Dom Quixote de La Mancha, a obra-prima de Miguel de Cervantes, foi o instrumento do escritor espanhol para combater o obscurantismo cultural de seu tempo
POR MARCOS ANTÔNIO LOPES
Na pintura do alemão Andreas Achenbach, Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança se preparam para sair pela Espanha em defesa dos ideais cavalheirescos de amor e justiça
A Espanha, na época dos últimos anos da vida de Miguel de Cervantes (1547-1616), estava em decadência. Era o fim do Século de Ouro, tempos de Carlos V (1550-1558) e Filipe II (1527-1598), os 80 anos gloriosos que marcaram o império no qual o sol nunca se punha, em alusão às possessões de um extremo ao outro do mundo. A União Ibérica (1580-1640) legou aos espanhóis importantes possessões portuguesas, como o Brasil e vastas regiões da Índia e da África. O gigantismo espanhol completou-se com a conquista das Filipinas, nome dado em homenagem ao rei Filipe II.
Dom Quixote de La Mancha, o famoso livro de Cervantes, foi concebido em um período particularmente difícil para o autor, contexto que coincidiu com os anos de transição entre os reinados de Filipe II e Filipe III. Dom Quixote é a obra de maturidade intelectual de Cervantes. O momento de elaboração da obra é o da acentuação aguda da crise econômica do império Habsburgo, em seu ramo ramo espanhol. O fim do século XVI e o início do século XVII foram marcados por duas bancarrotas da monarquia (1596 e 1607), sem falar na peste que dizimou um terço da população espanhola no mesmo período. Entre os anos de 1606 e 1610, a competição entre ingleses e holandeses fez com que as transações comerciais da Espanha, com suas possessões na América, declinassem aproximadamente 60%.1 Aliás, a crise econômica espanhola refletiu duramente sobre Cervantes, que viveu na penúria os seus últimos anos.
Na batalha naval de Lepanto contra os turcos otomanos (1571), Cervantes teve a mão esquerda atingida por um tiro de arcabuz e ficou conhecido como “El Manco de Lepanto”
A ESPANHA COMO UMA COLCHA DE RETALHOS
Com efeito, a monarquia absolutista espanhola, sob a qual viveu o autor, nem sequer poderia ser concebida como um Estado régio unitário nos séculos XVI e XVII. Uma unidade política, jurídica e administrativa coesa seria construída apenas no século XVIII, pelos esforços da política centralizadora da dinastia francesa Bourbon: “A monarquia Bourbon levou a cabo o que os Habsburgo não tinham conseguido fazer”.
Na época de Cervantes, o que se concebe como Espanha era um agregado heterogêneo de unidades políticas mais ou menos autônomas em relação à liderança exercida pelo reino de Castela. Ao longo dos séculos XVI, XVII e 18, aragoneses, catalães, valencianos, por exemplo, possuíam leis e costumes que os reis espanhóis eram obrigados a reconhecer mediante juramento no momento das sucessivas ascensões ao trono, além do reconhecimento da autonomia em relação a impostos militares. Tais unidades políticas possuíam administração autônoma e direitos salvaguardados em relação a Madri. E foi somente com o aparecimento de Filipe II, em meados do século XVI, que essa cidade passou a ser a capital do reino. Uma bandeira e um hino espanhóis, símbolos nacionais por excelência, foram adotados apenas no século XVIII. Mas o separatismo sempre foi forte em algumas regiões unificadas à força pelos reis espanhóis da época moderna. E esse sentimento separatista continua vivo até hoje, principalmente no País Basco e na Catalunha.
"Na época de Cervantes, o que se concebe como ESPANHA ERA UM AGREGADO HETEROGÊNEO DE UNIDADES POLÍTICAS MAIS OU MENOS AUTÔNOMAS em relação à liderança exercida pelo reino de Castela"
Ninguém sabe ao certo onde e quando Miguel de Cervantes nasceu. Acredita-se que tenha sido no município espanhol de Alcalá de Henares, no dia 29 de setembro de 1547
A FUSÃO DA HISTÓRIA COM A LITERATURA
As leituras que procuram relacionar temas literários a abordagens históricas já possuem larga tradição. Ao que parece, a literatura entrou de forma decisiva no campo de reflexão dos historiadores da cultura intelectual com o livro do historiador francês Lucien Febvre, publicado em 1947, sobre o problema da suposta irreligiosidade e/ou ateísmo na obra de François Rabelais. A partir desse estudo histórico de Febvre, que funda uma teoria interpretativa de textos do século XVI, os historiadores têm procurado estabelecer conexões entre as dimensões sociais presentes na obra ficcional e os aspectos históricos inerentes à obra literária. Atualmente, as perspectivas que buscam a aproximação entre a história e a literatura foram acentuadas. Elas se enraizaram em parte considerável das escolas históricas contemporâneas a ponto de quase apagar por completo a distinção do estatuto científico de um texto histórico em relação ao estatuto não-científico de um texto literário.
Cervantes foi crítico de idéias e crenças, como as práticas de feitiçaria e a intolerância religiosa
No início do século XVII essa distinção foi claramente percebida por Cervantes. E é pertinente dizer que, se há uma profusão de temas históricos em Quixote, há também muita sofisticação na abordagem deles. O autor não sacrifica a autonomia conferida ao ficcionista à isenção de análise esperada do historiador. Se ele foca temas históricos como componentes de fundo de suas inumeráveis tramas, não se deduz nenhum incontornável compromisso com a veracidade dos episódios narrados. Na segunda parte de Dom Quixote, há uma lúcida reflexão de Cervantes acerca daquilo que pertence à dimensão da criação literária e daquilo que é próprio da agenda de trabalho do historiador. Como ele reitera, “... uma coisa é escrever como poeta, e outra, como historiador; o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deviam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa”.
Quando Dom Quixote foi lançado, em 1605, a Espanha enfrentava a decadência depois do “Século de Ouro” de Carlos V e Filipe II (imagem)
Não é demais lembrar que Quixote é uma história e, como tal, é construída integralmente sob a vigilante crítica de historiador, haja vista que todo o romance se baseia em documentos judiciosamente analisados pelo narrador Cide Hamete Benengeli, um historiador. No início da primeira parte da obra, o narrador informa que a fonte de sua narrativa era um manuscrito árabe encontrado por ele na cidade de Toledo. A reflexão de Cervantes é avançada, principalmente para uma época em que a escrita da história privilegiava a beleza da forma, em detrimento do conteúdo crítico. A mero título de ilustração, nos Ensaios, o autor quinhentista Michel de Montaigne já distinguia esse gênero como próprio dos historiógrafos tagarelas, que tudo sacrificam às aparências, ao mesmo tempo que fazia o elogio da história crítica esboçada por Jean Bodin. Mas é certo que não se poderia esperar de Cervantes uma abordagem mais sofisticada acerca da própria relatividade daquilo que concebia como “a verdade”.
CERVANTES, O COLECIONADOR DE INSUCESSOS
Como sabemos, história de vida e criação literária são categorias reflexivas, o que parece significar que Dom Quixote coincide também com as ilusões perdidas de um autor que, aos 58 anos, já era um dos mais notórios colecionadores de insucessos da república das letras. Mentalidade moderna, Cervantes foi crítico de idéias e crenças, como as práticas de feitiçaria, as perseguições movidas pela intolerância religiosa e demais traços de obscurantismo, predominantes num tempo dominado pelo fanatismo religioso e por superstições de todo tipo. Ele foi leitor de Erasmo e, em matéria de crença religiosa, o seu Quixote revela certo desajuste em relação ao tom peculiar dos autores católicos de seu tempo. Definitivamente, a piedade cristã é uma nota bem fraca em seu livro.
No tempo de Cervantes, um homem poderia revelar o seu valor notabilizando-se pelo exercício das armas ou das letras. Cervantes, exemplo de mentalidade moderna – haja vista que Dom Quixote lhe serviu como instrumento de combate ao obscurantismo da cultura de seu tempo – construiu freqüentes paralelos entre esses honrosos ofícios. Ao contrário de Montaigne, que escreveu seus Ensaios a título de modestas reflexões dedicadas a um círculo restrito de amigos, Cervantes é o exemplo do indivíduo cioso da própria genialidade – aliás, teimosamente não reconhecida por seus contemporâneos –, e em busca incessante pelo sucesso no mundo das letras.
De tanto ler romances de cavalaria, o personagem Alonso Quijano enlouqueceu e decidiu adotar um nome bonito: Dom Quixote
Na batalha naval de Lepanto contra os turcos otomanos (1571), na qual combateu “mui valientemente” e teve a mão esquerda despedaçada por um tiro de arcabuz, Cervantes conquistou as glórias passageiras das armas e a alcunha permanente de “El Manco de Lepanto”. Ele se orgulhava de sua bravura nessa batalha. No prólogo da segunda parte de Quixote, irritou-se com as indignidades de Alonso Fernández de Avellaneda, o autor do falso Dom Quixote, publicado em 1614, que o chamara de velho e manco, “como se tivesse na minha mão demorar o tempo, que parasse para mim, ou como se tivesse saído manco de alguma rixa de taberna, e não do mais nobre feito que viram os séculos passados e presentes, e esperam ver os vindouros”, atroa Cervantes contra o plagiador de seu livro. Para ele, as feridas ganhas na “prodigiosa peleja”, tal a magnitude que assumiu Lepanto aos olhos de toda a Europa – a batalha que salvou a cristandade – eram motivo da mais elevada honra.
Em Quixote, há muita sofisticação na abordagem dos temas históricos
Em 1947, quando o historiador francês Lucien Febvre estudou a obra do francês François Rabelais, ele marcou a fusão da história com a literatura
TRIUNFO E SACRIFÍCIO
Nos séculos XVI e XVII, as armas implicavam a exibição de virtudes como a coragem e a força por parte do herói à procura de glória. Havia ainda uma sutileza a mais na definição das armas como um ofício dignificante. Ora, num tempo de guerras recorrentes que estavam definindo a nova geografia política da Europa moderna – os Estados territoriais emergentes –, o que poderia existir de mais elevado do que contribuir para a maior grandeza e glória do reino? A vida aventurosa nos tempos de Cervantes era uma oportunidade desejada por jovens fidalgos. O ofício das armas era o terreno próprio às proezas pessoais que distinguiam e notabilizavam até mesmo um simples particular sem maiores predicados e recomendações, caso do próprio Cervantes. Uma façanha nos campos de batalha, um ato de heroísmo em defesa da grandeza do reino, e eis que se estava bem arranjado na vida, reconhecido na Corte e premiado pelo rei em pessoa. Em defesa de seu reino e de sua fé – no caso dos enfrentamentos com o Islã em rápida expansão pelo Leste da Europa –, nem as maiores vicissitudes das campanhas – a morte, a fome, a peste, a prisão e o exílio – seriam fontes suficientes de desencorajamento de um herói em potencial.
Sem dúvida, o guerreiro deveria saber que não há triunfo sem sacrifício. Ainda que ocorra ao soldado cair em combate pela caucsa de seu príncipe, é sempre belo morrer de armas na mão. Eis o adágio de Virgílio, que Cervantes tomou como sua divisa. Em meio a uma crise de impaludismo no porão de um navio em Lepanto, ele fez questão de subir à proa para tomar parte nos combates.
"... UMA COISA É ESCREVER COMO POETA, E OUTRA, COMO HISTORIADOR; o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deviam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa"
Cervantes
O escritor tornou-se arrecadador e cobrador de impostos da monarquia espanhola
Dom Quixote transformou o lavrador Sancho Pança em escudeiro, e juntos enfrentaram as mais desastrosas aventuras pelos confins da Espanha
Acerca de Cervantes, muito se falou desde o tempo do próprio Cervantes. Personagem polêmico por sua vida aventurosa e por suas estranhas relações com a política e o poder, há muitos retratos do escritor espanhol, focados dos mais diversos ângulos. Autor complexo e enigmático, nenhum modelo teórico foi capaz de abarcar o sentido global de sua obra. Ele já beirava os 60 anos quando uma conjunção de reveses profissionais o levou a dar vida àquele que se tornaria o mais conhecido personagem da literatura ocidental. O aparecimento do velho e alquebrado cavaleiro, pele sobre ossos, veio à luz ao tempo do declínio do império espanhol. Assim sendo, talvez não fosse de todo impertinente interpretar o processo intelectual de elaboração do Quixote como uma espécie de metáfora à decadência espanhola. Sim, porque o pobre fidalgo não quer menos do que realizar proezas, mas sem os instrumentos para leválas a bom termo.
O cavaleiro Sancho Pança é o oposto de Dom Quixote: de origem humilde, Pança era mais realista. Mas, aos poucos, vai caindo nos delírios de Quixote
SOLDADO SEM GLÓRIAS
Apesar do heroísmo na vida real, as batalhas de Cervantes não haveriam de lhe render os frutos esperados na Corte de El Rei. De retorno à Espanha, após quatro anos de permanência na Itália, foi aprisionado por piratas turcos do norte da África por cinco anos e meio. Soldado sem glórias militares reconhecidas e escritor frustrado, Cervantes tornou-se um eficiente arrecadador de abastecimentos e cobrador de impostos da monarquia espanhola, no tempo em que Filipe II preparava a expedição da Invencível Armada, para a invasão da Inglaterra. Em Quixote, há claras referências a essas experiências de vida. Ao aludir em seu livro ao métier de cobrador de contribuições, o autor esclarece tratar-se de coisas muito perigosas tais encargos, “ofícios que em se usando mal deles leva o diabo quem os usa”. Sem dúvida, nota-se aqui o registro das suas prisões como suspeito de malversação dos recursos da monarquia, pelas quais foi encarcerado mais de uma vez. Por essas e por muitas outras notas da mesma natureza, vemos o quanto é auto-referente a imaginação ficcional de Cervantes.
Cervantes conclui que o que vale neste mundo é ter proteção e possuir influência
Como as armas não lhe abriram o caminho que esperava, o criador de Dom Quixote tencionou tornar- se escritor reputado, no que, aliás, teve escasso sucesso, ao menos na Espanha. Em seu livro fica estampada essa intenção autoral ao declarar que “uma das coisas que maior contentamento deve dar a um homem virtuoso e eminente é o ver-se andar em vida pelas bocas do mundo, impresso e com estampa com bom nome, é claro, porque, sendo ao contrário, não há morte que se lhe iguale”.
POR MARCOS ANTÔNIO LOPES
Ao publicar Dom Quixote, Cervantes finalmente conseguiu juntar algum dinheiro e se dedicar apenas à literatura
E muitas mais são as suas confissões e queixas contra a falta de reconhecimento, seja no leito ficcional da obra, seja nos prólogos das duas diferentes e desiguais partes do livro, como quando reflete que algumas pessoas, antes do tempo e contra a lei das suposições razoáveis, vêem os seus desejos premiados. Já outros, sem dúvida de maior mérito, “importunam, apoquentam, suplicam, madrugam, rogam, porfiam, não alcançam o que pretendem, e chega outro, e, sem saber como, nem como não, acha-se com o cargo e o ofício que muitos pretenderam”. E Cervantes conclui, em outra parte, que o que vale neste mundo é ter proteção, pois aquele que possui influência, “quando mal se precata, acha-se com uma vara de juiz na mão, ou de mitra na cabeça”.
Nem a vara nem a mitra lhe vieram, apesar de sua notável capacidade de deitar louvores às virtudes das pessoas influentes como, por exemplo, o conde de Lemos, de cuja corte literária imaginou fazer parte, no momento da nomeação desse aristocrata para vice-rei de Nápoles, em 1610. As suas expectativas foram frustradas, o que não lhe impediu de, alguns anos mais tarde, lançar ao aristocrata incenso como aquele que se lê na dedicatória da segunda parte, de 1615: “Venha Vossa Excelência com a saúde com que é desejado, que já cá estará Persiles para lhe beijar as mãos, e eu os pés, como criado que sou de Vossa Excelência”. Nada havia de estranho em dedicar obras a um patrono, tanto que a primeira parte de Quixote fora dedicada ao duque de Béjar, que a ignorou. Mas, no caso da dedicatória ao conde de Lemos, a ênfase parece ter sido um pouco vigorosa, ainda que se pese a cortesia peculiar de seu tempo.
ESCREVER PARA GANHAR O PÃO
Sobre a estrutura de Dom Quixote é preciso dizer que as duas metades são desiguais, principalmente porque, na segunda parte – composta por 72 capítulos contra os 52 da anterior – as peripécias de Sancho Pança ganham tal volume a ponto de comprometer a densidade do personagem central. Isso acarreta uma considerável redução das aventuras quixotescas. Quando do governo de Sancho Pança em sua ilha imaginária, narrativa de considerável extensão, Dom Quixote é praticamente colocado em quarentena. Mas não deixa de ser muitíssimo divertida a estratégia do autor em dar azo às ambições e ao materialismo do indolente escudeiro, mesmo que em detrimento das fantasias de Dom Quixote. Naturalmente, existem opiniões divergentes. Alguns autores consideram a segunda parte o ponto alto da obra: é mais complexa, melhor elaborada, desenvolve interpretações filosóficas e morais dos episódios narrados. É que Cervantes, movido pelo sucesso internacional da obra, passou a se interessar mais por sua criação, dotando-a de uma nova complexidade filosófica e estética.
"O melhor livro dos espanhóis é aquele que ZOMBA DOS OUTROS"
Montesquieu
Acerca do fraco reconhecimento que a Espanha conferiu ao autor em vida, digna de nota é a passagem deixada por Márquez Torres, censor da segunda parte do Quixote, publicada em 1615. Conta ele, na sentença de aprovação – pois os livros naquela época eram censurados pela Igreja –, que, em visita à Espanha, embaixadores franceses pasmaram-se em saber da ingrata sorte do criador do grande livro, cuja primeira parte circulava pela Europa desde 1605. Pobre e esquecido, e já no final da vida, Cervantes ainda escrevia para ganhar o pão. Que reino era a Espanha que permitia tal destino, indagou com uma ponta de indignação um dos membros da embaixada. No que foi respondido por um de seus colegas: se a necessidade o obriga a escrever, Deus queira que nunca seja próspero, para que faça o mundo rico com suas obras.
O Shakespeare da língua espanhola morreu em 23 de abril de 1616, o mesmo dia da morte do autor de Hamlet. Como lembra a esse respeito o crítico literário norte-americano Harold Bloom, “contemporâneos perfeitos (é possível que tenham morrido no mesmo dia), Shakespeare, evidentemente, leu Dom Quixote, mas é bastante improvável que Cervantes soubesse da existência de Shakespeare.3 De fato, paralelos entre Cervantes e Shakespeare são recorrentes na crítica literária. A genialidade de ambos e o fato de terem vivido na mesma época são as fontes naturais dessas semelhanças. A estatura colossal de Dom Quixote é normalmente comparada à grandeza de Hamlet.
A estatura colossal de Dom Quixote é normalmente comparada à grandeza de Hamlet, personagem do inglês William Shakespeare
ENFIM, QUIXOTE DOMINA O MUNDO
Para o escritor espanhol oitocentista Angel Ganivet, não existe na arte espanhola nada que sobrepuje o Quixote, e o Quixote não somente foi criado à maneira espanhola, mas é a nossa obra típica, “a obra” por antonomásia, porque Cervantes não se contentou em ser “independente”. Ele foi um conquistador, porque enquanto os demais conquistadores se apropriavam de países para a Espanha, ele conquistava a própria Espanha, encerrado numa prisão. No século XVII, a magnitude de Dom Quixote foi reconhecida por Montesquieu nos seguintes termos: “O melhor livro dos espanhóis é aquele que zomba dos outros”.
Em Dom Quixote o humor entra como máquina de guerra, espécie de explosivo, que põe o sistema literário de ponta-cabeça
Nesse sentido, para os historiadores da cultura intelectual, a obra de Cervantes é documento histórico precioso. Ao lermos Dom Quixote, devemos procurar compreendê- lo em sua dimensão interventora de sátira a um gênero literário ainda em voga na Espanha nos séculos XVI e XVII. Como bem lembrou Montesquieu, Cervantes satirizou os romances de cavalaria que, aliás, continuaram desfrutando prestígio na Espanha no século XVII. Mas ele não estava sozinho nessa aversão ao ideal de heroísmo medieval. Com efeito, numerosos foram os ataques sofridos pelo gênero na Espanha no século XVI. Como afirmam vários autores, sátiras como o livro de Cervantes não eram nenhuma novidade por volta de 1597, quando o autor deu início à obra.
Na opinião do crítico literário norte-americano Kenneth Rexroth, Cervantes escreveu o maior livro de ficção que a cultura ocidental produziu. Para Rexroth, a vitalidade desse poliedro está em sua capacidade de produzir um volume de interpretações que é proporcional ao número de seus leitores.4 Um dos sentidos possíveis para a leitura de um clássico da literatura baseia-se na evidência de que ler é simplesmente melhor do que não ler.5 Essa tirada de efeito é da autoria de Italo Calvino, na qual se ressalta que não há um sentido estritamente pragmático na leitura das grandes obras, algo assim como a atitude de Sócrates aprendendo um nova ária antes de morrer, pelo simples prazer do aprendizado.
"No tempo de Cervantes, UM HOMEM PODERIA REVELAR O SEU VALOR NOTABILIZANDO-SE PELO EXERCÍCIO DAS ARMAS OU DAS LETRAS. Cervantes, exemplo de mentalidade moderna – haja vista que Dom Quixote lhe serviu como instrumento de combate ao obscurantismo da cultura de seu tempo – construiu freqüentes paralelos entre esses honrosos ofícios"
Em maio de 2002, uma comissão de críticos literários de várias nacionalidades elegeu Dom Quixote de La Mancha a melhor obra de ficção de todos os tempos
O BILHETE PREMIADO DE CERVANTES
Mas, acerca do sentido de ler, hoje, a história do aloprado cavaleiro andante, pode-se encontrar também uma resposta mais direta e pontual: ainda que tenha sido o primeiro, o livro continua a ser o melhor dos romances.6 Entretanto, no texto de Bloom, não fica clara essa dignidade de obra fundadora, ou seja, o fato de o livro ser destacado como o primeiro romance. Sabemos que existem inúmeras flutuações semânticas no que diz respeito ao vocábulo “romance”, e que são variados os sentidos normalmente utilizados pela crítica literária. Talvez possamos interpretar esse juízo de Bloom reconhecendo nele a intenção de sublinhar a ruptura de Dom Quixote com um certo conjunto de regras. A obra não se contenta em ser mais uma história daquelas contadas a respeito de bravatas de heróis; constitui uma anti-história, como uma força consciente de subversão na qual o humor entra como máquina de guerra, espécie de explosivo que põe o sistema literário de ponta-cabeça. É bom lembrar que, na época de Cervantes – apesar de algumas flutuações de sentido e de estrutura –, o gênero romanesco barroco é um parente direto dos romances medievais. Em comum com a literatura cavalheiresca, a exuberância do fantástico e a profusão do inverossímil, do prodigioso e do excepcional na narrativa: é uma numerosa sucessão de atos de bravura por parte de algumas almas de exceção; é uma seqüência sem fim de combates, de raptos, de naufrágios e de visões fantásticas de monstros e gigantes de que Dom Quixote também dá sinais de notável riqueza. Mas tudo utilizado para lançar a carga por terra, ao ressaltar muito sutilmente as diferenças substanciais entre as delícias do sonho e a aspereza da realidade.
O tempo haveria de fazer Dom Quixote um “bilhete premiado”, segundo a expressão que Stendhal utilizou para definir um clássico da literatura. O espírito de Cervantes, desafiador e iconoclasta, tornou-o capaz de criar algo estranho ao sistema literário de seu tempo. O aspecto de originalidade já seria o bastante para isolá-lo como ponto diferencial de uma época, de um gênero, de um estilo, tornando-o alvo preferencial da posteridade. Mas, ao lidar com os devaneios da razão – espada sempre afiada e de manejo difícil e perigoso –, o autor descobriu substância de interesse eterno. Assim, decorridos quatro séculos, talento literário e oportunidade temática ajudam a definir a categoria desse “bilhete” legado por Cervantes.
Cansado, Dom Quixote decide voltar para casa e recuperar o juízo, dando paz para o seu sofrido pangaré, Rocinante
REFERÊNCIAS:
1 Cf. Anderson, P. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 75.
2 Id. ibid., p. 81.
3 Bloom, H. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 139.
4 Cf. Rexroth, K. Recordando a los clásicos. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 163.
5 Cf. Calvino, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 16.
6 Cf. Bloom, H. Op. cit., p. 144
MARCOS ANTÔNIO LOPES é doutor em História pela USP. Professor do Departamento. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do CNPq Produtividade em Pesquisa). Autor de Voltaire Político: espelhos para príncipes de um novo tempo (Editora Unesp), co-autor de A peste das almas: histórias de fanatismo (Editora FGV) e organizador de Idéias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder (Eduel)
Revista Leituras da Historia
Um comentário:
" [...] devemos procurar compreendê- lo em sua dimensão interventora de sátira a um gênero literário ainda em voga na Espanha nos séculos XVI e XVII."
Acho importante a historia que Cervantes passa pelo livro!
Reune inumeros generos... caracteristicas sociais, morais...
Um objeto de estudo completo!
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