Inicialmente um jogo de cavalheiros, o bilhar sai dos clubes de elite para os salões populares até tornar-se um ganha-pão do malandro
Antonio Paulo Benatte
Antonio Paulo Benatte
“Bilhar para os família, snooker para os bem comportados e joguinho para os malandros, malandrinhos e malandrecos, todos profissionais convictos e alguns sem salvação, o ciclo da sinuca jogada a dinheiro continua aí, em São Paulo, no norte do Paraná, em Belo Horizonte, em Campo Grande, no Nordeste, em todos os bairros do Rio de Janeiro ou em qualquer salãozinho do interior do Brasil.” Com nostalgia, o escritor João Antonio descreve a época de ouro do jogo de sinuca e não por acaso fez dos jogadores de sinuca personagens centrais de sua literatura. Mas como e onde começa essa história?
No início do século XIX desembarcava no Brasil uma nova opção de distração elegante e refinada - como tantas outras importadas da Europa à época - o bilhar. Já na década de 1830, os cavalheiros podiam contar com vários lugares para a prática do novo jogo – bares, cafés e até os fundos de algumas barbearias acolhiam as mesas. Mas além das casas de comércio, o bilhar também conquistava as finas residências da corte. A prática aparecia como um recreio habitual, honesto e, ao que parece, uma distração mais privada que pública, jogada por parceiros silenciosos, compenetrados e sérios ao ponto de se comportarem como se estivessem a praticar jogos intelectualizados, como o xadrez e as damas.
A urbanização e industrialização da sociedade brasileira foi seguida de perto pela expansão dos bilhares públicos. O jogo deixava de ser um passatempo aristocrático e era progressivamente apropriado pelos trabalhadores e pelas camadas populares em geral. Ao longo do século XX, ocorre com o bilhar uma popularização semelhante àquela que ocorreria com o futebol, inicialmente um esporte das elites. A própria palavra sinuca surgiu também do abrasileiramento popular do termo inglês snooker.
Nas cidades, os bilhares públicos instalaram-se principalmente nos botequins. Mas existia também (como ainda hoje alguns remanescentes) um número significativo de salões destinados exclusivamente à sinuca. Em 1958, havia 12.728 mesas de sinuca alocadas em salões, fundos de restaurantes, cafés, bares e botequins, em todo o país. Mas o número de estabelecimentos dedicados exclusivamente à exploração de bilhares (1.236) era bem menor que o de estabelecimentos que associavam ao aluguel de mesas outras atividades comerciais (4.485) — geralmente a venda de bebidas, cigarros e petiscos. Além disso, havia a prática clandestina da cobrança do barato — taxa de 10% sobre o montante de apostas realizadas e que acabava se tornando uma significativa fonte de renda para esses estabelecimentos, se não a maior. O fato é que, para a população masculina de menor poder aquisitivo, os salões de bilhar ou sinuca eram uma das raras diversões acessíveis.
Apesar do declínio desses ambientes lúdicos no Brasil contemporâneo, as partidas a dinheiro imperavam nos salões populares. A modalidade preferida era o chamado “jogo da vida”, ou simplesmente “vidinha”. Em torno dessas partidas formavam-se as rodas ou curriolas, concentrações de malandros e tipos oriundos das camadas populares que faziam da sinuca ao mesmo tempo uma arte e um expediente cotidiano de sobrevivência. Uma disputa de “vida” reunia, em torno de cada mesa e por horas a fio, até um limite de oito jogadores. As apostas, levando em conta a condição de pobreza dos jogadores, eram bastante altas. Para se ter uma idéia, aquilo que, na gíria dos jogadores, constituía um “bolo de vida” — ou seja, um montante acumulado de apostas ao fim de uma série de partidas — rendia ao vencedor uma soma maior que o valor do salário mínimo vigente. João Antonio descreve esse tipo de disputa como “o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca”, que “vai correndo como coisinha encrencada, pequenina e demorada”. E mostra seu lado cruel: “o bolo crescendo, o joguinho ficando safado. Fica porco, fica sujo como pau de galinheiro.”
Desde o início do século XX, é perceptível como, sem deixar de ser um divertimento das elites, a sinuca é incorporada pela classe trabalhadora a um modo malandro de viver, ou sobreviver, nos territórios da cidade capitalista. A malandragem, tantas vezes interpretada como vício ou natureza do “homem brasileiro”, não pode deixar de ser compreendida como uma tática de sobrevivência, resistência e artimanha em contextos adversos de vida. Transformada em “ganha-pão” de grupos de indivíduos excluídos, de indivíduos no limiar da vadiagem e da pequena delinqüência, a sinuca tornou-se uma dessas artimanhas, ao lado de muitas outras, geralmente informais e ilegais. Espécie de refugo do capitalismo, esses grupos formam um amplo segmento que faz das bordas da sociedade, especialmente nos centros urbanos, um lugar de existência precária, onde é preciso saber “se virar” para sobreviver. A sinuca deixa assim de ser divertimento das horas de folga para transformar-se em meio de vida, ofício, quase profissão. A dificuldade ou a recusa em assalariar-se, a não-sujeição ao mundo do trabalho, transforma a exceção em regra: de fonte de renda alternativa, o jogo torna-se uma viração permanente.
Do ponto de vista do jogador profissional, a economia do jogo é uma economia de rapina: o adversário é sempre um otário em potencial, um “pato” a ser “depenado”. O jogo como alternativa de sobrevivência revela-se na própria riqueza com que a gíria dos jogadores designa o dinheiro: gordura, maldito, tutu, mango, gaita, grana, capim, cobre, nota, algum, dinheiroso, bronze, ouro, ferro, pataca, prata.
Além do jargão próprio ao jogo, João Antonio também registra em seus livros os tipos sociais envolvidos na jogatina. O “leite-de-pato” é “o cara que brinca em serviço — é o estudante, o gajo classe média sem compromisso, que vai ali para se divertir”. Já para o profissional, o jogo é seu sustento. A diferença de classe entre eles “começa pela maneira de vestir” e “acaba na própria psicologia de vida”. O profissional não é mais do que um sobrevivente urbano, mas que não chega a pertencer à marginalidade. No máximo, pode ser enquadrado “no artigo 59, de vadiagem”.
O jogo é transformado num estratagema de combatentes que revelam uma arte cheia de golpes, contra-golpes e lances. Nos salões populares, os “tacos-fortes” transmitem aos mais jovens a arte da sinuca, e os malandros escondem habilmente seu talento para atrair e ganhar apostas. A descrição de João Antonio é, mais uma vez, muito vívida: “E, a um passo, se cai na boca do inferno, chamada salão [...]. É lá que se ouve, logo à entradinha, uma fala macia enfeitada de um gesto de mão, um chamamento e uma ginga de corpo, como uma suave, matreira e debochada declaração de guerra:
— Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou a passeio?”
Acompanhando o processo de popularização e “amalandramento” da sinuca, formou-se uma cultura do disfarce, toda uma arte da simulação e da dissimulação. As próprias mesas, nos fundos dos bares ou em salões de segundo andar, ocupam lugares discretos, nem totalmente escondidos, nem totalmente visíveis ao público. Em seu clássico Homo Ludens (1938), o historiador holandês Johan Huizinga notou que o jogo em geral “promove a formação de grupos sociais com tendências a rodearem-se de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes.” Essas tendências são ainda maiores nos jogos proibidos ou marginalizados. Um desses “disfarces” é o próprio jargão ou gíria que, além de constituir um fator de identidade do grupo, pode ser visto como uma tática de camuflagem utilizada pelos seus membros em relação ao “resto do mundo” social, com o qual os jogadores se encontram mais ou menos em conflito. A gíria dos profissionais assume ainda a função de dissimular, esconder o jogo e as armações, de confundir os adversários.
Nesse sentido, a sinuca, especialmente em sua modalidade malandra, guarda um parentesco forte com a representação teatral. O jogo permite, produz e faz necessária uma espécie de “manha” e de “corpo mole” — uma gestualidade corporal e uma performance verbal próprias. Em certos casos, esse jogo do corpo e da linguagem assume o aspecto principal e mais emocionante da disputa. A gíria dos jogadores de sinuca é tão dissimulada quanto a de outros grupos situados à margem, como os bicheiros ou camelôs. Esse jargão, extremamente dinâmico no tempo e variável no espaço, expressa quase sempre uma visão irônica, cínica e debochada do mundo e da sociedade.
À medida que foi sendo apropriada pelo povo, a sinuca foi incluída na lista dos jogos considerados suspeitos e desabonadores dos costumes e da moral (especialmente da moral do trabalho), assim como o jogo do bicho, as brigas de galo, as loterias clandestinas e certas modalidades de carteado. Significativamente, não eram todas as modalidades da sinuca que eram perseguidas. Até recentemente existiam nas grandes e médias cidades luxuosos salões, dotados de todos os requisitos de conforto, e cuja clientela era formada por apreciadores do bilhar. Ou seja, o bilhar francês permaneceu como um tipo mais aristocrático de jogo, não tanto pela diferença de regras, mas pela categoria diferenciada de jogadores. Em bares mais refinados, jogava-se o bilhar francês, e mesmo concursos de sinuca eram patrocinados por clubes esportivos privativos, sem nenhuma represália da polícia ou ataques moralistas da grande imprensa, como passou a ser freqüente em relação aos botecos e salões de malandros.
Os jogos perseguidos eram aqueles em que pontuavam os “profissionais do taco” e serviam como expediente marginal de sobrevivência a determinados segmentos dos espoliados urbanos. Desses que teimam em vagar por aí.
Antonio Paulo Benatte é Doutor em História pela UNICAMP com a tese Dos jogos que especulam com o acaso: uma história do “jogo de azar” no Brasil (1890-1930), 2002.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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