Márcia Regina Capelari Naxara
Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Franca). Autora, entre outros livros, de Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UnB, 2004. mrnaxara@uol.com.br
Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Franca). Autora, entre outros livros, de Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UnB, 2004. mrnaxara@uol.com.br
A certa altura, em Como se escreve a história, Paul Veyne afirma que “Um homem da cidade pode imaginar que uma paisagem agrária, cuja criação exigiu o trabalho de dez gerações, é um pedaço da natureza...”1
A assertiva, ainda que afirmada como possibilidade, contempla a proposta colocada em discussão no Simpósio Temático “Linguagens da sobre a cidade”, em que se procurou debater a cidade, tanto conceitualmente como em experiências históricas vazadas em diversas e diferentes linguagens. Para uma aproximação, escolhi pinçar escritos que permitem indagar o quanto os discursos sobre a cidade se efetivaram e continuam a se efetivar na relação estabelecida com o mundo não urbano. Diferenças que comportam, também, pensar a(s) cidade(s) em suas variadas dimensões e, portanto, seu maior ou menor distanciamento do que seria imaginado como seu oposto — a província, o campo e, no caso brasileiro, o sertão.
Busquei retomar e tomar por ponto de partida algumas reflexões de trabalhos anteriores, levando em conta os inúmeros textos e representações que traduzem esse registro historicamente estabelecido de contraposição entre cidade e campo. A elas procu-rei somar reflexões que reputo instigantes, a partir da leitura de alguns exemplares que fazem parte da coleção Histórias e paisagens do Brasil, com a qual tive contato recentemente. Trata-se da reunião de textos selecionados por Ernani Silva Bruno, autor conhecido por seus estudos sobre a cidade de São Paulo, cujos resultados são apresentados numa perspectiva de análise cronológica, que busca mapear os caminhos do passado para o estabelecimento do presente. Inícios identi-ficados ao antigo “burgo de sertanistas”, num caminho que levou à formação da “metrópole do café” e à “São Paulo de agora”, ou seja, metade do século XX, uma vez que os volumes foram publicados por ocasião das comemorações do quarto centenário da cidade.
Não muito tempo depois, entre 1958 e 1959, com edição de Diaulas Riedel, Bruno selecionou os textos que compõem a coleção a que me referi acima. Constituída por dez volumes2, que contemplam uma divisão do país por regiões e sub-regiões3, reúne textos de gêneros diferenciados sobre cada uma delas — relatos de viajantes, contos, memórias, trechos de romances —, “os mais originais, os mais interessantes, por vezes aqueles de entrechos mais incomuns e surpreendentes”4, capazes de refletir a vida e imaginário de cada uma delas. Divisão em regiões estabelecida por critérios
que o autor sabe arbitrários e imperfeitos, que tomaram em consideração a divisão política já efetivada e os espaços geográficos, naturais e humanos que endossassem a noção de regionalidade, pelo compartilhar de características afeitas a cada uma delas e que possibilitassem recolher as produções literárias capazes de transmitir suas “histórias” e “paisagens”.
Ao estabelecer uma comparação bastante preliminar entre as duas obras, verifica-se que, nos três volumes que compõem a História e tradições da cidade de São Paulo5, a ênfase recai sobre os primórdios e a formação, numa perspectiva que ressalta o processo e demarca mais o caminho percorrido que propriamente o resultado do que o autor denomina como “metrópole” ou “agora”. Na coleção Histórias e paisagens do Brasil, que recolhe textos variados sobre um Brasil dividido em regiões ao longo do século XIX e primeira metade do XX, também se destaca, de uma certa maneira, o processo de formação, tendo por base a idéia central de país que o autor recorta — presente das mais diferentes formas em relatos, memórias, crônicas e contos —, é a de um país diverso em suas variadas histórias e representações, mas com a tônica predominante de um Brasil interior, ou interiorano, em que os avanços do “progresso” são relegados, ficam em segundo plano, de forma a proporcionar ao leitor a descoberta de especificidades em que se procura tudo o que, autenticamente, possa representar ou fornecer esboços, desenhos e concepções que enfeixem ou estejam contidas num amplo Brasil.
A reunião desses textos na forma de coleção fortalece a percepção de Brasil pela aproximação à idéia de um mosaico que vai se ajustando e sendo ajustado, sem necessidade de precisão — por vezes harmoniosamente, por vezes de forma contrastante — justapondo cor, forma, proporção, compondo algo que pode ser apreciado em seus pequenos detalhes e contribuindo para o estabelecimento de relações possíveis entre as diferenças e variados conjuntos que permite formar, sem deixar de constituir (ou delimitar) uma unidade.
A leitura do conjunto de textos possibilita, também, retomar algumas das reflexões que qualifiquei como representações do mundo “entre natureza e civilização”6, tendo em vista que, historicamente, afirmou-se a dicotomia fundamental entre campo e cidade, ainda que comportando uma grande gama de representações polissêmicas, em especial nas interpretações que se fez do então chamado “novo mundo”, pensando de forma mais específica o Brasil e as figurações do sertão, expressas em significados de polarização com os espaços da civilidade e da civilização, fortemente identi-ficados ao urbano e, portanto, à materialidade da(s) cidade(s). Dessa forma, penso que preponderou (e prepondera) quando se pensa e representa o Brasil, seja pelo texto ou pela imagem, a procura do pitoresco, do exótico, do diferente, com realce da natureza, via de regra visualizada pela sua generosa grandiosidade e pelo que tem de “específico”. Remetese para um Brasil interior, que se perde em distâncias e diversidades que, não poucas vezes, puderam ser lidas como descompasso e desacerto em relação aos caminhos da civilização e da cultura ocidentais, demarcando a predo-minância da idéia de um país que, ao buscar o estabelecimento de identidades próprias — nacionais ou locais — capazes de estabelecer sentido de interpretação para a nação, aproximando-a do mundo civilizado, acabou pela aproximação e reiteração constante do cenário natural maravilhoso, pleno de potenciais inexplorados, tendo em vista a construção de imagens a serem projetadas como ideais e sempre futu-ras.7
Sérgio Buarque de Holanda, ao escrever os ensaios publicados em Raízes do Brasil recolheu toda uma tradição de pensamento ao estabelecer o peso do mundo rural como historicamente estruturante para a compreensão do Brasil. Ao comparar as colonizações portuguesa e espanhola na América, ressaltou o caráter geral em cada uma, de forma a identificar a idéia de que a cidade hispano-americana obedecia a regras fixas e preestabelecidas8, além das determinações para a procura de ocupação das terras interiores, enquanto que aqui teria prevalecido a tendência à acomodação à paisagem imponente, aos seus contornos, sem obediência a planos racionais de plane-jamento, além da forte litoraneidade. Buarque de Holanda chega a afirmar que a cidade que os portugueses construíram na América não seria um “produto mental”, denotando aproximação extrema entre natureza e artifício, decorrente do que denominou “primazia acentuada da vida rural (que) concorda bem com o espírito da dominação portuguesa”9, forma característica de ocupação, de que resultaria a permanência do predomínio da presença do mundo rural na forma como se representou o Brasil, tanto na literatura como na historiografia.
Ainda que o tema comporte debate de que não me ocuparei aqui10 e se possa pensar a presença de tentativas de controle e imposição de planejamento no início da colonização, os projetos não foram mantidos à medida que as vilas se desenvolviam e cresciam para além do núcleo inicial. Esse debate, que por vezes tem a obra de Buarque de Holanda como ponto de partida, guarda uma concordância que, simultaneamente, o cor-robora e contradiz, pois aponta para a existência de uma inflexão da política metropolitana portuguesa a partir dos meados do século XVII, no que diz respeito à regulamentação e controle com relação à colônia. Controle que, não sem razão, foi efetivado em época coincidente à descoberta das minas e, portanto, ao aumento da cobiça e do interesse pelo interior das terras brasileiras, demarcando esforços não somente de ampliação da colonização, como de controle mais efetivo do territó-rio, em especial do chamado “sertão”. Situação em que os núcleos urbanos — as vilas e cidades — adquiriram fundamental importância. Reis Filho afirma que, com a “polí-tica centralizadora econômica e administrativa, tornou-se necessária a ampliação da ação urbanizadora da Metrópole e do Governo Geral”11, indo além, no sentido do alar-gamento das fronteiras, com o avanço sobre terras espanholas e delineamento apro-ximado das atuais fronteiras. Buarque de Holanda, em Visão do paraíso, assinala que a passagem do tempo contribuiu para mudar a perspectiva portuguesa sobre as terras interiores do Brasil, e no século XVII foi “um pouco a imagem do império espanhol, das Índias de Castela”12, que empolgou os portugueses na direção do sertão, tanto para a procura como controle dos nossos muitos eldorados.
A forma como se processou a ocupação territorial na América portuguesa, portanto, sublinha a adaptabilidade, tanto às determinações como às condições locais, pela efetivação de soluções que uniam o plano ideal a materiais e mão-de-obra disponíveis13, com adequações aos sítios onde as vilas e povoados, que vieram a tornar-se cidades, foram erigidos, em grande parte guardando relação próxima com a natureza, até porque muitas delas se desenvolveram à margem ou afastadas das possibilidades de controle.
As narrativas e leituras que foram se sobrepondo, partindo dos mais diversos lugares e momentos, qual um palimpsesto a ser recuperado em suas diversas camadas, retidas pelas diferentes formas de manifestação do talento iconográfico e/ou escrito, contribuíram para a permanência, no imaginário e nas formas como se pensou e repre-sentou o Brasil e sua formação, da idéia dominante de desordem ou “desleixo”, para usar uma expressão de Buarque de Holanda, não somente na construção da paisagem urbana, como na percepção do Brasil como um todo. Guarda-se como representação de longa duração, a vinculação a um forte efeito do pitoresco e mesmo do sublime, na aproximação e incorporação à paisagem, que reforça a presença da idéia de natureza, ou de proximidade a ela, quando se pretende dizer do Brasil.
Ao se considerar a contraposição cidade/campo enfatiza-se tanto a relação de aproximação da cidade à natureza como o seu afastamento, à medida em que a cidade constitui espaço representado como de domínio e poder e, mais do que isso, de civilidade, civilização e progresso. A tônica dos textos escolhidos me parece apresentar ao leitor a construção de uma idéia de Brasil em que o regional é o não urbano, seu aves-so, de forma a se tomar a literatura regional como significando e representando o que está fora e à margem do mundo civilizado, tendo em vista a sua aproximação ao mundo natural.
Cidades em algumas Histórias e paisagens
Retomo, então, a(s) leitura(s) do Brasil em seus diferentes espaços construídas pela seleção de Ernani Silva Bruno na coleção Histórias e paisagens do Brasil. A primeira questão a salientar quando se percorrem os volumes diz respeito às escolhas realizadas pelo autor, centradas em textos voltados para a revelação de um país interiora-no, dando a conhecer as histórias de seus campos e sertões, deixando para segundo plano as cidades. Confere-se ênfase aos viajantes que dão a conhecer terras pouco conhecidas ou a contos e romances que trazem ao leitor lendas e especificidades locais. O urbano, ou seja, a parte considerada mais civilizada, aparece muito pouco. O volume sobre São Paulo (VI) tem por título O planalto e os cafezais: São Paulo, colocando de início a tônica do que pretende oferecer como leitura. Considerando Bruno um especialista no que diz respeito à cidade de São Paulo, é significativo que, dos textos de viajantes, um deles parte de São Paulo e os demais de algum lugar para a capital, sem nela chegar. Nenhuma descrição ou história da cidade, seja no século XIX ou XX, num volume dedicado a tomar o estado como sub-região. O volume que escolhi abordar neste trabalho é o único da coleção no qual o urbano ganhou desta-que — V. A cidade, o mar e as serras: Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal — e em que a então capital, cartão de visitas e local emblemático quando se tra-ta de juntar natureza e artifício na construção e representação do mundo urbano, apa-rece no título e, juntamente com outras vilas e núcleos urbanos menores, nos relatos de viajantes e como lugar onde se movimentam personagens de romances e contos escolhidos em tempos diversos. Após apresentação da coleção (texto constante em todos os volumes), Bruno elabora apontamentos históricos sobre a região, seu povoamento e ocupação. Na seqüência, os escritos de viajantes introduzem o leitor em alguns dos locais da região delimitada para, então, apresentar trechos de romances e contos. Gêneros distintos, na medida em que nos relatos de viagem predomina a intenção da descrição e da veracidade, ainda que construídos na confluência de ciência e arte e, nos demais, a ficção, em textos que mesclam a procura da verossimilhança, somada aos rasgos da imaginação.
Para esse volume, Bruno selecionou trechos de quatro viajantes ilustres, cujos textos podem ser aproximados às tópicas presentes em grande parte da literatura de viagens: “No reino das palmeiras” (Do Rio de Janeiro a Sumidouro – 1817), de Carl Friedrich von Martius; “Roceiros e Bugres” (De Benevente a Vitória – 1818), de Auguste de Saint-Hilaire; “A baía e as montanhas” (Rio – Nova Friburgo – Cantagalo – 1851), de James C. Fletcher; e “A mata virgem” (Vitória – Nova Almeida – Rio Doce – 1858), de François Auguste Biard. Se atentarmos para o Rio de Janeiro descrito por Fletcher em suas primeiras impressões, verificamos que faz coro com outros viajantes que lá estiveram antes e depois dele, principalmente quando se trata de visualizar e manifestar as fortes impressões e o impacto decorrente do primeiro contato. Ele nos dá conta de seus sentimentos de assombro ao afirmar que o momento será guardado como “uma hora donde pode datar para o futuro, eternamente”, pelo seu “efeito geral”, “de fato sublime” 14. Na continuidade, com a efetiva entrada na baía e a aproximação, “a grande cidade surge diante de nós, estendendo-se, com seus brancos subúrbios, por milhas e milhas ao longo das margens irregulares da baía e recuando até quase ao pé das montanhas da Tijuca, semeada de verdes colinas (...) Esse conjunto de circunstâncias permite que do mar se tenha uma vista completa do Rio de Janeiro.”15 O texto acentua a simbiose cidade e natureza tão característica das representações do Rio de Janeiro16.
A cidade, corte e depois Distrito Federal, e as demais vilas e cidades de menor porte que Bruno apresenta ao leitor, em contos, romances e reminiscências, têm uma urbanidade em grande parte remetida e referida à natureza circundante, de forma a revelar inúmeras cidades numa cidade, comportando polissemia semelhante à que se verifica ao falar de sertão/sertões, ambos como conceitos móveis, podendo o primeiro caracterizar a vila, os pequenos lugares e a(s) cidade(s)em suas diferentes propor-ções, modos de vida, sensibilidades e representações de suas gentes.
Em seu texto, Martius17 (1817) se detém em comentários sobre o entorno da Baía de Guanabara, as ilhas e o Porto da Estrela, de onde embarca para o interior da província, na direção de Minas. O trecho de Saint-Hilaire (1818) destacado por Bruno, também anuncia o tema — Roceiros e bugres — trazendo a descrição dos percalços da viagem e as impressões causadas pelas vilas menores e pelo contato com a rústica população local, como a que se verificou em Benevente, onde, ao chegar, viu-se cercado por “índios civilizados, negros, luso-brasileiros, que [nos] olhavam com ar estranho, estúpido”18, revelando impressões sobre a pequena vila, composta por cerca de cem casas, “cobertas algumas de telhas e outras de palha”, tendo no ponto mais alto, de onde se domina não somente a campina mas o mar, “o antigo convento dos Jesuítas e sua igreja, [hoje] paróquia de todos os fiéis”: “O panorama mais aprazível oferece-se aos olhos de quem se poste diante de alguma das janelas do claustro; descortinamse ao mesmo tempo o rio, a mata majestosa que o margeia, sua embocadura, o oceano, a cidade de Benevente e os campos dos arredores.”19
O ponto de vista privilegiado do observador soma os aspectos da vila aos da natureza para a definição do belo. O prazer do olhar que passeia ao focar distanciamentos situa os diversos planos e elementos que se diferenciam e complementam. Ele descor-tina o conjunto da paisagem capaz de trazer o conforto e proteção do estar na vila/cidade e, simultaneamente, vislumbra o amplo horizonte em seus diversos planos: rio que se une ao oceano, mata majestosa que margeia campo e cidade, o primeiro plano de Benevente. Do conforto e abrigo da cidade, a contemplação distanciada e a fruição calma da natureza.
François Biard (1858), apresentado como desenhista e aventureiro francês, bastante viajado, narra episódio interessante quando da sua chegada de Vitória ao vilarejo denominado Santa Cruz, em que, do caminho, avistou, “embora ainda distante, a torre de uma igreja desenhada no céu: só podia ser Santa Cruz”, tendo a impressão de que chegaria a uma “vila de certa importância”. Qual não foi sua surpresa ao constatar que se tratava de uma fachada, “um alto muro de três pés de espessura” que escondia uma “pobre palhoça, que só se distinguia das demais, na povoação, por ser um pouco maior”; tudo havia “sido construído de tal maneira, para o êxito das aparências, que a própria parede monumental só recebera reboco e pintura da parte externa; na outra ainda estava nua. O orgulho dos habitantes, contudo, fora satisfeito”20, até porque as igrejas constituíam símbolos centrais às vilas e cidades, a mostrar o quanto real e imaginário se efetivam e mesclam à vida dos homens.
Ainda a propósito do Espírito Santo, a figura do imigrante aparece com a chegada de Milkau, personagem de Graça Aranha, a Porto do Cachoeiro, no contato com as primeiras casas e nas impressões ao ver, logo de início, “pobres habitações, como soltas na estrada”, “moradas de gente preta, da raça dos antigos escravos”, “batidos pela invasão dos brancos”, constatação visível ao adentrar a cidade e chegar ao maior sobrado, a casa do Sr. Roberto Schultz.21
Dando um salto no tempo, Bruno traz ao leitor, com o título “Reminiscências”, quatro crônicas de Rubem Braga, da metade do século XX (1947-1951). Crônicas que “falam de coisas do Espírito Santo, província natal do autor” e narram lembran-ças da infância e juventude, em que a cidade vai aparecendo na memória das brinca-deiras, da escola, dos lugares, registrando, simultaneamente, a mudança e a passagem do tempo. A perspectiva da observação, marcando temporalidades historicamente dife-renciadas, realça a relação com a natureza, demarcando fortemente a alteração e as transformações provocadas pelo “progresso” que, gradativamente, modifica o entorno da vila — o rio tem novos motores, a “mata majestosa” foi e vai sendo abatida, a agricultura é ampliada, a ferrovia corta os espaços, trazendo novas gentes e novos interesses. A aceleração do novo e do movimento, visível, ainda assim é vista do pre-sente do autor, em seu exercício sempre lacunar de rememoração, que vê o passado saudosamente, como um tempo mais tranqüilo, da infância que se foi: “Regência, na beira Sul da foz do Rio Doce... Daqui para cima todo o vale se agita numa febre de progresso; motores novos pulsam no rio, a estrovenga limpa o mato, o machado abate os troncos, o cacau se alastra, as serrarias guincham, os colonos requerem terras, a ferrovia se renova, os minérios são arrancados da terra, os americanos fazem contratos, os baianos chegam ávidos de dinheiro.”22
Os contos, crônicas e trechos de romances mostram cenas e ambientes caros às vilas e cidades. De Manuel Antonio de Almeida (1853), Bruno retira cenas de costumes relacionados às festas do Espírito Santo23 e de Sonhos D’Ouro, de José de Alencar (1872), esboços de paisagens do Rio de Janeiro, em especial de passeios a cavalo pela Tiju-ca, e da Cascatinha, definida como “mimosa” pela comparação a uma “moça elegante” que, pela proximidade da corte, freqüentemente recebe “diplomatas, estrangeiros ilustres e a melhor sociedade do Rio de Janeiro”. Na relação cidade/natureza, apare-ce a preocupação com o meio ambiente, pela referência ao esforço de recuperação da Floresta da Tijuca apresentado como uma “promessa”, a depender do crescimento das “mudas de árvore de lei, que a paciência e inteligente esforço do engenheiro Archer têm alinhado aos milhares pelas encostas”, com a manifestação da opinião de Alencar por meio do personagem: “Viva imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça de um lucro insignificante! (...) encostas que “se vestiam outrora de matas virgens, de árvores seculares.”24
Pela pena do Visconde de Taunay (1873), Bruno transporta o leitor a Teresópolis, tão perto do Rio e tão pouco conhecida, de acordo com o autor, que indaga: “Quem no Rio de Janeiro não é mais ou menos tísico?” e não necessita de “um passeio às montanhas? Petrópolis é muito corriqueiro; Friburgo longe demais; exploremos Teresópolis”, saindo para a aventura — depois da barca, a subida a cavalo: “Quantas maravilhas! Os morros altos há pouco, acanham-se submissos: nivelam-se comigo: a vista se alarga; escala admirada os píncaros dos Órgãos; contempla os ‘Canudos’, o ‘Garrafão’, o ‘Dedo de Deus’, o ‘Frade’ ou descansa sobre docel imenso de majestosa verdura”. Finalmente, aparece o povoado, “a igrejinha e o núcleo mais importante de Teresópolis. As construções são singelas e como comuns a lugares de tão esplêndida nature-za. As perspectivas, como sempre variadas, trazem logo o desejo de longínquos pas-seios a cavalo para avistá-las debaixo de novos aspectos.”25
Machado de Assis fala do Rio de 1840 pela experiência de um menino de escola, que hesitava quanto à escolha do lugar a brincar: se “entre o morro de S. Diogo e o cam-po de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos”26, enquanto que, num salto para 1920, Lima Barreto, no conto “Clara dos Anjos”, toma o subúrbios por local e coloca em ação o personagem Júlio Costa, branco, cantador, que seduz Clara, moça mulata, simples, que queria tão somente casar.27
O último texto — “Subúrbio, favela, samba” — crônica de Gastão Cruls (de 1949), fecha o volume de forma exemplar, tomando de conjunto os variados aspectos da cidade, tanto do ponto de vista de sua geografia quanto do que anima e liga cada um dos diferentes espaços. Remete, também, para a associação natureza e artifício na edificação da cidade, assim como para a interveniência de ambas e retoma a sensação da ausência de planejamento e ordem que são recorrentes nas impressões de viajantes. Ambas — beleza e desordem — acabam por aparecer reiterada e sistematicamente, assim como a existência dos subúrbios como característica marcante do Rio de Janeiro, sem dúvida associada às interferências geográficas que simultaneamente ligam e dividem a cidade. Cruls escreve já na metade do século XX e faz um verdadeiro inventário em que as peças do mosaico vão sendo justapostas: “Recordando o meio físico sobre o qual assenta a cidade, não espanta que os seus bairros, distribuídos por vales e separa-dos por montanhas e morros, sejam quase sempre compartimentos estanques, de difícil intercurso, ainda quando os mais vizinhos. (...) Assim, cada bairro vai fazendo vida própria, aumentando os recursos locais, fomentando o comércio, de tal modo que se baste a si mesmo e seja uma pequena cidade dentro da grande cidade.”28
O autor segue, tanto pela descrição de bairros do Rio como pelas suas interligações por trem, túneis e formas de superar os obstáculos geográficos. Na contraposição cidade/cidades e cidade/subúrbio, retoma Machado e Lima Barreto, para, por meio de seus personagens e autores, falar um pouco das representações e imagens marcantes do Rio, vinculando o espaço da cidade e do subúrbio aos tipos e pessoas específicas em termos de pertencimento: “Uma personagem de Machado de Assis diz que gostaria ‘de fazer uma História dos Subúrbios menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade’. Não nos parece que o romancista falasse aí pela boca da sua criatura. Machado, embora nascido no morro, sempre foi homem da cidade: da rua do Ouvidor, de Laranjeiras e de Botafogo...”
Na continuidade, afirma o mesmo autor:
Quem nos poderia ter dado a História do Subúrbio, era Lima Barreto, que ali quase sempre viveu, ali também morreu e, se nasceu em Laranjeiras, só depois de morto é que foi de Botafogo. Está enterrado em São João Batista. Este, sim.
Ele que nos poderia ter contado a minuciosa e comovente história daquelas ruas tristes por onde andou e cambaleou bêbedo de gênio, e de cachaça; daqueles pobres companheiros de boteco com quem traçou o trago do tédio e da amargura; daquela gente humilde com quem ombreou e confundiu as suas misérias e os seus sofrimentos. E disso, do que poderia ter sido essa História, mostram bem as notas e observações de que estão cheias as suas páginas.29
Ele procura, ainda, aproximar as palavras de Lima Barreto, expressas pela personagem Policarpo Quaresma, para firmar impressões dos subúrbios do Rio, como “curiosa coisa em matéria de edificação”, em que aparecem somados os efeitos da natureza e os artifícios da criação e improviso dos homens:
Nada mais irregular e caprichoso. Se a topografia local concorreu para isso mais ainda concorreram os azares das construções. As casas, sem qualquer plano, surgiram como se fossem semeadas ao vento. E do mesmo modo as ruas. Destas, há algumas que começam largas como bulevares e acabam estreitas como vielas. Dando voltas, fazendo circuitos inúteis, parecem fugir ao alinhamento com um ódio tenaz e sagrado. Se em algumas há grandes trechos, grandes espaços desocupados, em outras as casas se amontoam umas sobre as outras. E que casas! Há para todos os gostos e construídas de todas as formas.30
Gastão Cruls chama a atenção para o fato de que este subúrbio de que fala Policarpo Quaresma, “focado pelo pessimismo e pela ironia dolorosa de Lima Barreto, é apenas o slum dos subúrbios, e de que nem mesmo os nossos bairros mais elegantes se livram”, aumentando o grau de variedade pela afirmação de um outro subúrbio, “da grande chácara, (. . .) do sobrado avarandado, (...) do chalezinho alambicado e do bangalô para boneca”31. A temporalidade é alterada, ao se colocar em comparação o texto de Lima Barreto e as observações do autor. Na seqüência, faz alusão ao que denomi-na “sertão carioca!”, pelos lados de Jacarepaguá, Senambetiba, Camorim e Marapendi, onde seriam encontradas casas de pauapique ou ranchos de palha, com vida quase tão primitiva quanto a dos “caboclos que habitam os pontos mais remotos do país”.32
A referência acentua tanto a permanência como a convivência do primitivo e do moderno — rural e urbano — em processos que ressaltam tanto a diversidade como a com-plexidade de espaços fisicamente tão aproximados e, ao mesmo tempo, tão opostos em seus modos de vida e de representação. É o caso dos “sertões cariocas”, aparente contradição à idealização de um Rio de Janeiro cosmopolita, em que se poderiam conceber as contradições inerentes ao mundo urbano em seus inúmeros subúrbios, mas sempre definido em termos de representação pelo urbano ou pelo esforço de aproximação. Da narrativa, no entanto, surge um “sertão carioca”, a conferir o sabor do exótico. Sempre aumentando a complexidade das falas sobre o espaço urbano, Cruls referencia a ocupação dos morros existentes nas zonas norte e sul — “não faltam em todos os bairros e para todos os gostos”, habitados pela “nossa gente mais pobre, (que) vai espetando os seus barracos”, as chamadas “favelas, amontoados de casebres e choças feitos ao deus-dará...” 33. E da favela, quase em seqüência, vai ao samba e à Mangueira — “lugar de muitas desordens, é também um dos focos da nossa música popular”34 —, para alcançar, finalmente, os “Carnavais deste século” (XX) com refe-rência a grandes nomes vinculados ao seu nascimento (juntos morro, samba e carna-val), à Praça Onze, local de encontro de todo o Rio de Janeiro, nos desfiles de “quanto bloco, cordão ou rancho existisse na cidade”, e que, na segunda-feira gorda, “lá se iam, ostentando garbosamente os seus estandartes, os (cito alguns) “‘Filhos do Deserto’, os ‘Aborrecidos do Realengo’, o ‘Novo Cupido de Ouro’, a ‘Flor do Caju’, o ‘Prazer da Pedra Encantada’...”, seguindo por aí afora35. Carna-val cujo lado dramático é descrito por Aníbal M. Machado no conto “A morte da porta-estandarte”, que narra o desassossego do ciúme imaginário e do crime ensandecido que põe fim à vida de Rosinha.36
O volume, no seu conjunto, e considerado na sua relação com a coleção, tendo em vis-ta as escolhas de Ernani Silva Bruno, contém um sentido de regional que reforça o não-urbano, ou melhor, não apenas o não-urbano, mas também os aspectos que atribuem significado à forma como o urbano foi sendo configurado a partir do estabelecimento de fortes vínculos com a natureza, reiterados à exaustão, que acabam por predominar quando se trata de estabelecer caracteres identitários de reconhecimento e de perten-cimento em termos de Brasil.
Não há o que generalizar; a leitura nos traz amostras significativas da imensa polissemia imagética do urbano e de suas representações, que, semelhantemente à do sertão, ainda que com nuances próprias, por ser conceito mais claro e refletido, comportam variadas interpretações, acentuando o quanto a procura do pitoresco, exótico e característico é recorrentemente buscada quando se tenta representar e projetar imagens do Brasil. A significação não somente polarizada, mas nuançada e fortemente imiscuída em seus extremos — a cidade cosmopolita e o sertão bruto —, tem ênfase fortemente demarcada no primeiro pólo, muito embora os sertões (com ou sem lugar, e em suas mais diversas interpretações) tenham sido emprestados e tenham estado em posição central quando da construção de uma aura de grandeza e mistério que povoa o imaginário e as grandes representações plásticas do Brasil em seus diferentes espaços, tanto pela imagem como pela escrita.
Revista Historia em Reflexão
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