade.
Na ocasião da morte do “herói dos dois mundos”, em junho de 1882, em muitos países americanos as comemorações e as homenagens fúnebres adquiririam feições não apenas rituais, mas com forte significado político. No Uruguai a notícia da morte de Garibaldi foi recebida com forte emoção, com comemorações que foram organizadas pela comunidade italiana e a maçonaria local, e honras militares que lembraram a memória do vencedor da batalha de Santo Antonio del Salto. Em Porto Alegre, no ano seguinte foi inaugurado o primeiro trecho da rua Garibaldi, enquanto em várias localidades do sul do Brasil e na Argentina numerosas associações de assistência social e hospitais fundados pelas comunidades italianas receberam o nome de Garibaldi.
Com a chegada do novo século, as comunidades italianas aproveitaram a data do 4 de julho de 1907, primeiro aniversário do nascimento de Garibaldi, para dar continuidade a projetos destinados a consolidar a memória do herói, inaugurando estátuas e monumentos e batizando novas ruas e praças em várias cidades. A história da construção de monumentos dedicados a Garibaldi, e também a Anita, mereceria uma reconstrução cuidadosa, mas aqui cabe ressaltar a relevância desta questão para o conjunto das relações políticas e culturais dentro das comunidades italianas e nos meios locais. Em Montevidéu, por exemplo, os “camisas vermelhas”, herdeiros da memória garibaldina, esforçaram-se para convencer o governo local da necessidade de tornar visível a presença do herói na capital da república oriental. Seus esforços foram premiados quando, em 1900, foi colocada a pedra fundamental de um monumento nacional em homenagem a Garibaldi, com um discurso inaugural de Pietro Gori, incansável animador do movimento anarquista entre os imigrantes italianos no Rio da Prata. No entanto, a obra projetada pelo escultor espanhol Augustin Querol, e financiada pelo governo com 100.000 pesos já em 1883, nunca chegou a ser realizada pela obstinada oposição do partido blanco, que pressionou o parlamento a impedir a finalização do monumento, provocando grande polêmica política.
Reprodução
Imigrantes italianis garibaldinos no Brasil comemoram o aniversário de morte do herói no início do século XX
Em Porto Alegre o monumento iniciado com uma subscrição pública em 1907, demoraria seis anos para ser inaugurado na nova praça dedicada ao herói, com grande participação da comunidade italiana. A escultura apresenta algumas peculiaridades interessantes: Garibaldi veste o poncho, representado o revolucionário da Farroupilha e ao seu lado já aparece Anita, a mulher guerreira.
Apesar da oposição de alguns setores políticos que não consideravam Garibaldi merecedor de um monumento de grande porte, por não ser um protagonista da história da Argentina, no bairro de Palermo, em Buenos Aires, foi erguida uma estátua eqüestre, obra do italiano Eugenio Maccagnani, inaugurada em 18 de junho de 1908, com a presença do presidente da república, Julio A. Roca.
O mito de Garibaldi, ainda bem depois da sua morte e da conclusão do processo de unificação nacional, teve uma excepcional e inédita capacidade de difusão e enraizamento popular não apenas na Itália, mas em todos os países onde o “herói de dois mundos” lutou, ou com presença de significativas comunidades italianas. Talvez porque Garibaldi, sendo neste sentido precursor de um moderno estilo de ação política, soube despertar o imaginário coletivo e popular por meio de seu extraordinário protagonismo.
Pietro Rinaldo Fanesi é professor do Departamento de História da Universidade de Camerino, Itália, e autor de Garibaldi, eroe moderno (Garibaldi, herói moderno – Editora Aracne, 2007)
Revista Historia Viva
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