"O clima de caça às bruxas não é próprio de um Estado democrático equilibrado"
Miguel Reale Junior
A impunidade varia de acordo com o momento histórico. No século XIX, enquanto a Europa já estava imbuída do pensamento iluminista e seus países já tinham acabado com os privilégios, o Brasil tinha até Constituição, mas continuavam os privilégios. Entre o discurso liberal e realidade liberal havia uma distância imensa. Ainda tínhamos a escravidão. Os detentores do poder que praticassem crimes contra escravos não eram punidos. Um caso histórico foi o da escrava Honorata, vítima de estupro por seu senhor. O Tribunal da Relação entendeu que ela não poderia ser representada pelo Ministério Público, porque este defendia pessoas miseráveis — e ela era miserável, mas não era pessoa. O desembargador que assinou a decisão [Freitas Henriques] seria o primeiro presidente do Supremo Tribunal Federal.
Isso muda na República, mas apenas em parte. Continuou a perseguição às classes desprotegidas, pobres, especialmente no Rio, onde se adotou uma política de tolerância zero contra capoeiristas, mendigados, bêbados, vagabundos. Sob a égide do positivismo, achavam que podiam salvar o país, torná-lo de primeiro mundo, tinham a pretensão de saber o que é o bem, o que é o bom. Isso resultou numa expressão muito forte de paternalismo jurídico — um corte por cima, nas mãos da classe hegemônica na política.
A famosa cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda se dava entre os membros da elite. Só existia enquanto não quebrasse a estrutura de poder vigente. Logicamente, isso causava injustiça.
Hoje o problema é o acesso à justiça, ainda muito restrito. É um quadro curioso: grande número de processos em andamento, mas pequeno número de partes. A maioria das ações envolve o Estado ou grandes empresas. Não existe justiça próxima do povo: as pessoas não têm advogado, assistência jurídica ou defensoria pública organizada e suficiente. Existem devotados membros da Defensoria Pública, mas eles estão sobrecarregados.
A sensação de impunidade maior, que atinge todos nós, é a violência de rua. Ela tem dois lados: a ineficiência da polícia – só 2% dos crimes de autoria desconhecida são descobertos – e a ação policial repressora. A impunidade policial leva a práticas de injustiças gravíssimas: mata inocentes e culpados sem processo. A população é tratada de forma discriminatória e violenta, o que gera uma sensação de insegurança jurídica imensa.
O clamor contra a impunidade tem levado à perseguição da classe superior, o que também provoca exageros. É como se a injustiça contra os ricos compensasse a injustiça que houve e há contra os pobres. Criam-se reações emocionais, afronta-se o estado de direito. Na mídia, na polícia, no Ministério Público, o clima de caça às bruxas não é próprio de um Estado democrático equilibrado. Não se pode utilizar esse clamor para a exploração dos sentimentos de vendetta, de ressentimento. Se for para fazer picadinho do Daniel Dantas, atual inimigo público número 1, todo mundo aplaude, pois ele representa a classe exploradora. Isso é ruim, porque não é a busca da justiça: é uma ação vingativa de toda uma história social que permeia o presente.
Caminhas lentamente, ainda. As raízes do nosso comportamento são fincadas lá atrás, na escravidão. É grande a responsabilidade dos meios de comunicação, que infelizmente são os educadores — não é mais a família, a escola, o sindicato, a igreja. É a TV. Ela cumpre um papel social na transmissão dos valores, e não é isso que dá audiência, popularidade. O nível é baixo para atender ao desejo da massa, que não está socialmente e culturalmente preparada porque não teve acesso a ensino e valores. E quando digo “massa” não me refiro à classe econômica. É “massa” no sentido de inércia. A deseducação transita da classe A à D no plano moral, ético, de valores. Somos todos iguais perante a injustiça e a barbárie.
Revista Nossa Historia
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