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Policiais ingleses reprimem manifestações de rua em Jaffa, em 1936
Os ingleses acendem o estopim
Finda a Primeira Guerra Mundial, a Palestina ficou sob mandato britânico. Mas logo se tornaria uma possessão ingovernável em razão do antagonismo entre judeus e árabes
Houve, na Palestina, profetas, juízes, combatentes, reis; e não mais que um barão. De igual maneira que um Duce na Itália. O barão da Palestina foi Edmond Rothschild. O único indivíduo na Terra a possuir uma colônia. Algo totalmente diverso que possuir um estábulo para cavalos de corrida! Nem os Amantes de Sião nem os filhos do barão esquentaram o sangue dos árabes. Certo, se tivesse sido necessário arrancar a barba daqueles judeus, os árabes o teriam feito com evidente prazer. (...) Os árabes suportavam, sem problemas, os piedosos judeus de Jerusalém e de modo algum criariam um caso de Estado por causa de alguns infelizes vindos da Bessarábia para serem balouçados nos braços de ouro de Rothschild.(...) Veio então a guerra. Num lado, estava a Turquia, que tomava conta da Palestina; o outro, por meio do Serviço de Inteligência de Sua Majestade o Rei da Inglaterra, cortejou os árabes. Se a vitória tivesse cabido aos ingleses, estes constituiriam um reino árabe, um grande e belo reino como o da lenda. (...)”
Judeus, árabes, ingleses, eis a nova mistura explosiva em Jerusalém descrita pelo jornalista francês Albert Londres enquanto a Primeira Guerra Mundial eternizava-se. A vitória jamais estivera tão próxima como naquele domingo, 9 de dezembro de 1917. Estava no bolso do prefeito, Salim Al-Husseini, com as chaves da cidade. Um governador turco garatujou o ato de rendição num pedaço de papel. A guarnição otomana fugira. As tropas do general Edmund Allenby haviam cercado a cidade. Faltava tomá-la. Brandindo um lençol atado num cabo de vassoura como bandeira branca, Husseini marchava à frente de uma pequena delegação, à procura de militares que aceitassem a rendição. Depois de alguns equívocos, um general se dispôs. Era o fim da Jerusalém otomana, cinco séculos depois da entrada de Solimão.
Não era, porém, o general certo. Foi preciso recomeçar a cerimônia, em 11 de dezembro, com a presença dos ingleses e de representantes das três religiões. Pela primeira vez desde os romanos, Jerusalém era ocupada por um império colonial indiferente aos lugares santos. Ou quase: a Igreja Anglicana lá abrira seu primeiro templo em meados do século anterior. A Palestina representava para os britânicos acima de tudo a rota do petróleo e o controle do canal de Suez. Começava então uma partida de pôquer cheia de blefes. Com um prêmio: o Império Otomano. E uma aposta: simples promessas. Como a feita aos árabes, de um “grande reino” com a Palestina como recompensa para a intervenção contra os turcos. Com os franceses, sobre os quais recaía o maior peso da guerra, haviam sido assinados em 1916 os acordos secretos Picot-Sykes: plano de partilha do Oriente Médio, Jerusalém zona internacional. Arthur Balfour, ministro dos Negócios Exteriores, para que os judeus não se voltassem contra os alemães, escreveu ao barão de Rothschild que “o governo de Sua Majestade vê com bons olhos o estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu”.
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Sir Edmund Allenby, em foto de 1904
A cidade estava exangue. Esfaimada com as requisições do exército, dizimada pelas epidemias, privada dos recursos das peregrinações, esvaziada: 45 mil habitantes contra 70 mil cinco anos antes – os judeus, majoritários, mas eram metade do que tinham sido. Jerusalém, no entanto, reencontrou seu privilégio de capital. A Inglaterra instalou-se de maneira confortável. A Sociedade das Nações confirmou-lhe o mandato. Novo retorno do exílio se tornou possível para os judeus da diáspora. “O ano que vem em Jerusalém.” A prece parecia ser, enfim, contemplada. O sionismo perdera, decerto, seu “profeta”, Theodor Hertzl, mas teve seu banqueiro: o barão Rothschild. Ele investiu muito em infra-estrutura.
Na Palestina, os turcos se desesperavam, e depois deles os árabes e os ingleses, diante do fluxo imigratório de judeus que os pogroms na Polônia e Rússia alimentavam. Recusaram a venda do Muro das Lamentações. O sionismo descobriu enfim seu “papa Urbano”: lorde Balfour. A carta ao barão desse descendente de uma velha família inglesa tornou-se declaração, reconhecimento oficial do sionismo, fim do exílio anunciado. Os árabes muçulmanos, diante do consumado, experimentaram o sentimento de terem sido vítimas de um engodo. A rejeição da Declaração Balfour era pré-requisito para qualquer discussão. Puseram o estopim no barril de pólvora.
O poder inglês estabeleceu-se em Jerusalém. Havia agora um governador militar na capital dos “territórios inimigos ocupados”. Ele navegava na superfície com dois princípios contraditórios: conciliar arabismo e sionismo. Quanto à divisão, estava servido. No meio judaico, com os sefarditas, tradicionais interlocutores do poder em vigor, os asquenazes ultraortodoxos e os sionistas. A Comissão Sionista, que se tornaria o Executivo Sionista na Palestina, foi presidida num primeiro momento por Chaim Weizmann, brilhante químico londrino que obteve a Declaração Balfour. Ele se transformaria num interlocutor privilegiado. Entre os árabes muçulmanos, havia o esfacelamento feudal das grandes famílias com os turcos no poder havia 11 séculos e sem uma comunidade verdadeira, exceto a religiosa. Em busca de um novo prefeito, os ingleses escolheram o filho do precedente, um outro Husseini. Quanto aos cristãos, eram tais os antagonismos que as chaves do Santo Sepulcro foram confiadas aos muçulmanos.
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O hotel Semiramis, quartel-general do movimento árabe, bombardeado pela Haganah em 1948
As comunidades religiosas reencontraram as liberdades do regime otomano, com poderes políticos e sociais dilatados. O que convinha aos sionistas. Zeev Jabotinski, partidário “de uma muralha de ferro entre judeus e árabes”, fundou a Legião Judaica, ancestral da Haganah. A emigração acelerou-se. A Comissão Sionista parecia aos árabes “o começo de um Estado dentro do Estado”. O assentamento da primeira pedra da Universidade Hebraica no monte Scopus soava como provocação, da mesma forma que a proposta de compra do bairro dos magrebinos que era preciso atravessar para chegar ao Muro das Lamentações. Um primeiro incidente, quando do primeiro aniversário da Declaração Balfour, opôs em Jerusalém os judeus aos muçulmanos e cristãos. Bandeiras sionistas foram rasgadas e pisoteadas, líderes condenados. No congresso das associações islamo-cristãs, os insultos espocaram: os judeus lá eram referidos como “serpentes venenosas”. A violência instalou-se em Jerusalém e alhures.
Muro impróprio à oração
Na Páscoa judaica, em abril de 1920, uma peregrinação degringolou na entrada da Cidade Velha. Os árabes irromperam no bairro judeu, a polícia judaica interveio: seis mortos e centenas de feridos de ambos os lados. Para os ingleses o despertar era brutal. A repressão correu solta. O primeiro alto-comissário britânico na Palestina, Herbert Samuel, então nomeado, fora um dos artesãos judeus da Declaração Balfour: nada de molde a agradar aos árabes. Esse judeu britanizado teve medo de fazer demasiado por seus correligionários: foi contemporizando com eles. A graça aos condenados da véspera permitiu a Hadj Amin voltar a Jerusalém e ver-lhe oferecido o lugar de Grande Mufti, o representante de toda a população muçulmana. Egresso da Universidade Al-Azhar do Cairo, o templo do saber islâmico, trabalhara para os turcos e para os ingleses. Fanático violento, alimentava boatos, sublevava multidões. E, no entanto, Jerusalém conheceu período de calma, no mínimo inesperado.
A emigração judaica acelerou-se: de um total de 33.971 num conjunto de 62.578 habitantes, o número de judeus em Jerusalém passou para 51.222 em uma população de 90.503 habitantes. Novos bairros surgiram e construções, como o Instituto Bíblico Pontifical. Segundo a tradição, o prefeito era um muçulmano assistido por dois adjuntos: um cristão, o outro judeu. Os ingleses, por sua vez, tornaram mais leves as forças da ordem. Quando das festas do Kippur de 1928, um incidente tendo por motivo o Muro das Lamentações opôs muçulmanos e judeus. Hadj Amin sustentou o boato de que os judeus pretendiam tomar a esplanada para ali reconstruir o Templo de Salomão. Criou a sociedade de proteção dos lugares santos e tornou impróprio à prece o Muro das Lamentações, fazendo com que por lá trafegassem homens e gado.
Em 15 de agosto de 1929, dia do aniversário da destruição dos templos, manifestação de jovens judeus nacionalistas provocou explosão em Jerusalém e na Palestina: 30 mortos, centenas de feridos, sinagogas devastadas, casas arrasadas, milhares de pessoas sem abrigo. Mais um cataclismo abatia-se sobre a cidade depois do tremor de terra de 1927. E engendrou outros. O ódio e a guerra medraram. O Grande Mufti, que controlava o Conselho Supremo Muçulmano e presidia o Alto-Comissariado Árabe, reinava sobre as aldeias próximas. Lançou a multidão de Jerusalém contra judeus e ingleses e exigiu “o fim da emigração judaica, a interdição de terras aos judeus e a constituição de um governo de representação nacional”. O advento do nazismo acelerou a imigração. As posições se radicalizaram. Violências respondiam a violências. A “revolução palestina” começou em 22 de abril de 1936 em Jerusalém; a greve geral dos árabes em 14 de maio; cessou em outubro, mas sucederam-lhe atentados permanentes, tanto islâmicos quanto judaicos, com o exército clandestino judaico, os grupos terroristas do Irgoun de Menahem Beguin e o grupo Stern de Yitzhak Shamir. David Ben Gurion entrou para o Executivo judeu.
Jerusalém, um campo de batalha. Os ingleses enredados na tormenta contam os tiros. E os recebem. Publicam o primeiro Livro Branco, de 1937, e que fez de Jerusalém uma cidade internacional entre dois Estados independentes; um segundo, de 1939, elevou-a a capital de um Estado palestino único e limitou a imigração. A guerra retardou a última explosão. O horror dos campos da morte nazistas transtornou o mundo. Os britânicos aplicaram em Jerusalém as resoluções do segundo Livro Branco. Em 22 de julho de 1946, o Hotel King David, centro da administração britânica, foi pelos ares: 91 mortos. Dinamitara- o o Irgoun, sob ordem da Haganah, que queria expulsar os ingleses “com fogo e sangue”. Os ingleses entrincheiraram-se em três zonas fortificadas da cidade.
Arruinado pela guerra e pelo desmantelamento de seu império, o Reino Unido confiou Jerusalém e a Palestina à Organização das Nações Unidas, que votou o plano de partilha da Palestina em três entidades, ficando Jerusalém como zona internacional. Era 29 de novembro de 1947. Uma semana mais tarde, começava a batalha de Jerusalém. Os árabes assediaram a cidade. Os judeus destruíram o Hotel Semiramis, os árabes, o prédio do Palestine Post, a rua Ben Yehuda e a sede da Agência Judaica. O bairro judeu da Cidade Velha ficou sob assédio. Não menos de 30 mil dentre os 100 mil judeus abandonaram a cidade. O massacre que o Irgoun e o grupo Stern perpetraram “com metralhadora, depois com granada e enfim com punhal” de 254 árabes, mulheres e crianças, da aldeia de Deir Yassin, nas portas da cidade, provocou a partida de 23 mil árabes de Jerusalém. Em 14 de maio, os ingleses deixaram a cidade que David Ben Gurion, que havia pouco proclamara o Estado de Israel, e Abd Allah, rei da Transjordânia, cobiçavam. Os beduínos da Legião Árabe de Glubb Pacha tomaram a Cidade Velha. Esperaram por dez dias a rendição dos 1.700 sobreviventes. A conquista estancou.
Durante 19 anos, um muro cortaria Jerusalém em duas. Uma porta permitia a travessia do oeste israelense para o leste jordaniano, onde estão os lugares santos. Os judeus ficaram privados do Muro das Lamentações. Em 1949, apesar da oposição internacional, Jerusalém tornou-se a “capital eterna” de Israel, que lá estabeleceu seu Parlamento, o Knesset. Em junho de 1967, o Tsahal, o exército israelense, anexou a parte oriental da cidade, sem aval da comunidade internacional. Mais: explodiu uma centena de prédios para libertar o muro. “Jerusalém inteira e unifi cada, capital eterna de Israel”, proclamavam os cruzados do sionismo. Eterna. Mas a que preço? (Tradução de Osmar Portugal)
GLOSSÁRIO
Magrebinos: originários de Maghreb, a região norte-africana abrangida pelo Marrocos, Tunísia e Argélia.
Mufti: autoridade islâmica que interpreta e decide legalmente o que diz respeito ao código de leis fundamentado no Alcorão.
Yom Kipur: Dia do Perdão, a festa maior dos judeus.
Pessach, a Páscoa judaica: celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito (no dia 14 do mês de Nissan do ano aproximado de 1280 a.C.).
Revista Historia Viva
Um comentário:
e parece que esses conflitos...
não acabam jamais né?
http://xcafedamadrugadax.blogspot.com
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