"Desinteresse gera impunidade"
Tico Santa Cruz
A pessoa que comete um crime, se for de classe social alta, já conta com a impunidade, graças às brechas do sistema e da legislação criminal. A justiça está sempre aberta à interpretação da lei, e o juízes tendem a interpretar a favor de quem tem bons advogados. Há excesso de processos, muitos atrasam e vencem, e as pessoas ficam livres da punição.
Temos uma história de segregação, com relação à educação e à inclusão. Os primeiros historiadores responsáveis por escrever a História do Brasil não incluíram as raízes brasileiras, os índios e negros, não abordaram a sociedade em sua diversidade.
A legislação é escrita e mantida por quem está no poder, se beneficia da impunidade e mantém o sistema. Aqueles que deveriam ser os principais responsáveis por cuidar dos interesses de toda a nação geram mecanismos e brechas pra que eles próprios não sejam punidos ou flagrados pelas garras da lei.
E a sociedade brasileira não enxerga o que é público como responsabilidade dela. Não se enxerga como um todo, mas de forma individual. “Se não me atinge diretamente, não me interessa”. Se tenho condição de pagar plano de saúde e escola particular, se tenho um carro que me dá transporte seguro, então pouco importa se não existe educação de qualidade para todos ou se o sistema de saúde é péssimo.
O desvio de verbas públicas deveria ser motivo para uma indignação geral. Mesmo que eu não usufrua do serviço público que perde recursos para a corrupção, estou no contexto da sociedade que vai sofrer as conseqüências. Não assumir responsabilidade pelo que é público colabora para manter esse sistema como uma regra, não exceção.
Meu objetivo, ao ir a escolas, faculdades, presídios, carceragens, é tentar clarear a questão desse mecanismo: entender o que existe é o primeiro passo para se situar e ver de que forma você faz parte da engrenagem. Você vai a uma escola pública em Duque de Caxias (RJ) e descobre que ela não tem teto. E o governo vem dizer que vai colocar ar condicionado em todas as escolas. Aqueles alunos têm que ter consciência de que sua escola e o poder público estão diretamente ligados. Se eles, os alunos que usufruem do serviço, não se colocam, o paradigma se mantém. É preciso unir forças para revertê-lo, e tornar o público, público.
Não vejo outra solução que não a mobilização social. E não apenas dos setores prejudicados em algum tema específico. Você já viu passeata de professores por melhores salários? Só vão os professores! Não vão pais, alunos, médicos ou qualquer outro cidadão. Não é visto como um problema público. Quando vou a manifestações que não dizem respeito a meus interesses particulares, dizem: “o cara tá querendo aparecer”. Afinal, sou um artista, o que estou fazendo ali? Gostam de vangloriar a cultura da celebridade, que não representa nada além da própria ostentação, então interpretam que só pode haver essa lógica: chamar a atenção. Mas se houvesse vários artistas e intelectuais na mesma manifestação, eu seria só mais um. Talvez o problema não seja meu, e sim de quem não vai. O desinteresse gera impunidade.
Historicamente, quem detém o poder encontra formas de tirar a legitimidade dos movimentos sociais. Autoridades que teoricamente deveriam incentivar certos movimentos, tendem a querer tirar sua legitimidade com argumentos estúpidos. Aconteceu quando cobrávamos ações do poder público nas comunidades pobres, além da repressão — que se ofereça qualidade de vida melhor. E então o secretário nacional de Segurança, Antônio Carlos Biscaia, deu entrevista dizendo que o movimento não tinham legitimidade porque algumas pessoas usavam drogas e financiavam o tráfico. Fiz exame de sangue para mostrar que não uso, e cobrei dos representantes da Assembléia Legislativa do Rio a mesma atitude, pois também se manifestaram contra.
É uma mentalidade influenciada pelo filme Tropa de Elite, que tem argumentos totalmente estúpidos. Serve de escudo para as pessoas justificaram as falhas do sistema e jogarem a responsabilidade para o usuário de drogas. Nenhum deputado quis fazer o exame de sangue, exceto um, já idoso, que se colocou à disposição. Então quem consome drogas não tem o direito de cobrar do Estado qualquer tipo de ação? Mandei uma carta ao secretário questionando como deveria organizar uma passeata do tipo: pedindo antidoping das pessoas? Discriminar quem usa e quem não usa para poder legitimar o movimento?
Revista Nossa Historia
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