sexta-feira, 30 de abril de 2010

Queima de Livros


Reunidas na Praça da Ópera em Berlim multidões de estudantes e membros das Tropas de Assalto queimam livros considerados "não-alemães" pelos nazistas. Berlim, Alemanha. Dia 10 de maio de 1933.

— United States Holocaust Memorial Museum


Joseph Goebbels, ministro da propaganda alemão, discursa na noite da queima dos livros. Berlim, Alemanha, 10 de maio de 1933.

— United States Holocaust Memorial Museum


Na Praça da Ópera (Opernplatz) de Berlim, um membro das Sturm Abteilung, Tropas de Assalto, joga livros na fogueira durante a queima pública de livros considerados "não-alemães". Berlim, Alemanha. Dia 10 de maio de 1933.

— United States Holocaust Memorial Museum


Em Hamburgo, membros da SA e estudantes da Universidade de Hamburgo queimam livros que consideram "não-alemães". Hamburgo, Alemanha, 15 de maio de 1933.

— Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz


Estudantes e membros da SA com pilhas de livros considerados "não-alemães" durante a queima de livros em Berlim. Alemanha, 10 de maio de 1933.

— National Archives and Records Administration, College Park, Md.


Livros considerados "não-alemães", queimados pelos nazistas na"Opernplatz (Praça da Ópera). Berlim, Alemanha. 10 de maio de 1933.

— Wide World Photo


Multidão reunida na praça da Ópera de Berlim, (Opernplatz), para participar da queima de livros considerados "não-alemães" pelos nazistas. Berlim, Alemanha. Dia 10 de maio de 1933.

— Wide World Photo


Estudantes coletaram livros com caminhões, furgões e até mesmo carros de bois por toda a Alemanha e os empilharam em fogueiras nas praças públicas. Esta imagem mostra membros da SA e estudantes da Universidade de Frankfurt com carros de bois carregados de livros considerados "não-alemães". Frankfurt am Main, Alemanha, 10 de maio de 1933.

— Wide World Photo


Estudantes e membros da SA descarregam livros considerados "não-alemães" durante a queima de livros em Berlim. O cartaz diz: "Estudantes alemães marcham contra o espírito não-alemão." Berlim, Alemanha, 10 de maio de 1933.

— National Archives and Records Administration, College Park, Md.


Em 1933, Joseph Goebbels, ministro alemão da Propaganda e do Esclarecimento Popular, deu início à “sincronização da cultura”, processo pelo qual as artes foram moldadaspara atender aos objetivos do Partido Nazista. O governo expulsou os judeus e os que considerava política ou artisticamente suspeitos das organizações culturais.


Dentre as figuras de vanguarda do movimento nazista figuravam estudantes das universidades alemãs e, no final da década de 1920, muitos engrossaram as fileiras das várias formações daquela ideologia. A força do ultra nacionalismo e do anti-semitismo das organizações estudantis, cujos membros eram oriundos de uma classe média secular, já se fazia sentir há décadas. Com o final da Primeira Guerra Mundial a maioria dos estudantes se opôs à República de Weimar (1919–1933), encontrando no Nacional Socialismo um veículo ideal para expressar seu descontentamento e hostilidade política.


Em 6 de abril de 1933, a sede da Associação Estudantil Alemã para Imprensa e Propaganda proclamou um "Ato Nacional contra o Espírito Não-Germânico", para “limpar”, ou "depurar" (Säuberung) a literatura alemã pelo fogo. Suas sucursais deveriam fornecer à imprensa boletins e encomendar artigos pró-nazismo , organizar eventos em que personalidades nazistas famosas pudessem discursar para grandes massas, bem como negociar horários de transmissão pelo rádio para que fossem ouvidos dentro das casas. Em 8 de abril, a Associação Estudantil também publicou seus doze "artigos"—em uma alusão às 12 Teses do alemão Martinho Lutero contra a Igreja Católica—através das quais apresentava seus conceitos e requisitos para o estabelecimento de um idioma e de uma cultura nacionais "puras", atacava o "intelectualismo judaico", defendia a necessidade de "depuração" do idioma e da literatura alemães, e exigia que universidades se convertessem em centros do nacionalismo alemão. Os estudantes alemães descreveram o ato como uma reação à "difamatória campanha" mundial empreendida pelos judeus contra a Alemanha e uma afirmação dos valores tradicionais alemães.


Em um ato simbólico, quase que profético, no dia 10 de maio os estudantes atearam fogo a mais de 25.000 livros considerados "não-alemães", já pressagiando a era de censura política e de controle cultural que estava por vir. Na noite daquele mesmo dia estudantes de direita, vindos de todas as cidades universitárias, marcharam à luz de tochas em desfiles organizados para protestar "contra o espírito não-alemão". O ritual que desenvolveram, já predeterminado, tinha como componente básico a presença e o discurso de oficiais nazistas do alto escalão, reitores, professores universitários, e líderes estudantis. Nos locais de reunião, os estudantes lançavam pilhas e pilhas de livros indesejáveis nas fogueiras, em uma alegre cerimônia com bandas de música, canções, "juramentos" e frases de efeito.


Entretanto, nem todas as queimas de livros aconteceram naquele 10 de maio como a Associação Estudantil havia planejado. Algumas foram adiadas por alguns dias por causa das chuvas, outras, dependendo da preferência da assembléia local, aconteceram em 21 de junho, no solstício de verão, uma data festiva tradicional. Todavia, no dia 10, em 34 cidades universitárias por toda a Alemanha, o "Ato contra o Espírito Não-alemão" foi um sucesso, atraindo ampla cobertura jornalística. Em alguns lugares, particularmente em Berlim, as emissoras de rádio transmitiram "ao vivo" os discursos, as canções e as frases de efeito para inúmeros ouvintes alemães.


Também as obras de escritores alemães de renome que não agradavam ao Partido Nazista, tais como Bertolt Brecht, Lion Feuchtwange, e Alfred Kerr, foram lançadas à fogueira durante uma cerimônia de queima de livros realizada em Berlim. A propagação da cultura "ariana", e a supressão de outras formas de produção artística representaram um esforço nazista extra para a "purificação" da Alemanha. Outros escritores incluídos nas listas negras foram os autores americanos Ernest Hemingway e Helen Keller.
Museu do Holocausto

Retrato de um fabricante de opinião

Nova Iorque - 1941


Os cinemas se negam a exibir Cidadão Kane. Só alguns cineminhas pulguentos se atrevem a semelhante desafio. Em Cidadão Kane, Orson Welles conta a história de um homem enfermo de febre de poder, e esse homem parece demais com William Randolph Hearst.
Hearst possui dezoito jornais, nove revistas, sete castelos e numerosas pessoas. Ele sabe como excitar a opinião pública. Em sua longa vida provocou guerras e bancarrotas, fez e desfez fortunas, criou ídolos, demoliu reputações. São invenções suas as campanhas escandalosas e as colunas de mexericos, boas para bater, como ele gosta, abaixo da linha de cintura.

O mais poderoso fabricante de opinião dos Estados Unidos acha que a raça branca é a única raça verdadeiramente humana. Crê na necessária vitória do mais forte e crê que os comunistas têm a culpa de que os jovens bebam álcool. Também está convencido de que os japoneses são traidores natos.


Os jornais de Hearst estão há mais de meio século alertando contra o Perigo Amarelo, quando o Japão bombardeia a base norte-americana de Pearl Harbor. Os Estados Unidos entram na segunda guerra mundial.


Davies, Marion. The timeswe had. Life with William Randolph Hearst. Indianápolis/ Nova Iorque, Bobbs-Merrill, 1975.


Memória do Fogo - Eduardo Galeano

Super-Homem


Nova Iorque - 1939

Na revista Action Comics são publicadas as aventuras do Super-homem.

Este Hércules de nosso tempo protege a propriedade privada no universo. De um lugar chamado Metrópolis, viaja a outras épocas e galáxias, voando mais rápido que a luz do e rompendo as barreiras tempo. Onde quer que esteja, neste mundo ou em outros, o Super-Homem reestabelece a ordem com mais eficácia e rapidez que todos os marines juntos. Com uma olhadela derrete o aço, com um pontapé polda todas as árvores da selva, com um murro perfura várias montanhas ao mesmo tempo.

Em sua outra personalidade, o Super-Homem é o tímido Clark Kent, tão pobre diabo como qualquer um dos seus leitores.

Eco, Humberto. Apocalípticos e integrados ante la cultura de masas. Barcelona, Lumen, 1968.

Memória do Fogo III - Eduardo Galeano

Roosevelt

Você está vendo uma imagem pouco comum de Theodore Roosevelt, retrato comprimento três-quartos, de pé no carro, acenando com o chapéu. Ela foi tirada entre 1909 e 1932
A imagem mostra Roosevelt, Theodore, 1858-1919.


Washington - 1939

Quando Franklin Delano Roosevelt chegou a presidência, havia nos Estados Unidos quinze milhões de trabalhadores sem trabalho, que olhavam com cara de meninos perdidos. Muitos levantavam o polegar nas estradas e peregrinavam de cidade em cidade, descalços ou com cartolinas sobre as solas furadas, transformando em hotéis os mictórios públicos e estações de trem.

Para salvar sua nação, a primeira coisa que Roosevelt fez foi engaiolar o dinheiro: fechou todos os bancos até que o panorama ficasse mais claro. E desde então governou a economia sem se deixar governar por ela, e consolidou a democracia ameaçada pela crise.

Com os ditadores latino-americanos, porém, se dá muito bem. Roosevelt os protege, como protege os automóveis Ford, as geladeiras Keivinnator e todos os outros produtos industriais dos Estados Unidos.

Manchester, William. Gloria y ensueno. Una historia narrativa de los Estados Unidos. Barcelona, Grijalbo, 1976.

Memória do Fogo III - Eduardo Galeano

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Tomás de Torquemada: O fanático da Inquisição


Tomás de Torquemada: O fanático da Inquisição
Para proteger a fé, o frade Tomás de Torquemada recomendava parafusos nos polegares dos heréticos
Na Espanha do fim do século 15, a fama do inquisidor Tomás de Torquemada chegava aos quatro cantos da Espanha. Queridinho da rainha Isabel (vulgo “a Católica”), Tomás – que era frade dominicano – queria livrar o reino de heresias religiosas. Desde que fora nomeado inquisidor-geral pelo papa Inocêncio VIII, perseguiu judeus, agiotas, bígamos, homossexuais e bruxas. Os suspeitos eram enviados, sem qualquer explicação, aos calabouços da Inquisição para interrogatório. Ali, durante os açoitamentos e torturas, o sinistro religioso ficava rezando baixinho enquanto os carrascos aplicavam parafusos nos polegares, arrancavam unhas e dilaceravam a pele dos presos com pinças em brasa. Suspeitas de bruxaria eram despidas, para que os carrascos procurassem pelo corpo tatuagens de pentagramas invertidos, considerados “marcas do diabo” (stigmata diaboli). Deu para assustar? Isso era só o começo. Depois de arrancadas as confissões, os “hereges” eram enviados a julgamento, quase sempre em praça pública, eventos chamados autos-da-fé. Mais de 10 mil acusados de feitiçaria e heresia foram condenados à fogueira, que era acendida ali mesmo.

Chegou uma hora, contudo, em que o próprio Vaticano – assustado com a sanha assassina do frade – pediu que Torquemada moderasse. Tomás ignorou a ordem, e acabou destituído do cargo em 1494. Magoado, retirou-se para um convento, morrendo em 1498 enquanto dormia. Sua morte foi indolor.

Revista Aventuras na História

Henrique VIII: O terror da mulherada


Henrique VIII: O terror da mulherada
O rei inglês Henrique VIII, criador de uma igreja própria, assassinou duas de suas seis esposas
Henrique VIII entrou para a história por causa da religião e de sua escandalosa vida de alcova. Na juventude, suas paixões eram as mulheres, a bebida, o carteado, os esportes eqüestres e o jogo de dados. A fama de boa vida não incomodava a corte – afinal, o herdeiro do trono inglês era seu irmão, o bem-comportado Arthur. Só que Arthur morreu, e Henrique foi coroado em 1509, aos 18 anos. Arranjaram-lhe, de quebra, uma esposa, a sem graça Catarina de Aragão, viúva de Arthur e cinco anos mais velha que ele.

Claro, não foi um casamento feliz. Para piorar, Catarina não deu um herdeiro homem ao monarca. Foi então, em 1522, que Henrique cresceu o olho para uma dama de companhia de Catarina, a bela Ana Bolena. Levou tempo, mas em 1533 os dois se casaram secretamente. Como a Igreja Católica não reconhecia esse casamento e não anulava a união do rei com Catarina, Henrique VIII tomou uma medida que mudaria a vida religiosa inglesa para sempre: rompeu com o Vaticano e criou sua própria igreja em 1534. Na época, a Igreja Anglicana gerou um banho de sangue: 72 mil revoltosos papistas – inconformados com a separação – foram mortos no reinado de Henrique, incluindo milhares de monges e grandes intelectuais da época, como o filósofo sir Thomas Morus, ex-chanceler da Coroa.

Ana Bolena, porém, não deu a Henrique o tão aguardado herdeiro homem. Foi levada a um julgamento fajuto em que o rei acusou-a, entre outras coisas, de adultério, incesto e magia negra. Acabou decepada em 1536. A terceira esposa do rei, Jane Seymour, teve um filho, mas morreu de febre depois do parto. A quarta, Ana de Clèves, coitadinha, era muito feia, e o casamento foi anulado. A próxima da lista foi a bela e fogosa Catarina Howard. Acusada pelo paranóico rei de infidelidade, foi decepada na Torre de Londres em 1542. A sexta e última esposa de Henrique foi Catarina Parr. Henrique morreu em 1547, aos 56 anos, com sérios problemas de saúde devido à obesidade. Segundo uma teoria moderna, também teria contraído sífilis. Corria na corte a história de que o fantasma da quinta ex, Catarina Howard, assombrava o rei no palácio. “Henrique com seis mulheres casou. Uma morreu, uma viveu, de duas divorciou e de duas a cabeça cortou”, cantava o espectro.

Revsta Aventuras na História

Alimentação já foi questão social


Alimentação já foi questão social
Na Europa medieval, a divisão de classes restringia até o tipo de comida. Aos camponeses, nada de carne: restavam apenas os produtos do solo, como vegetais e frutas
Inspiração bárbara

Foram os povos germânicos invasores, chamados de bárbaros pelos europeus, que inspiraram os hábitos dos nobres à mesa. Eles introduziram o gosto pela caça, hábito que era desprezado pelos antigos romanos. Para evitar que as camadas mais pobres servissem em suas mesas alimentos como cervos e porcos selvagens, os ricos dominavam as florestas com seus exércitos particulares de caçadores. A classe mais privilegiada da sociedade medieval possuía costumes “selvagens”, como os de comer porções gigantescas de animais grelhados, temperados com especiarias e condimentos. Comer para eles não era apenas uma forma de saciar a fome – era também um jeito de mostrar sua superioridade.

Comer até cair

Não era só de carne que viviam os nobres medievais. Eles também apreciavam queijos e ovos. E sempre em excesso. Os banquetes da época são exemplos disso. Nas grandes festas, serviam-se cerca de 15 pratos diferentes: primeiro sopas e depois vários pratos de assados e grelhados. No meio disso tudo, quitutes. A aparência da comida importava mais que seu gosto. Por isso, os cozinheiros adoravam usar condimentos que tingissem seus pratos. Salsa, por exemplo, os deixava verdes. E tudo era motivo para uma orgia gastronômica: datas comemorativas cristãs, festas familiares, acordos políticos, alianças entre reinos, celebração da paz... Reunir à mesa era um ato de reafirmação da lealdade entre os nobres.

Pão e vinho para todos

Os mais pobres não contavam com carne de caça em suas mesas nem com uma grande variedade de pratos. Mas tinham uma alimentação bastante saudável: comiam legumes, verduras, frutas e peixes. Assim, apresentavam bom desenvolvimento corporal – tinham, em média, 1,73 metro de altura entre os séculos 5 e 10, quase tão altos quanto os europeus de hoje. De comum, camponeses (90% da população) e nobreza tinham o pão e o vinho, alimentos de consumo diário. Só que, claro, o pão dos nobres era feito de uma variedade melhor de grãos, assim como o vinho deles, para o qual eram reservadas as melhores uvas. Na região onde hoje é a Alemanha, o vinho tinha um rival: a cerveja, uma bebida densa e doce.

Revista Aventuras na História

História sem gracejos


História sem gracejos
Por Alex Miyoshi

"Versalhes Tropical" evita a caricatura e analisa a fuga de d. João VI para o Brasil como complexo problema mundial

A fuga da corte real portuguesa para o Brasil é interpretada de modos diversos. Alguns colocam à frente do episódio um príncipe medroso, incapaz e glutão, seguido de figuras e situações pouco nobilitadoras. Tal é a fama dessa imagem que, alimentando-se também de sua própria repetição, dificulta-se pensar em algo longe do tragicômico.
Não é o caso defender a abolição do caricato. Mas uma historiografia contemporânea do episódio poderia voltar-se mais ao episódio e menos à caricatura. Não reiterá-la exige um esforço, ainda mais se o narrador estiver imerso na cultura brasileira; ou então é preciso pertencer, originar-se, imbuir-se de uma outra cultura: como um estrangeiro, que poderia ter outros olhos para o caso.
Contar uma história sem gracejar não é o mesmo que deixar de ser gracioso. Assim como a austeridade pode comportar a graça, um texto historiográfico pode ser seco, vigoroso e encorpado como o melhor vinho. É este o caso de "Versalhes Tropical: Império, Monarquia e a Corte Real Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821" (tradução de Renato Aguiar, ed. Civilização Brasileira, R$ 50), da historiadora Kirsten Schultz. O livro é sua tese de doutorado, iniciada em 1994 na Biblioteca John Carter Brown e publicada pela primeira vez em 2001, nos EUA.
Em meio à boa safra de livros recentes sobre a fuga real1, o de Kirsten Schultz é o mais dedicado a compreender o episódio como um complexo problema histórico e historiográfico internacional. Sua narrativa densa e cadenciada nos faz mergulhar naqueles anos, atendo-se principalmente à reflexão sobre eles, com admirável neutralidade.
Há, evidentemente, comentários sobre a vasta bibliografia do assunto, passando pela complicada questão social-econômica em torno da proposta “liberal-conservadora” de José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu. Mas o melhor do trabalho de Schultz foi abster-se dos paralelos com situações contemporâneas, muitas vezes comprometedores à compreensão do episódio. Mantendo-se atenta a ele, a autora põe em relevo e sob nova luz dados já conhecidos, embora frequentemente menosprezados.
A começar pelo merecido destaque dado por ela ao fato de o “transplante” da corte portuguesa à América ser uma ideia antiga (proposta também pelo padre Vieira, quase um século e meio antes da fuga), renovada e apresentada a dom João VI em 1803 pelo chefe do tesouro real, Rodrigo de Souza Coutinho, com o objetivo de criar “hum poderoso Imperio no Brasil”, reconquistar futuramente eventuais perdas na Europa e castigar o “fero Inimigo” francês, surdo à tentativa portuguesa de se manter longe de conflitos.
É claro que, mesmo antecipada, a transferência ainda seria uma fuga, com a diferença que as dimensões territoriais e os recursos do Brasil, seriamente considerados na ocasião, talvez se sobrepusessem de forma positiva aos demais motivos da mudança.
Para a corte portuguesa, a decisão sobre o que fazer não era simples. Nenhuma realeza europeia jamais se transplantara à periferia do império. Kirsten Schultz partiu daí para entender amplamente as motivações da fuga, ponderando uma questão de extrema relevância à Coroa: sua representatividade não apenas aos súditos, como também para o mundo, considerando ainda a manutenção do império, da monarquia absoluta e de sua economia essencialmente mercantilista.
Após a fuga da corte, para além de justificá-la, era preciso cuidar da imagem de um país monárquico e escravista, facetas em diferentes medidas associadas ao atraso. Havia uma grande carga de notícias denegridoras por parte dos franceses (que acusavam os portugueses de serem covardes e de renunciarem ao reino) e dos ingleses (para quem a transferência da corte teria sido concebida por Napoleão, aproveitando-se da fraqueza de dom João VI).
Além disso, as revoluções nos EUA, na França e no Haiti estavam muito frescas; o temor que houvesse algo semelhante no Brasil era grande. Os mercadores britânicos se empenhavam em transformar os “Brasis” num “empório das manufaturas britânicas destinadas ao consumo de toda a América do Sul”. Unificar historicamente o império, portanto, tornou-se uma necessidade, assim como fortalecer a monarquia e viabilizá-la frente aos países que a minavam em favor da república.
Como várias pessoas argumentaram à época, lembra a autora, tanto “a transferência da corte quanto a subseqüente designação do Brasil como reino (em 1815) tinham de ser consideradas como resultantes de uma mudança no status do Brasil, em vez de a ela conducentes”. Em 1818, a Aclamação de Dom João VI juntou-se a esses dois eventos “como triunfo da autoridade real e da unidade histórica e indivisível dos três reinos” (Portugal, Brasil e Algarves). E, se a unificação dos reinos e a Aclamação não mudaram a estrutura do governo, conservando seu regime e mantendo indefinida a residência real, suas repercussões seriam representativas ao celebrarem a derrota da Revolução Francesa, a “vitória” sobre as revoltas republicanas por toda a América e uma resposta ao crescente poder dos EUA.
O esforço de civilizar a cidade do Rio de Janeiro inseriu-se na tentativa de justificar o novo lar da corte, para o qual, conforme a Guerra Peninsular se estendia, a ojeriza inicial dos exilados no Rio diminuía. Nas palavras da autora, a “compreensão das fronteiras da nação como, acima de tudo, morais e políticas também lhes permitiu reconceber a identidade nacional no contexto de uma transformação do Novo Mundo”.
De terra da perdição, o Brasil tornou-se “um abrigo contra a decrepitude”, uma “promessa de regeneração”, um “refúgio virtuoso da corrupta Europa, um lugar onde a civilidade sitiada pudesse prosperar”. Articulou-se, assim, um duplo movimento, no qual a América portuguesa passava a ser vista como lugar privilegiado à restauração da boa imagem de Portugal, que, por sua vez, contribuiria a tornar positiva a imagem da América portuguesa.
Assim, ao problema de imagem (muito importante no livro, não por acaso intitulado “Versalhes Tropical”), Kirsten Schultz relaciona um problema capital de história: são os acontecimentos que acabam por definir a representação como ponto privilegiado de observação aos próprios acontecimentos. A autora analisa com profundidade os discursos da época sobre as condições da colônia (a arquitetura, os hábitos e a escravidão), detendo-se no modo como essas condições eram colocadas em perspectiva dos rumos da nação lusitana, juntamente com o seu passado. Menciona, por exemplo, um argumento de Silva Lisboa, que teria ancorado “o comércio na história, em vez de apresentá-lo como um triunfo sobre a história”2.
Para ele, os portugueses, à diferença dos revolucionários franceses e dos britânicos na Índia, não seriam “mercenários comerciais”, alheios às obrigações sociais. Pelo contrário, o comércio português seria historicamente nobre: “Para os portugueses não fazia sentido distinguir as causas e os efeitos do comércio e da civilização aristocrática, pois seu caráter nacional, o seu “espírito das leis” montesquiano (...) era a um só tempo mercantil e cavalheiresco”. Retomar a glória lusa do século 16 como “origem idealizada” era também uma das formas de combater os ataques denegridores à Coroa portuguesa.
Por outro lado, tomar a história para justificar o poder real e imperial na América “produziu a sua própria crise de representação”. Enquanto o Brasil era apresentado orgulhosamente como “a amplificação do território da May-Patria para a Monarchia Lusitana”, a presença da corte no Novo Mundo mostrava que “essa ampliação histórica de Portugal parecia ter chegado à sua derradeira conclusão”.
A localização permanente do rei era a “grande questão do Estado” na década de 1810. A ausência do monarca tanto lá quanto cá era preocupante. Salvar a monarquia e o império demandava uma nova organização do poder real.
Daí a recomendação de Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1814, de divisão da “autoridade real”, com dom João “imperador do Brasil, soberano de Portugal” e d. Pedro “Rei de Portugal, herdeiro da Coroa do Brasil”, como tentativa “de dar suporte a uma representação vigorosa dessa autoridade sobre uma área maior”, diminuindo “a percepção de marginalidade bem como as margens físicas que antes definiam a relação do Brasil com Portugal e agora pareciam definir a relação de Portugal com o Brasil”.
Em outras palavras, a articulação do passado com o futuro e as ambiguidades que pudessem daí surgir também estão no título de um relatório pesquisado por Kirsten Schultz3, “Memórias Sobre o Estabelecimento do Império do Brazil, ou Novo Império Lusitano” (grifo nosso), termos equivalentes “tanto do ideal histórico português de renovação política como do projeto europeu de civilizar o Novo Mundo”.
A autora aponta ainda outra “tensão”, baseada em análise de Ana Cristina Araújo para o escudo do Reino Unido português4. Com o brasão de Portugal no centro, envolto pela esfera armilar da bandeira do Principado do Brasil, de 1645, o escudo “sugeria não apenas os domínios expansivos portugueses, como também o poder emergente do Brasil”. Porém, enquanto as torres “evocavam o glorioso passado português, a sua localização no interior da esfera consagrava o destino americano do império (ponto de chegada)”. Em 1822, o escudo do Reino Unido de Portugal desfez-se da esfera armilar. O excelente livro de Kirsten Schultz não explica esse fato. Nem precisava. A autora sabe que esse é um outro e complexo episódio da história.


Alex Miyoshi
É arquiteto e professor, doutorando em história da arte no IFCH-Unicamp, onde faz pesquisas sobre arte e arquitetura dos séculos XIX e XX. Edita a "Revista de História da Arte e Arqueologia" na mesma instituição.


1 - Cabe destacar os livros “Império à Deriva - A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821” (Objetiva, 2005), de Patrick Wilcken, e “1808” (Planeta, 2007), de Laurentino Gomes.

2 - A análise de Kirsten Schultz do pensamento do economista soteropolitano José da Silva Lisboa (1756-1835) é particularmente interessante no vínculo com o filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797), algo raro na historiografia brasileira, que costuma relacionar Silva Lisboa pejorativamente a Adam Smith (1723-1790).

3 - Vasconcellos, António Luiz de Brito Aragão. “Memórias Sobre o Estabelecimento do Império do Brazil, ou Novo Império Lusitano”. "Anais da Biblioteca Nacional", Rio de Janeiro, 1920-21, 43-44, citado por Schultz.

4 - Araújo, Ana Cristina Bartolomeu. “O ‘Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves’ 1815-1822”. "Revista de História das Idéias'', nº 14, Lisboa, 1992, pág. 250, citado por Schultz.

Revista Trópico

A história do porco


A história do porco
Por Alex Miyoshi

As relações dos homens com os suínos é tema do novo livro do historiador francês Michel Pastoureau


Hominídeos e porcos convivendo harmoniosamente, quase como iguais. Assim os vemos nas primeiras páginas de “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Arthur C. Clarke. Até o momento em que o hominídeo encontra um monólito negro e transforma o companheiro em refeição...
Ficção elevada, a versão cinematográfica de Kubrick não mostra porcos, mas tapires, talvez por sua aparência mais “pré-histórica” e estranha ao público. De todo modo, a ideia de domínio da natureza pelo homem encontra poucas imagens tão fortes, tão intensas e sintéticas quanto a de um macaco golpeando a cabeça de um quadrúpede, seja ele uma anta ou um porco.
A sequência de “ 2001” sintetiza igualmente o relacionamento ambíguo entre os seres humanos e os suínos. De um lado, o porco é símbolo de fartura: a célebre figuração do cofrinho deriva das formas abundantes e também de sua prodigiosa fecundidade. Outras benesses são propaladas em ditos populares, como “do porco, tudo se aproveita”. Mas as imagens negativas são predominantes; se não o mais vil dos animais, o porco é o mais sujo, e nenhum outro bicho personifica tantos vícios: ele é a gula, a luxúria, a preguiça, a ganância; por vezes também a ira.
A história desse controverso e (hoje) simpático ser é narrada com brilho em “Le Cochon : Histoire d’Un Cousin Mal Aimé” (“O Porco: História de Um Primo Mal-amado”1), livro densa e belamente ilustrado, lançado na França neste ano pela editora Gallimard. Livro que vem em boa hora, não tanto para justificar o azar do mamífero que serve de nome à doença do momento (a “gripe suína”) quanto para deslocar um pouco o modo de ver a nossa relação com os animais e também –é claro– conosco mesmos.
Michel Pastoureau é o autor. Historiador e antropólogo, nascido em Paris, em 1947, diretor na École Pratique des Hautes Études, ele tem como especialidade as cores, os animais, os símbolos e os emblemas2. Tais assuntos, há 30 ou 40 anos, quando Pastoureau começou a lhes dar atenção, eram vistos como menores, fúteis ou extravagantes. Hoje, é mais fácil vê-los como importantes e poéticos. Entrecruzando-os, pelo incomum das escolhas e a fertilidade de umas para as outras, Pastoureau extraiu conhecimentos extraordinários.
Se a historiografia abandonou a exclusividade dada aos reis e às guerras, se ela passou a tratar dos menosprezados, das minorias e desassistidos, Pastoureau radicalizou; adotou temas em si desvalorizados e, dentro deles, dedicou-se carinhosamente aos “perdedores”: estudou as cores com o intuito declarado de “reabilitar” o verde. Com os animais, fez o mesmo, voltando-se ao porco, ao corvo (provável próximo livro) e ao urso (“L’Ours : Histoire d’Un Roi Déchu”, Seuil, 2007).
O autor tem mesmo em seu sobrenome um pouco do ofício (Pastoureau: algo como “pastorzinho”), o semblante fotogênico, alegre e arredondado. Poucas figuras corresponderiam tão bem àquilo que fazem. Seu trabalho, contudo, é sólido, rigoroso e circunspeto. Em “Le Cochon”, conta-nos, por exemplo, o episódio de um porco “vagabundo”, que no século XII fez cair do cavalo e morrer o herdeiro do trono, o promissor príncipe Filipe: fim inglório a qualquer nobre e, nesse caso, trágico aos capetíngios e à França3. Pastoureau traz à tona esse evento “esquecido” por sete séculos4, observando que numa caçada ao javali, bem ao contrário, seria uma morte memorável, heroica e digna de um rei.
Poucas décadas depois do acidente fatídico, as cidades européias limitaram ou proibiram a circulação de suínos nas ruas. Muito antes dele, porém, os infortúnios vinham se acumulando: são inúmeras as queixas de imundices e doenças causadas pelo animal, de relatos de ataques a charretes, a jardins e a cemitérios, para desenterrar cadáveres. Alguns porcos chegavam a devorar crianças.
Somente uma vara pôde continuar em liberdade: a que pertencia aos religiosos antonianos; pois essa criação alimentava os indigentes e fornecia banha, tida como benéfica ao tratamento do “fogo de santo Antão”, isto é, aos males da pele, incluindo a lepra. Em Paris, a permissão durou até o século XVI. Na Baviera, até o século XIX.
Há mesmo uma forte ligação entre santo Antão e o porco, retratados juntos por pintores como Bosch e Brueghel. Sua origem derivaria das tentações ao eremita, relatadas por Atanásio, amigo do santo e seu primeiro biógrafo. Nelas o demônio se transmuta em lindas mulheres nuas e animais ferozes, atormentando o pobre Antão no retiro ao deserto.
Atanásio menciona entre as feras o leão, o lobo, o urso, o touro, a víbora e o escorpião: nada de porco. Mas, segundo Pastoureau, “as primeiras imagens ocidentais que trasladam a solidão de Antão do deserto egípcio à floresta europeia inclui progressivamente o javali entre as bestas que tentam atacá-lo. Ao longo dos séculos, essas bestas acabam por se reduzir a duas, o lobo e o javali, dois animais da floresta particularmente perigosos, depois somente a um: o javali. A iconografia toma assim com grande liberdade os textos hagiográficos” (p. 93).
Do javali ao porco, outro pulo: na representação com o santo, o primeiro se transforma pouco a pouco no segundo –mudança simbólica, pois, servo do diabo, o javali precisava ser substituído por um animal de aspecto dócil e protetor. Nessa transformação, para Pastoureau, a ação caridosa dos antonianos pode ter sido crucial e, ainda assim, insuficiente para torná-lo um animal mais portador de aspectos positivos que negativos.
O porco ocupa um lugar notoriamente significativo nas religiões, sobretudo na judaica e na islâmica, onde o seu consumo é enfaticamente vetado. As explicações são várias: o Antigo Testamento repete muitas vezes que o porco se alimenta de sujeiras e excrementos e que sua carne, portanto, é impura; agregam-se as famas da difícil digestão, da transmissão de doenças e do perecimento rápido em climas quentes.
A este último argumento, Pastoureau contrapõe que muitos povos vizinhos aos hebreus (isto é, vivendo sob o mesmo clima) comem normalmente a carne de porco, sem esquecer regiões distantes e quentes que igualmente a apreciam. O historiador acrescenta outro fator, mais uma vez simbólico: “Qualquer sociedade precisa imputar a certos animais proibições de naturezas diversas, notadamente alimentares. Estas participam tanto da vida cotidiana e da sensibilidade mais comum que as populações não as têm em consciência. As sociedades ocidentais contemporâneas, por exemplo, não comem o cão e o gato. Mas quem, na Europa, tem realmente consciência que se trata de uma interdição comparável àquelas que se observam nas sociedades antigas?” (p. 80).
Pastoureau lembra que alguns eruditos relacionam a interdição ao caráter totêmico do javali, emblema de clãs hebreus primitivos. A hipótese, aventada pela antropologia freudiana, caiu em desuso, “notadamente por trasladar à Palestina práticas de culto que concernem sobretudo aos povos ameríndios e da Oceania. Mas há de se reconhecer que certos autores gregos antigos (Plutarco, por exemplo) já se questionavam quanto à proibição do porco entre os hebreus não se relacionar à sua condição sagrada, passada ou presente, a eles” (p. 81).
Dentre as razões apresentadas, Pastoureau se põe ao lado da que lhe parece a mais firme e descomplicada, desenhada no século XIX: “Animal votivo e sacrifical em grande parte do Oriente Médio antigo, o porco havia servido aos rituais idólatras dos cananeus, povo que ocupou a Palestina antes da chegada dos hebreus. Donde a proscrição pela lei de Moisés a um animal de papel importante numa religião concorrente e as práticas de culto combatidas. Para além do despeito aos cananeus, às suas crenças e sábios, não se pode ver na distinção operada pelos hebreus entre o puro e o impuro –distinção ampla e complexa– a vontade de diferenciar-se dos outros povos e mesmo de afirmar sua identidade? Ou ainda, de proclamar-se puro num mundo impuro, ou, numa palavra, de santificar-se? Esta hipótese tem seduzido vários antropólogos contemporâneos” (págs. 81-82).
Há também as justificativas que veem o porco como adequado às culturas sedentárias, em oposição às nômades, mais afeitas à criação de ovinos e caprinos; ou as que recordam da necessidade do porco se refrescar constantemente, isto é, de viver próximo a fontes abundantes de água. Mas Pastoureau alerta ao positivismo contido nessas justificativas, geralmente vistas com reticência por historiadores das sociedades antigas. De todo modo, entre todas as razões, a tese elaborada por Pastoureau é a mais interessante: não se come o porco porque comê-lo seria algo como praticar... canibalismo.
O parentesco entre o homem e o porco vem sendo corroborado pela ciência; se o chimpanzé possui cerca de 97% dos genes humanos, o porco doméstico tem 95%. Desde a antiguidade, a medicina e a anatomia reconhecem na fisionomia interna do porco uma semelhança impressionante à do homem. Outra relação constante ao longo da história aproxima a aparência dos leitões à das crianças, sobretudo aos bebês humanos.
Historicamente, os meninos europeus foram incentivados a pastorear os porcos, enquanto às meninas cabia o pastoreio de gansos e ovelhas, animais tidos como menos violentos que os suínos. Com os povos da América e da Oceania, a relação é ainda mais afetuosa: são célebres as imagens de mães humanas sustentando, num seio, a sua cria, e no outro, um leitão. E, por último, os testemunhos dos que comeram carne humana, da Antiguidade a tempos recentes –como é o famoso caso dos sobreviventes dos Andes, de 1972–, afirmam ser o sabor da carne humana muito parecido ao da carne suína.
O que nos leva de volta a “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, obra curiosamente não mencionada no portentoso e imperdível livro de Pastoureau; talvez porque o filme não utilize porcos, como descreve o enredo de Arthur C. Clarke, mas antas, na versão superior de Stanley Kubrick. Uma vez que são as imagens futuristas de “2001” –representando a alta tecnologia– as mais marteladas na mídia, o homem-macaco acaba ficando ligeiramente em segundo plano. Como ficaria então o quadrúpede arcaico, seja ele anta ou porco, tolo a ponto de se deixar abater por um hominídeo, quase seu igual?

Alex Miyoshi
É arquiteto e professor, doutorando em história da arte no IFCH-Unicamp, onde faz pesquisas sobre arte e arquitetura dos séculos XIX e XX. Edita a "Revista de História da Arte e Arqueologia" na mesma instituição.


1 - A própria etimologia de “cochon”, segundo o autor, “é bastante incerta”. Ele escreve: “Desconhecido no latim e nas línguas germânicas, o termo aparece no francês antigo no final do século 11, sendo corrente no século 13. Mas, até a época de Luis XIV, é usado sobretudo para nomear o porco jovem, e o encontramos principalmente entre falantes setentrionais. Somente a partir do século 18, ele se difunde por todas as regiões da França, tornando-se o termo comum para designar o porco doméstico” (p. 131).


2 - Pastoureau publicou mais de 40 obras (nenhuma delas editada no Brasil), dentre as quais: “Les Animaux Célèbres” (2001), “Le Petit Livre des Couleurs” (2005), “Une Histoire Simbolique du Moyen Âge Occidental” (2004) e “Les Emblèmes de la France” (1998).

3 - O acidente ocorreu no dia 13 de outubro de 1131 e, apenas doze dias depois, “o príncipe Luís, segundo filho do rei Luís VI (o primogênito era Filipe), primitivamente destinado ao estado eclesiástico, é sagrado e coroado rei em Reims, em pleno concílio, pelo papa Inocêncio II. Seis anos depois, ainda que mal preparado ao seu ofício de rei, o mesmo Luís sobe ao trono da França. Seu longo reinado (1137-1180) será marcado por uma série de catástrofes à realeza e à dinastia” (p. 137).

4 - “Será preciso esperar os anos 1880-1900 e a grande ‘Histoire de France’, de Ernest Lavisse, para que esse evento de consequências consideráveis possa, pela primeira vez, sair do silêncio. A história científica e positivista, então em vigor, não irá mais encobrir um porco que foi instrumento de um destino fora do comum” (p. 137).

Revista Trópico

Milagre em Juazeiro


Milagre em Juazeiro
Por Carlos Alberto Dória

Livro revê a história de Padre Cícero e as tensões entre a religiosidade popular e a burocracia do Vaticano


Não é fácil fazer a história de um milagre. À primeira vista parece fruto da fé, mas a Igreja Católica entende que a fé só pode se derramar sobre os milagres estabelecidos oficialmente. Assim, haveria falsos e verdadeiros milagres, sendo a verdade um ditame da igreja. Quem decide é a Inquisição, aquela que cuidava dos hereges com a fogueira, agora chamada Congregação para a Doutrina da Fé.
O milagre ocorrido em Juazeiro do Padre Cícero, no Vale do Cariri, no Ceará, ainda não se concluiu. Foi rechaçado pelo Vaticano, no final do século 19, mas desde 2001 está em curso o processo de sua revisão, patrocinado pelo cardeal Joseph Ratzinger, que entendeu que as romarias a Juazeiro do Norte deveriam ser abertamente incentivadas. Como o cardeal virou papa, é possível que a causa prospere, iniciando-se por um pedido do bispo de Fortaleza à mesma Congregação, visado reabilitar o padre Cícero Romão Batista.
Milagres são coisas simples, fáceis de compreender no seu mistério, ainda que sejam incompreensíveis as razões divinas. No dia 1º de março de 1889, ao ministrar a comunhão à beata Maria de Araújo, a hóstia consagrada pelo padre Cícero transformou-se em sangue de Cristo na boca da beata. O episódio se repetiria por meses a fio, sendo o sangue recolhido pelo padre em paninhos de linho, guardados numa caixa de vidro, posta em adoração do sangue de Cristo.
A partir de então, a pequena cidade de Juazeiro, o sertão como um todo, a igreja brasileira, sofreram verdadeiros abalos sísmicos. Nunca mais o catolicismo brasileiro foi o mesmo.
Mas a revisão do milagre não é a única novidade. De 2003 até hoje surgiram sete novos títulos sobre o caso, sendo “Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de Lira Neto, o último deles. Assim, além da revisão do milagre, está em curso a revisão de interpretação do fenômeno religioso ocorrido no sertão cearense.
Este pode ser entendido como o terceiro ciclo revisionista. O primeiro principiou nos anos 1930, com a publicação de livros a favor e contra o padre, tomando abertamente partido na querela religiosa que se seguiu. O segundo, a partir dos anos 1960, quando os movimentos populares –como o cangaço e os surtos de misticismo– foram objeto de uma nova interpretação sociológica, no bojo da qual surgiu o excelente trabalho do brasilianista Ralph Della Cava, intitulado “Milagre em Joazeiro” (Paz e Terra, 1976). Agora, estamos no terceiro ciclo que, ao que tudo indica, tem como motivação o confronto entre uma Igreja Católica que necessita de respaldo popular e a investida das seitas evangélicas.
De fato, a revisão das punições e da marginalidade do padre Cícero é, agora, de grande conveniência para a igreja. Tanto que o pedido de revisão do caso deu entrada no Vaticano em maio de 2006, respaldado por um abaixo-assinado com 150 mil assinaturas de fiéis e 253 assinaturas de bispos brasileiros.
A igreja havia afirmado no século 19 que “Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil”; agora, parece que só um milagre desse tipo poderá salvar o catolicismo popular da bancarrota prenunciada no avanço evangélico.
O livro de Ralph Della Cava, pioneiro na interpretação moderna, fundamentado em documentos então inéditos e em uma sólida formação como historiador da Igreja Católica, demonstrou como o movimento religioso em torno do padre Cícero correspondeu a um esforço muito grande do clero brasileiro para instituir um “milagre brasileiro” numa época em que milagres “nacionais” já haviam surgido em outros países (como o milagre de Lourdes, ocorrido há 150 anos e reconhecido em 2005 pela igreja; ou, mais tarde, em 1917, o milagre de Fátima).
Mas a demanda por milagres nacionais ocorreu num contexto de extrema defensiva da Igreja Católica, depois da concordata italiana da Santa Sé, a par com o avanço da maçonaria e do protestantismo no mundo. A reação da igreja foi fechar-se sobre si, enrijecer os ritos e os cânones, aumentando o controle do Vaticano sobre todo o corpo da igreja, num processo que Ralph Della Cava denominou “re-romanização” da igreja.
Fazia parte desse processo depurar a instituição da contaminação de práticas do catolicismo popular, até então toleradas pelas igrejas nacionais, até mesmo pela deficiência de quadros sacerdotais.
Assim, criou-se uma tensão enorme entre a cúpula da igreja e o baixo clero, especialmente nos países subdesenvolvidos, onde as massas estiveram longo tempo entregues a um rebanho de pastores claramente comprometidos com as elites dominantes, como coadjuvantes políticos, que nem sequer respeitavam regras, como a obrigatoriedade do celibato.
Movimentos como os de Canudos e Juazeiro devem ser analisados a partir desse contexto. Nele, leigos assumiam funções religiosas (os chamados “beatos”), pregando em igrejas e ministrando sacramentos, criando instituições religiosas autônomas (como casas de caridade e orfanatos) e padres, como Cícero, se contrapunham à hierarquia, justamente por se sentirem mais comprometidos com o seu rebanho do que com a distante multinacional da fé a que estavam afiliados.
A tradição do catolicismo popular no sertão do Ceará vinha de longa data. Foi figura central sua o chamado “Padre Mestre Ibiapina”, um advogado que tarde abraçou o sacerdócio, conseguindo se ordenar no seminário de Olinda e que ficou famoso por percorrer o sertão à pé, mobilizando as comunidades para construírem igrejas, hospitais e casas de caridade onde abrigava meninas órfãs e ministrava educação religiosa.
Esse sacerdócio “pelo exemplo”, que em alguns traços se reconhece também no Conselheiro antes de se estabelecer em Canudos, constituiu grande ameaça ao monopólio da igreja, especialmente porque contrastava com seus quadros corruptos e relapsos aos olhos do povo.
As mulheres formadas nas casas de caridade eram chamadas “beatas” e, assim como os beatos que seguiam o Padre Mestre Ibiapina, constituíam uma verdadeira ordem religiosa popular, à margem da hierarquia da igreja. Por isso, o milagre que ocorreu na boca da beata Maria de Araújo enfrentou, desde logo, a repulsa da hierarquia da igreja, representada por homens “reformados”, imbuídos do espírito combativo e militante para “re-romanizar” a igreja, como o cardeal Arcoverde –o maior opositor do padre Cícero e do que considerava não um milagre, mas um “embuste”.
Uma sequência de equívocos políticos oriundos da tensão entre essas duas ordens –o catolicismo popular e a burocracia vaticanesca–, como a suspensão do direito do padre Cícero de ministrar sacramentos e falar do púlpito da igreja, tornaram-no ainda mais prisioneiro das massas sertanejas, isolado dentro da instituição. O seu isolamento, por sua vez, encaminhou-o para a política, talvez na crença de acumular poderes suficientes para reverter sua situação.
Não foi uma estratégia eficiente, como a história mostrou. Mas isso o fez grande personagem da política cearense e nacional. Guiado por um mentor, Floro Bartolomeu, imiscuiu-se na política da República Velha, seguindo os interesses de Pinheiro Machado no plano nacional.
Fez-se padrinho de metade das crianças sertanejas; tornou-se vice-presidente do Estado (equivalente a vice-governador hoje); envolveu-se numa rebelião que depôs um governador antioligárquico; promoveu um pacto de paz e cooperação política entre coronéis sertanejos; parece ter mobilizado Lampião para perseguir a Coluna Prestes; opôs-se a Getúlio Vargas. Ao morrer, nonagenário, em 1934, o milagre, em sua vida, já parecia uma coisa distante, embora ativa nas praticas religiosas de seus seguidores.
Pois é o realismo da política vaticanesca atual que traz à baila, de novo, essa história conturbada. O livro de Lira Neto faz uma boa reconstrução dessa longa trajetória, dispensando o leitor de recorrer à vasta literatura controversa sobre o “milagre”. Tem ainda o dom de chamar a atenção para os movimentos que a Santa Sé faz para usar esse legado histórico contra o avanço evangélico, tornando-se, assim, um livro de atualidade.
Mas não é fácil interpretar tudo isso de um ponto de vista que permita integrar o “milagre de Juazeiro” na história brasileira, deixando de lado suas dimensões mais propriamente religiosas. Assim como Canudos não se explica pelas idiossincrasias da fé, Juazeiro também não.
Nos anos 1960, o historiador Eric Hobsbawm publicou um de seus livros mais importantes –“Rebeldes Primitivos”–, no qual ensaiava uma interpretação global para movimentos messiânicos, greves anarquistas do final do século 19, banditismo “social” à maneira de Robin Hood, movimentos de “multidões” desorganizadas etc., tomando-os como reações “pré-políticas” a uma velha ordem que desmoronava pelos quatro cantos da terra, sem que uma nova ordem, capitalista e racional, houvesse ainda se firmado. Seriam, então, movimentos rurais, típicos de um período de transição para o capitalismo “maduro”.
Hobsbawm havia se inspirado numa intuição de Antonio Gramsci para a Itália. Movimentos como esses, que Gramsci chamou de movimentos de “classes subalternas”, expressariam uma constante ebulição popular, incapaz de adquirir expressão unificada como se encontra no Estado, na Igreja ou no Partido. Como eventos fugidios que tendiam a não deixar registro forte na história, Gramsci achava da maior importância seu estudo detalhado em monografias.
Mas Gramsci também estabeleceu uma relação interessante entre política e seitas religiosas. Comparando a Rússia czarista e os Estados Unidos, mostrou que, em momentos de compressão política, quando as classes subalternas não têm como expressar seus anseios, prosperam as seitas religiosas; inversamente, em situações mais democráticas, prosperam as instituições políticas e o número de seitas religiosas decai.
Certamente o movimento político-religioso do padre Cícero situa-se, de modo ambíguo, entre essas duas ordens, e o livro de Lira Neto cumpre o papel dessas monografias valiosas para entendê-lo, especialmente quando a política vaticanesca está disposta a rever seu erro histórico no combate a adversários que se tornaram tão poderosos.

O livro:
“Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de Lira Neto. Companhia das Letras, 544 págs.,

Carlos Alberto Dória
É doutor em sociologia, pesquisador-colaborador do IFCH-Unicamp e autor de "Com Unhas, Dentes e Cuca" (em co-autoria com Alex Atala), "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros.

Revista Trópico

Decifração de um país


Decifração de um país
Por Humberto Pereira da Silva

A historiadora Lilia Schwarcz e o sociólogo André Botelho falam sobre o livro “Um Enigma Chamado Brasil”


O Brasil ocupa posição singular na América Latina. Único país colonizado pelos portugueses, com o processo de independência instituiu um regime monárquico nos moldes do da colônia e que sobreviveu por quase 70 anos.
Além disso, a catequização de diversos grupos indígenas com a presença dos jesuítas, os ciclos de riqueza –açúcar, ouro, café–, as dimensões continentais, mantida a fogo e ferro durante o Império, o regime de escravidão, que se manteve até seus estertores, e os fluxos migratórios e imigratórios dão ao país características próprias quando comparado ao restante das nações latino-americanas.
Dadas as características próprias de sua formação histórica, o Brasil se tornou um desafio para diversos pensadores sociais que procuraram compreender seu processo formativo, suas contradições, o sentido de identidade do “povo brasileiro”. Com o intuito de apresentarem um quadro com diversas e discordantes interpretações do Brasil, Lilia Schwarcz, professora de antropologia na Universidade de São Paulo, e André Botelho, professor de sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizaram o livro “Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e um País” (Companhia das Letras.).
Concebido a partir de um grupo de trabalho originário da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), uma das finalidades dos organizadores foi a de preparar um livro com uma linguagem acessível a não especialistas. “Partimos de estudos acadêmicos, mas nosso grande desafio era convencer os colaboradores que precisávamos alcançar um público leitor mais amplo”, diz Lilia.
A seguir, os organizadores discutem a seleção dos “intérpretes do Brasil” que fizeram para o livro e a pertinência das análises desses autores para a compreensão do momento presente do país. Apesar do destaque a interpretações discordantes, ambos sustentam que um ponto de inflexão entre os intérpretes é o acerto de contas com a questão da escravidão.
“Não dá para pensar a formação da sociedade brasileira sem discutir o papel da escravidão e, por conseguinte, da população negra. Diria mais: o fato de o Brasil ainda ser um ‘enigma’ tão mobilizador tem a ver em grande medida com a escravidão e o seu legado”, afirma Botelho.
***
“Um Enigma Chamado Brasil” reúne 29 “interpretações” do Brasil. Numa iniciativa assim, alguns nomes canônicos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., vêm à mente; numa iniciativa assim, também, pode-se pensar igualmente em ausências e “presenças fora do lugar”. No livro, nomes como André Rebouças, Gilda de Melo e Souza e Roberto Schwarz, não teriam tanto a pretensão de “interpretar” o Brasil, mas sim os condicionantes sociais de certo período histórico-cultural?
Lilia Schwarcz: Todos os autores, à sua maneira, são centrais. Dentre os que você cita, Rebouças representou a nascente da intelectualidade negra do Império, com seus anseios de igualdade. Roberto Schwarz é grande intérprete do Brasil. Basta notar, entre outros, sua visão sobre a “originalidade da cópia” ou os descompassos entre escravidão e liberalismo.
Gilda de Melo e Souza apresenta reflexão fundamental e absolutamente original, dentre outros, sobre moda e sua importância num país como o Brasil. Mas a melhor resposta está mesmo nos competentes verbetes de Maria Alice Rezende, Leopoldo Waizbort e Heloisa Pontes. Os autores mostram como existem maneiras diferentes, e igualmente importantes, de interpretar o Brasil. Enfim, são todos autores que a partir de entradas diferentes têm como perspectiva uma interpretação relevante do Brasil.
André Botelho: Uma das constatações do livro que organizamos é que o interesse, e mesmo o empenho, em interpretar o Brasil, de conhecer a sociedade como um todo, persiste após o bem sucedido processo de institucionalização das nossas ciências sociais; ainda que, naturalmente, isso seja feito agora de acordo com os critérios de cientificidade válidos em nosso tempo, o que sem dúvida implica em maior especialização disciplinar do que nas interpretações do passado.
Mas, mesmo quando se trata de um tema à primeira vista mais circunscrito, como a moda ou uma leitura dos romances de Machado de Assis, a visada geral da sociedade que ganhamos é impressionante. Isso tem a ver com a qualidade da abordagem dos autores, é claro, mas também com certas características da própria sociedade brasileira, que não lhes dá sossego ou segurança.
Com alguma provocação eu diria que, mesmo entre os autores dos verbetes, há alguns “intérpretes do Brasil” que poderiam tranquilamente figurar, pela importância e alcance das suas obras, como objetos do livro; e para citar apenas dois deles, penso nos professores Luiz Werneck Vianna e Sergio Miceli, e, sobre este último, aliás, eu mesmo já escrevi nessa chave.

Rui Barbosa, Celso Furtado, Alfredo Bosi, Dante Moreira Leite e Roberto da Matta teriam lugar entre os “interpretes” do Brasil?
Lilia: Eu concordo com você que outros autores poderiam entrar. Celso Furtado, Alfredo Bosi e Roberto da Matta, que você cita, são exemplos gritantes, assim como José Bonifácio. Nós tínhamos uma limitação temporal e pragmática, que era alimentada pelos temas e autores já trabalhados pelo grupo que se reúne na Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
Mas um livro como esse pode ser sempre considerado como uma obra aberta e vir a ser ampliado. Celso Furtado já estava na lista dos faltantes; o Bosi não estava, mas a partir de hoje estará também. Eu e o André (Botelho) estamos anotando todas as sugestões e, se possível, incluiremos novos verbetes, numa outra edição.
Por outro lado, se as pessoas partirem de outras áreas, vão encontrar novos autores fundamentais. Quer dizer, autores que se movimentam a partir da discussão na medicina, do direito, da engenharia e por aí afora. Enfim, essa é obrigatoriamente uma obra infinda, pensada nesses termos. Quem sabe venhamos a animar outras iniciativas nessas mesmas bases.

Mas eu acho que no formato do livro dá para perceber um padrão nas interpretações. O livro revela uma preocupação de situar historicamente a trajetória do intérprete e em fornecer elementos para a compreensão do Brasil.
Lilia: A ideia era um pouco essa. Partimos de estudos acadêmicos, mas nosso grande desafio era convencer os colaboradores que precisávamos alcançar um público leitor mais amplo. Por isso fizemos um livro sem notas, sem tantas referências e contando com uma linguagem mais accessível. A intelectualidade brasileira, de fato, encontra-se mais madura para um tipo trabalho como esse, que se abra para a sociedade em termos mais amplos.
André: Esse, de fato, é um dos desafios centrais para a intelectualidade brasileira do nosso tempo, especialmente para os cientistas sociais. A divulgação científica, entendida como a comunicação entre especialistas e o leitor leigo, é componente crucial não apenas do trabalho intelectual, mas de uma esfera pública democrática.

Qual foi o critério para a seleção das 29 “interpretações” do Brasil?
Lilia: Na verdade o que acontece é que -como está destacado na apresentação do livro- a ideia partiu de um grupo de trabalho, o que é uma raridade. Chama-se Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil e se reúne todo ano na Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). Ele tem se reunido inclusive mais de uma vez por ano.
Vários pesquisadores que colaboraram para a realização do livro já trabalham tradicionalmente com esses autores (Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., para citarmos apenas alguns nomes). Então, uma primeira seleção foi feita de maneira pouco ortodoxa. Ou seja, nós pegamos os trabalhos existentes no grupo, e fizemos uma seleção dessas pesquisas, visando um panorama amplo do pensamento social do e no país.
André: É isso que explica, inclusive, como dizia a Lília antes, a ausência de alguns intérpretes muito importantes nessa primeira edição do livro, o fato de a seleção ter operado num universo predefinido a partir das trajetórias dos pesquisadores ligados a este grupo de trabalho.

No livro há um tema que domina boa parte dos ensaios e mobiliza autores com perfis diversos. Trata-se da presença do negro na formação de uma identidade brasileira. Para vocês o acerto de contas com a questão racial é o problema mais saliente para “decifrar” o “enigma chamado Brasil”?
Lilia: Você tem toda razão; quer dizer, se você perguntar para o André a resposta seria talvez um pouco diferente. Eu penso que a questão racial no Brasil, sobretudo a temática da escravidão e a relação com a população negra, perpassa o pensamento brasileiro muito antes desses autores que nós reunimos.
Já Von Martius, em seu “Como Se Deve Escrever a História do Brasil”, escrito em 1843, colocava a questão do negro –ou melhor da mestiçagem- como um tema fundamental. O estudioso alemão, que fez expedições pelo interior do Brasil sob patrocínio do rei da Baviera, foi o primeiro a salientar a importância de escrever a história do Brasil tendo como elemento básico o caldeamento de raças.
Penso que a questão racial é o limite e a grande contradição para o pensamento social brasileiro em vários momentos da história nacional. Ocorre que o problema acaba sendo fundamental para uma série de autores –ora como elogio, ora como crítica. Se você tomar um autor como Nina Rodrigues, que é o que eu trato no livro, a questão negra é um problema sem metáfora; é um problema de fato para o Brasil, que vai marcar a ausência de futuro: sua degeneração.
Mas, se você tomar autores que guardam uma perspectiva mais culturalista, como Gilberto Freyre, a concepção será totalmente diferente. E aí vamos: de Manoel Bonfim até autores mais recentes, como Roberto Schwarz. A questão racial, especificamente a questão negra, é central para a compreensão desse enigma brasileiro; enigma aí tomado como contradição. Como pensar em modernidade e escravidão? Discriminação e inclusão oficial?
André: Eu concordo vocês. Não dá para pensar a formação da sociedade brasileira sem discutir o papel da escravidão e, por conseguinte, da população negra. Diria mais: o fato do Brasil ainda ser um “enigma” tão mobilizador tem a ver em grande medida com a escravidão e o seu legado. Mas eu não sou especialista no tema, ao contrário da Lília, cujos trabalhos são hoje referencias obrigatórias –recomendo particularmente a leitura do fundamental “O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Brasil: 1870-1930”.
Minha compreensão geral da questão racial também passa pelo tratamento dado a ela por Florestan Fernandes e seus assistentes. Eles mostraram como a não-integração dos ex-escravos à ordem social competitiva após a Abolição, bem como de parcela significativa dos homens livres pobres, constitui um dos indícios mais reveladores da forma conservadora pela qual se processou, entre nós, a modernização capitalista.
Lembro, por exemplo, da tese de Octavio Ianni, apresentada no livro por Elide Rugai Bastos, de que, no contexto da desagregação da ordem social escravocrata, a própria identidade de “negro” ou “mulato”, transfiguração do ex-escravo operada pela ideologia racial então dominante, cristalizou um conjunto de representações sociais que, ao fim e ao cabo, acabaram por mantê-los em situação de submissão na sociedade de classes emergente.

Por que a discussão racial entre nós persiste e gera polêmicas até os dias de hoje? A ponto de, creio, não ter em nosso calendário dia tão envolto em controvérsia como o da Consciência Negra.
Lilia: São questões de ordens diferentes. Eu tenho uma opinião particular sobre elas, que não tem a ver exatamente com o livro. Particularmente sou a favor, mas o dia da Consciência Negra é um dia polêmico porque no Brasil há a experiência de um preconceito silencioso, preconceito de ter preconceito (nos termos de Florestan Fernandes).
André: Entendendo que a complexidade envolvida na questão não permite de forma alguma respostas simples. E por isso não creio também que possa haver uma resposta unívoca para a centralidade da chamada “questão racial” na sociedade brasileira contemporânea. Eu diria, recuperando minha resposta a pergunta anterior, que isso ocorre, em parte, porque as escolhas do passado sempre trazem constrangimentos para as opções do presente.

A se considerar o sertanejo e o indígena como tipos ideais, ou arquétipos, vocês entendem que esses tipos humanos referem-se mais ao passado rural do que ao presente, com o rápido processo de urbanização do Brasil nas últimas décadas?

Revista Trópico

quarta-feira, 28 de abril de 2010

As origens do Primeiro de Maio


As origens do Primeiro de Maio

Professor Ricardo Barros Sayeg

Primeiro de maio é o Dia do Trabalho. No Brasil, assim como em alguns países do mundo, é um feriado nacional. Um dia dedicado a festas, passeatas e reivindicações dos trabalhadores. Mas como ele teria surgido?

Em 1886, na cidade de Chicago, nos Estados Unidos, milhares de trabalhadores foram às ruas reivindicar melhores condições de trabalho. Dentre as principais reivindicações estavam a redução da jornada de trabalho de 13 para oito horas, melhores salários, descanso semanal remunerado e um período anual de férias. Nesse mesmo dia, ocorreu naquele País uma greve geral de trabalhadores. Os conflitos com a polícia se tornaram constantes a partir de então. Oito trabalhadores morreram nessas verdadeiras lutas de rua. Muitos foram presos e alguns foram enforcados em praça pública depois de julgamentos injustos, nos quais foram acusados de liderar as manifestações que tiveram início no dia 1° de maio.

No dia 4 de maio de 1886, novas manifestações tomaram conta das ruas de Chicago. Dessa vez, morreram doze protestantes e dezenas de pessoas ficaram feridas.

A escolha da data de 1° de maio foi feita pela Segunda Internacional Socialista, reunida em Paris, em 1889. Naquela oportunidade, escolheu-se essa data para homenagear os trabalhadores mortos pela repressão policial nos Estados Unidos.

Apesar disso, os Estados Unidos comemoram o Dia do Trabalho na primeira segunda-feira de setembro. Além deste, outros poucos países têm suas datas próprias. Na Austrália comemora-se a data em duas ocasiões: na parte ocidental em 4 de março e na parte meridional em 7 de outubro.

Aqui no Brasil, o primeiro de maio é comemorado desde o ano de 1925, por decreto sancionado pelo então presidente Arthur Bernardes. De lá para cá, a data foi comemorada de diversas formas: em 1940, o presidente Getúlio Vargas utilizou o primeiro de maio para anunciar o novo salário mínimo. Em 1941, a data foi usada para marcar a criação da Justiça do Trabalho, que visava resolver os conflitos existentes entre os trabalhadores e seus patrões. Mas na Bahia, por 55 anos não se comemorou esta data em virtude da natureza contraditória da ocasião: o dia dedicado ao trabalho, é feriado. Só em 1980, Antônio Carlos Magalhães promulgou a data como o dia do descanso em todo o estado da Bahia

Hoje, perdeu-se um pouco do caráter reivindicativo do dia e o primeiro de maio é utilizado mais para as festas realizadas pelas organizações trabalhistas, ocasião em que são sorteados prêmios para os trabalhadores pelas principais centrais sindicais do país. Triste fim para uma data que teve origens tão nobres!

*Ricardo Barros Sayeg é Professor de História do Colégio Paulista, Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, formado em História e Pedagogia pela mesma universidade.


Lilian Nascimento
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Os amores de Napoleão


Os amores de Napoleão
Na marcha sobre o coração da Europa, o último grande imperador do Ocidente conquistou mais do que terra e glória: fez do poder uma arma de sedução. Descubra o general que só suas amantes conheceram

por Lira Neto
A bela e jovem Caroline, de 16 anos, filha de madame Grégoire Colombier, logo notou que aquele soldado baixinho, magricela e de uniforme amarrotado estava caído de amores por ela. Mas, por ser tímido, envergonhado do sotaque estrangeiro e de seu mau francês, ele não tinha coragem de declarar-se abertamente. Resumia-se a acalentar em segredo uma paixão platônica, enquanto os dois colhiam cerejas no pomar da casa de campo da família dela, em Basseaux. Caroline não podia saber, mas o rapaz ousava confessar seus sentimentos apenas para o diário, que mantinha trancado em uma gaveta no quartinho que alugara em Valence, a primeira cidade para onde fora mandado a serviço do exército francês. “Sempre solitário entre os homens, volto para casa, para sonhar na solidão e entregar-me à força de minha melancolia”, escreveu ele. “Na verdade, o que faço neste mundo? Já que terei de morrer, não é mais lógico me matar?”, indagava-se, aos 17 anos, o tenente Napoleão Bonaparte.

Até então, o moço jamais experimentara o calor dos braços de uma mulher. Do primeiro flerte, ainda nos tempos de escola, não guardava boas lembranças. Os colegas de classe não lhe perdoavam as roupas desde sempre desleixadas e, muito menos, os olhares que lançava para a pequena Giacominetta, então sua companhia predileta nos intervalos do colégio. “Napoleone di mezza calceta, fa l’amore a Giacominetta” (numa livre tradução, “Napoleão de meias caídas, é amante de Giacominetta”), tripudiavam os meninos, atiçando a ira do garoto, que respondia atirando-lhes pedras e os palavrões mais cabeludos do idioma corso.

O gato de botas

Napoleão nasceu em Ajácio, na Córsega, em 1769, exatamente quando aquela ilha, situada a oeste da Itália e antes pertencente ao estado genovês, acabara de passar ao domínio francês, após malograda tentativa de independência. “Nasci quando minha pátria estava morrendo”, diria ele mais tarde. Aos 10 anos, o pai o enviou para estudar na França. Lá, teve que aprender a falar o novo idioma e viu-se obrigado a conviver com o povo que passara a dominar sua terra natal. A pele morena e mediterrânea causava estranheza entre os novos colegas. E seu nome, “Napoleone”, soaria para os ouvidos franceses como um irresistível trocadilho, “la-paille-au-nez”, ou seja, “nariz de palha” – o que, é claro, provocava inevitáveis gargalhadas na sala de aula.

Aos 15 anos, o jovem franzino foi admitido como cadete na Escola Militar de Paris, onde se formaria artilheiro em tempo recorde – dez meses, quando o normal seriam três anos. Isso se deveu ao fato de o rapaz ter renunciado às tentações mundanas da cidade e mergulhado com afinco nos estudos do Tratado de Matemática, do professor Bezout, um cartapácio de quatro volumes, cujo conteúdo era a base do exame final para os aspirantes a oficial da artilharia. Resultado: aos 16 anos, Napoleão já envergava o garboso uniforme de tenente do exército francês.

Um tenente de maus modos, sempre com a gravata amarfanhada e cabelos gordurosos, notariam as moçoilas casadoiras de Paris. Além disso, as botas negras e sujas pareciam grandes demais para aquele par de pernas finas e curtas, o que lhe valeria o apelido de “Gato de Botas”, dado por uma jovem amiga, a futura escritora Laure Permon. “Sua pele era amarelada e parecia insalubre, os traços de seu rosto eram angulosos e marcados”, descreveria Permon em suas Memórias. Com tal estampa, não era de se admirar que o jovem oficial ainda não conhecesse os prazeres do amor.

Pelo menos até certa noite de novembro de 1787, quando uma das muitas prostitutas que borboleteavam nas imediações do famoso Palais Royal foi abordada por ele. O rapaz tinha 18 anos, mãos trêmulas e, a muito custo, depois de uma verdadeira sabatina – onde ela nascera, de onde viera, como perdera a virgindade – convidou-a para deitar-se com ele. Para uma profissional do ramo, ficou óbvio que aquele primeiro cliente da noite, tão conversador quando desajeitado, tratava-se de um homem inexperiente. “Eu a aborreci depois, com minha insistência para que não fosse embora”, confessaria o próprio Napoleão, em tom acabrunhado, nas páginas de seu diário.

Gigante em combate

Em pouco tempo, nos salões parisienses, um dos assuntos prediletos era o de como aquele rapazote corso conseguira galgar posições tão rapidamente na hierarquia do exército francês. Em 1789, aos 20 anos, enquanto as massas tomavam as ruas de Paris durante a Revolução Francesa, ele pedira licença da corporação e voltara para sua terra natal. Lá, aproveitara-se da atmosfera libertária que varria todo o país e liderara um movimento que elevou a Córsega, de simples região conquistada, à parte integrante daquela nova França que surgia sob novas cores, o vermelho, azul e branco da bandeira revolucionária. “Foi ali que ele teve, pela primeira vez, a sensação de provocar acontecimentos, de fazer a História. Sensação totalmente nova, que o embriagou”, observa o historiador Max Gallo, autor da mais consagrada biografia de Napoleão.

De volta a Paris, foi promovido a capitão com apenas 23 anos de idade. Um ano depois, após comandar um ataque bem-sucedido às forças britânicas que dominavam o porto de Toulon, no sul da França, ganhou o posto de general-de-brigada. Foi a partir daquele combate que a soldadesca começou a reverenciar-lhe a audácia e a coragem. Contavam, com entusiasmo, sobre como ele ia à frente da tropa, exposto ao fogo inimigo. Mesmo após ter seu cavalo morto em batalha e ser ferido com um golpe de baioneta na coxa, havia continuado a lutar e, com a farda banhada em sangue, incitado seus soldados a seguir adiante.

Hábil estrategista, guerreiro arrojado, aquele homenzinho de cerca de 1,60 m parecia transformar-se, no ardor do combate, em um gigante de mais de três metros de altura. Mesmo assim, diante dos olhares femininos, continuava a sentir-se um anãozinho raquítico. Em um período de dois anos, propôs casamento a pelo menos meia dúzia de mulheres. Todas o rejeitaram. De nada adiantaram as aulas de dança, as lições de postura e os cursos de etiqueta que fez para tentar melhorar seu desempenho social na sofisticada Paris.

Faltava-lhe tato para abordar as eleitas, mesmo as muitos feias ou as muito velhas. A sexagenária madame Montausier, dona de um teatro e de um bordel em Paris, foi uma das que o rechaçou. Outra, a quarentona madame Permon, mãe da jovem Laure Permon, não conseguiu evitar uma gargalhada ao receber a proposta de ser conduzida ao altar pelas mãos de Napoleão, que além da deselegância habitual passara a sofrer também com a sarna, doença adquirida nos campos de batalha de Toulon. “Meu querido, falemos sério. Além do mais, tenho idade suficiente para ser sua mãe”, teria respondido a senhora.

Porém, naquela época, pelo menos uma donzela se apaixonou de verdade pelo general: Bernardine Eugénie Désirée, uma moça de 16 anos, “dona dos mais belos dentes que se pode imaginar”, segundo a descrição do próprio Napoleão. Para a jovem enamorada, talvez ele parecesse tão atraente quanto sua figura apareceria nos cartazes do filme Désirée, o amor de Napoleão, produção norte-americana de 1954, com Marlon Brando no papel de um Bonaparte devidamente fabricado pelas lentes de Hollywood.

Contudo, para desgosto da jovem e enamorada Désirée, o romance não foi além. O pai dela, François Clary, um negociante de sabão, já havia concedido a mão da primeira filha, Julie, a José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão. É verdade que o novo candidato a genro oferecia as credenciais de uma carreira militar em plena ascensão. Mas isso era muito pouco para o pai da garota, que almejava algo mais promissor do que ver outra de suas filhas casada com mais um imigrante. “Já basta um Bonaparte em nossa família”, sentenciou François Clary, insensível ás lágrimas copiosas de Désirée.

No altar com Josefina

Elegante, bem-vestida e com uma aura de voluptuosidade explícita, Josefina de Beauharnais era a viúva de um visconde, morto na guilhotina durante o período mais sangrento da Revolução Francesa. Ao que consta, também já fizera muitos outros homens perderem a cabeça por ela. Entre eles, logo estaria também Napoleão. Para o general corso, casar-se com aquela dama, uma nobre representante do Antigo Regime, significaria um passo a mais na sua gradual inserção na sociedade parisiense. Aliás, já havia evoluído bastante nesse propósito: em 1795, ao ordenar que seus soldados disparassem contra uma multidão durante um levante, caíra nas graças do homem forte do regime, o conde de Barras. Não demorou muito e, com 26 anos, Napoleão foi promovido a comandante geral do Exército do Interior. Em breve, suprimiria o “u” do sobrenome original, Buonaparte, com o objetivo de afrancesar-lhe a pronúncia.

Para a balzaquiana Josefina, pouco importava se o general era seis anos mais novo que ela. Calculou que um casamento com o prestigiado comandante geral poderia significar a garantia de bem-estar para seus dois filhos, Eugène, de 14 anos, e Hortense, de 12. Principalmente naquele instante em que Josefina afundava em dívidas e seu amante declarado, o poderoso conde de Barras, havia trocado-a por outra beldade, Thérésia Tallien, que se tornou célebre por seus relacionamentos amorosos com alguns dos homens mais influentes da França.

Para agrado de Josefina, o antes desleixado Napoleão passara a cuidar da própria aparência, mantendo os cabelos limpos e penteados, as roupas generosamente salpicadas com água de colônia. Em março de 1796, os dois se casaram, tendo o próprio conde de Barras como padrinho. Na certidão, a noiva aproveitou e suprimiu dois anos à própria idade. Napoleão tratou de acrescentar dois à sua. Entretanto, o casal mal teve tempo de aproveitar a lua-de-mel: dois dias depois da cerimônia, Barras enviou o general para uma missão de guerra, à frente do comando de um exército despreparado, para dar combate aos austríacos, no norte da Itália.

Enquanto Josefina permanecia em Paris, esbanjando fortunas em festas e recepções luxuosas, o marido enviava-lhe, diretamente do front, uma carta febril atrás da outra: “Beijo seus seios e mais embaixo, muito mais embaixo”, escrevia Napoleão, enquanto os canhões trovejavam ali perto. A esposa lia as declarações de amor e de desejo, guardava-as no criado mudo e quase nunca as respondia. “Meu marido não me ama. Ele me idolatra. Creio que acabará maluco”, confidenciava ela às amigas e ao novo amante, o capitão Hippolyte Charles, um homem sedutor, de cabelos negros, olhos azuis e que, segundo Josefina, além de experiente nas artes do amor, tinha outra qualidade especial, que também faltaria a Napoleão: ele a fazia sorrir.

A enxaqueca do general

Josefina viu Napoleão regressar à França, em outubro de 1797, na condição de herói nacional. Após um ano de batalhas na campanha da Itália, o estrategista genial fizera os austríacos dobrarem os joelhos em derrotas humilhantes e sucessivas. Em pouco tempo, Napoleão foi encarregado de comandar uma nova e ambiciosa expedição militar, desta vez para o Egito. De lá, pretendia alcançar a Índia, então uma colônia sob o domínio da Inglaterra, a nação mais poderosa entre os históricos inimigos da França.

Mas, para Napoleão, no íntimo, toda a honra conquistada a ferro e fogo na Itália esvaeceu-se bem antes, quando em um dos intervalos da campanha ele constatou que a esposa, Josefina, não o aguardava em Milão, conforme havia combinado. “Depois de quase desmaiar de consternação, o homem que conquistou o norte da Itália caiu doente, com enxaqueca”, conta outro de seus biógrafos, o norte-americano Steven Englund.

Conquistador de exércitos – e de mulheres

No Egito, já consciente das traições de Josefina, Napoleão decidiu que era hora de dar-lhe o troco. Impressionou-se de imediato com a belíssima Pauline Fourès, 20 anos, que se disfarçara de homem para poder acompanhar o marido, um tenente da cavalaria, na campanha do Egito. Sem pudores, Bonaparte simplesmente despachou o tenente para uma outra missão militar e alojou a encantadora Pauline em uma casa bem ao lado do quartel-general. A jovem senhora não resistiu aos assédios do comandante-em-chefe das tropas. “Foi a primeira mulher com quem ele se comportou como dono e senhor”, atesta Max Gallo

O general não fazia nenhuma questão de esconder o romance. Os próprios soldados passaram a tratar Pauline como “a soberana do Oriente”, a “Cleópatra loura do general”. Ela, por sua vez, sabia que nunca teria direito à exclusividade sobre seu amante. Ao mesmo tempo, Napoleão manteve um caso com a filha de um xeique, a egípcia Zenab, que logo depois, quando os franceses deixaram o país após uma série de escarnecidas batalhas, teve a cabeça cortada como represália por sua união com o general inimigo.

A campanha do Egito não repetiu os mesmos êxitos obtidos na Itália. Encabeçando a lista dos maiores revezes, a frota de navios com bandeira francesa foi completamente destruída pelos ataques do almirante inglês Horatio Nelson. Mas, para Napoleão, o pior golpe estava por vir. Repetindo a desfeita anterior, Josefina não cuidou de estar em casa para receber o guerreiro no retorno do campo de batalha. Bonaparte decidiu que o divórcio era a única saída honrosa que lhe cabia.

Desta feita, foi a vez de Josefina cair desmaiada. De joelhos, pediu perdão ao marido, que enfurecido trancou-se no quarto sozinho. Depois de muitas horas de súplica, Napoleão girou a chave na fechadura e deixou-a entrar. Abraçou Josefina e a perdoou. O general implacável, que comandava com pulso firme dezenas de milhares de homens durante os rigores da guerra, capitulou diante das lágrimas de uma mulher.

O harém do imperador

“Minha única paixão, minha única amante, é a França. É com ela que me deito”, proclamava Napoleão. Em breve, isso seria mais do que uma frase de efeito. Com o apoio do povo que o saudava como herói nas ruas, planejou e executou um golpe de estado que o levou ao poder, em 1799. Instituiu o Consulado, triunvirato exercido por ele e mais dois outros aliados de ocasião. Não demorou muito e se impôs no lugar de primeiro cônsul. Estabeleceu uma nova constituição, amordaçou jornais, eliminou potenciais adversários. Para completar, determinou que seu poder passaria a ser vitalício. Em 1804, oficializou o que já era uma realidade: restaurou a monarquia e, aos 35 anos, tornou-se imperador da França. Josefina foi coroada imperatriz.

O todo-poderoso Napoleão passara a ter um verdadeiro harém a seus pés. Ao lado de seu escritório, mandara construir uma alcova em que recebia as mais belas mulheres que seus assessores conseguiam encontrar nos salões da corte. Estas eram introduzidas no recinto com a recomendação de que o esperassem já sob os lençóis, completamente despidas. Além das amantes fortuitas, houve também uma longa lista de casos bem mais intensos. Entre eles, o que manteve com uma famosa atriz de teatro, mademoiselle Georges, a quem apelidou de Georgina. A essa altura, Napoleão não era mais apenas um homem. Transformara-se em um mito. Tanto que, quando o criado do palácio abordou Georgina pela primeira vez, ela ficou chocada, mas logo depois sentiu-se honrada com a proposta de visitar os aposentos íntimos do senhor mais poderoso da Europa, e, por conseqüência, de todo o mundo. “Mas continue a fazer cara de assustada, ele gostará disso”, sugeriu-lhe o criado.

Josefina sabia dos adultérios do marido, mas suportava em silêncio. Permaneceu assim, mesmo quando Napoleão mostrou-se sinceramente apaixonado por uma condessa polonesa de 32 anos, Maria Waleska, que foi encorajada pelos compatriotas – e pelo próprio marido – a seduzir o imperador francês. O objetivo era claro: convencer Napoleão a restituir a independência da Polônia em relação aos russos, austríacos e prussianos, que então dividiam entre si as sobras do antigo reino que havia desaparecido desde 1795. Maria Waleska, em nome da “causa polonesa”, aceitou. Entregou-se a um arrebatado Napoleão, que praticamente a violentou na primeira noite em que dormiram juntos. Nem assim ela reclamou. Pelo contrário, apaixonou-se por ele. Entregou-lhe o corpo. Depois, a alma. Chegaria a dar-lhe um filho. O que a imperatriz Josefina nunca conseguira fazer.

Um divórcio na corte

Até então Napoleão imaginava que a ausência de um herdeiro era decorrente de uma possível esterilidade da parte dele. Com o nascimento do filho bastardo, convenceu-se que poderia, sim, gerar um herdeiro legítimo para seu império. O divórcio, a partir de então, era mesmo inevitável. “Continuo a amá-la. Mas a política não tem coração, só cabeça”, teria dito à esposa durante o último jantar, segundo registraria o barão de Bausset, autor de um livro de memórias sobre o tempo em que foi um bisbilhoteiro administrador do palácio real. “A imperatriz, naquela noite, era a imagem da tristeza e do desespero”, escreveria Bausset, que diz ter testemunhado os gritos lancinantes de Josefina, prostrada em um tapete diante do marido, chorando e gemendo, inconsolável.

Com base em documentos da época, a historiadora francesa Evangeline Bruce, autora de Napoleão e Josefina, espécie de “biografia” da relação amorosa do casal, reconstituiu a última cerimônia pública em que os dois apareceram juntos, na sala do trono. “Com toda a disciplina de ferro da qual era capaz, Josefina estava determinada a ser lembrada para sempre como a mais encantadora, a mais cativante de todas as imperatrizes”, diz Bruce. Diante dos súditos, Napoleão anunciou publicamente a separação.

“Só Deus sabe o que esta resolução custou ao meu coração. Encontrei coragem para isto apenas na convicção de que minha decisão serve aos melhores interesses da França”, explicou ele, solenemente. Josefina, por sua vez, esforçou-se para permanecer firme, mesmo na condição de esposa rejeitada: “Com a permissão de meu querido e augusto marido, ao acatar tal decisão, orgulhosamente ofereço a ele a maior prova de afeto e devoção jamais dada a um homem nessa terra por uma mulher”, disse ela, comovida, antes de entregar o resto de seu discurso de despedidas para que um ajudante-de-ordens terminasse de lê-lo.

O início do fim

Antes mesmo de divorciar-se de Josefina, Napoleão passara a procurar uma noiva de sangue real para dar-lhe um príncipe herdeiro. Encontrou-a na figura da arquiduquesa Maria Luísa, a pouco formosa filha do imperador austríaco, dona de um par de olhos protuberantes, andar desengonçado e lábio proeminente. Napoleão não se importou. “Não é preciso que uma esposa seja uma mulher bonita. Já em relação a uma amante, é o contrário. Uma amante feia é uma monstruosidade. Faltaria a ela seu principal, ou melhor, seu único dever”, havia escrito, anos antes, em uma carta ao irmão José.

A união de Napoleão e Maria Luísa, celebrada em 1810, selaria um armistício entre adversários ferrenhos, Áustria e a França. Um ano depois, nascia François Charles Joseph Bonaparte, a quem por direito deveria caber o título de Napoleão II. A chegada do menino fez Maria Luísa passar a reinar também sobre o coração do marido. “Tenho um filho. Sou um homem feliz”, escreveu Napoleão. Em carta aos parentes da Áustria, ela se mostrava igualmente contente: “Meu amor cresce a cada dia. Quando lembro da ternura que este homem me dedica, mal posso conter as lágrimas”.

Tudo parecia correr bem até que, em 1812, após um desastre militar sem precedentes frente aos russos, Napoleão viu seu idílio – e seu império – começar a ruir. Obrigado a bater em retirada na guerra que empreendera contra as tropas do czar e acossado pelo rigoroso inverno da Rússia, abriu o flanco para que seus inimigos aproveitassem a situação adversa. Em 1813, Inglaterra, Prússia, Rússia e Áustria uniram-se e puseram por terra a hegemonia francesa na Europa. Na Paris sitiada, Maria Luíza foi obrigada a abandonar a cidade. “Impediram-me de encontrá-lo. Disseram que, se preciso, usarão a força para deter-me”, escreveu ela, desesperada, ao marido.

Enfim chegara o dia do guerreiro, até então invencível, provar o sabor amargo da derrota. Para ele, melhor pôr fim à própria vida do que suportar o estigma do fracasso. “A morte não é nada. Mas viver vencido e sem glória é morrer todos os dias”, sempre dissera. Tomou da pena e escreveu uma carta de despedida, antes de ingerir uma dose letal de veneno: “Você é quem eu mais amo no mundo. Minhas desgraças só me pesam pelo mal que fazem a você. Um beijo para nosso reizinho. Adeus, minha querida Luísa”.

O último desejo

Um acesso involuntário de vômito o manteve vivo. Assim, um alquebrado Napoleão foi obrigado a partir para o exílio na ilha de Elba, próxima a sua terra natal, a Córsega. Mais uma vez, não foi permitido que Maria Luísa o acompanhasse. Um ano depois, ele tentou retomar o trono e seus antigos domínios. Durante cerca de 100 dias, ainda conseguiu manter seu objetivo. Chegou a invadir a Bélgica, mas foi derrotado por uma aliança anglo-prussiana na célebre batalha de Waterloo, em 1815. Forçado a abdicar pela segunda vez, amargou novo e definitivo exílio em Santa Helena, uma ilhota inóspita, quase perdida no meio do Atlântico.

Napoleão, que nascera em uma ilha, morreria naquela outra, em 5 de maio de 1821. Aos 52 anos, o velho general estava doente, obeso e deprimido. Como um de seus últimos pedidos, solicitou que, antes de lhe descerem à sepultura, durante a autópsia, arrancassem-lhe o coração e o enviassem a Maria Luísa. No entanto, o administrador de Santa Helena, sir Hudson Lowe, não permitiu que o desejo do moribundo fosse cumprido. As ordens eram as de que Napoleão Bonaparte – vivo ou morto, o corpo inteiro ou qualquer parte dele – jamais deixasse a ilha.

Maria Luísa não recebeu o coração do marido. Em vez disso, tratou de preencher o próprio. Ao saber da morte de Napoleão, casou-se em segredo com o ajudante-de-ordens Adam Albert Graf von Neipperg, seu amante austríaco.

Vidas paralelas
Acompanhe, ao longo dos anos, a trajetória de Napoleão
Privado

1769

Nascimento filho de Maria Letizia Ramolino Buonaparte

1786

Apaixona-se por Caroline Colombier

1789

Perde virgindade com uma prostituta

1794

O pai de Bernardine Desirée proibe a filha de casar com Napoleão

1795

Durante o período de um ano fez 6 propostas de casamento todas recusadas

1796

Casamento com Josefina

1798

Seduz Pauline Fourés, esposa de um tenente, e Zenab filha de um xeique egípcio

1800

Romance com a soprano Giusseppina Grassini

1803

Casos com Mademoiselle Duchesnois sei lá quem é ela é com Mademoiselle George

1806

Nasce León, suposto filho com Eleonore D.

1807

Conhece Maria Waleska

1809

Divorcia-se de Josefina

1810

Casa com Maria Luísa da Áustria

1810

Nasce Alexander Walewski

1811

Nasce o herdeiro François Charles Bonaparte

1818

Envolvimento com Albine Helene

1818

Nasce a filha legítima Josephine

1821

Morte Câncer é a causa mais provável

Público

1784

Escola Militar forma-se na artilharia em tempo recorde

1789

Revolução Francesa torna-se herói na Córsega

1793

Cerco de Toulon derrota ingleses e vira general

1795

Rebelião de Vendéia sufoca revolta na França

1796

Campanha da Itália lidera a vitória sobre a Áustria

1798

Campanha do Egito derrota diante dos ingleses

1799

Gope de Estado em que se torna cônsul frânces

1800

Batalha de Marengo (ver página 32)

1802

É nomeado cônsul vitalício

1804

Proclama-se Imperador da França

1805

Batalhas de Trafalgar e Austerlitz

1806

Bloqueio Continental tentar isolar a Grã-Bretanha

1807

Batalha de Eylan na Polônia

1809

Guerra na Áustria derrota os rivais outra vez

1812

Guerra na Rússia, trágica retirada sob a neve

1813

Batalha das Nações tropas franceses são derrotadas

1814

Emilio em Elba o general prepara a volta

1815

Exílio em Santa Helena

1815

Batalha de Waterloo


Saiba mais
Livros

Uma História dos Povos Árabes, Albert Hourani, Companhia das Letras, 1994

Vasto e elegante panorama sobre o mundo árabe, de antes de Maomé até os conflitos mais recentes.

O Islã, Karen Armstrong, Objetiva, 2001

Resumo da história do islamismo, revela como os movimentos extremistas surgiram em reação ao domínio colonial do Ocidente.

O Que Deu Errado no Oriente Médio?, Bernard Lewis, Jorge Zahar, 2002

O polêmico historiador vai em busca das causas da decadência do poder do mundo islâmico diante da emergência das potências européias.


Rebentos napoleônicos
O imperador teve um bocado de filhos - nem todos assumidos
Oficialmente, o pequeno François Charles Joseph Bonaparte foi o único filho de Napoleão. Herdeiro do trono francês, ele tinha apenas 4 anos quando, em 1815, o pai foi forçado a abdicar definitivamente. O garoto foi criado na corte de Viena, onde receberia o título de duque de Reichstadt. Morreu tuberculoso, aos 21 anos. Mas a descendência do imperador não se extinguiria com ele. Napoleão reconheceu a paternidade de três filhos bastardos. O mais célebre, Alexander Walewski, filho da polonesa Maria Waleska, nasceu em 1810 – na França, tornaria-se diplomata, ministro e senador. Quatro anos antes, Eléonore Denuelle, dama de companhia de uma das irmãs de Napoleão, dera à luz um menino que era a cara do general. Eléonore chegou a pedir permissão para dar à criança o nome do pai (“Napoleón”, na versão francesa). Para disfarçar, a criança foi batizada apenas de León. Já no exílio em Santa Helena, Napoleão envolveu-se com Albine Hélêne, esposa de um dos poucos serviçais que teve direito de levar para a ilha. Em 1819, em meio a uma crise de depressão, Albine deixou Santa Helena levando uma menina de 1 ano chamada Josephine, que Napoleão admitiria como sua filha. Além dos três bastardos assumidos, haveria pelo menos mais meia dúzia de filhos não reconhecidos por Napoleão. Em 1922, foram publicadas as memórias de Emilie de Pellapra, que se dizia filha do lendário general. Não é algo assim tão improvável: a mãe de Emilie era listada pelo próprio Napoleão como parte de seu rol de amantes.

1º de Uma Coleção de 4 Histórias - Batalhas Napoleônicas
Virada em Marengo
Fabiano Onça
Travada em 14 de junho de 1800, enquanto França e Áustria disputavam o norte da atual Itália, a batalha de Marengo tinha tudo para ser uma fragorosa derrota para Napoleão. O general havia espalhado seu exército, esperando que o inimigo recuasse. Mas Michael von Melas, comandante austríaco, partiu para o ataque: foi com as suas tropas de encontro aos franceses, pegando-os de surpresa pela manhã. Quando Napoleão percebeu que tinha todo o exército inimigo diante de si, despachou mensageiros para o general Desaix, que havia sido mandado no dia anterior com duas divisões para tentar flanquear os austríacos.

Por volta de 14h, prevendo uma vitória fácil, Melas entregou o comando ao major-general Zach e partiu para Viena – ia receber as congratulações pela conquista. O inexperiente Zach, entretanto, posicionou seus batalhões numa grande fileira. Napoleão juntou sua artilharia e varreu os austríacos. O golpe decisivo veio com Desaix. Ele não tinha recebido mensagem alguma, mas, de manhã, ordenara meia-volta ao ouvir o som de canhões ao longe. Com os austríacos fragilizados pelo bombardeio, Desaix liderou o contra-ataque. O general Kellerman e sua cavalaria pesada terminaram o serviço. No dia seguinte, o general Melas assinou a Convenção de Alexandria, em que a Áustria aceitou se retirar do território italiano.

1. Quando as divisões francesas, quase sem munição, iniciam a retirada, as tropas de Desaix reforçam o centro, interrompendo a investida austríaca.

2. Especialista em artilharia, Napoleão dá ordens para alinhar os canhões e atacar as colunas austríacas, que marchavam todas juntas. Enquanto isso, Desaix comanda o contra-ataque pelo centro.

3. A cavalaria pesada de Kellerman investe de surpresa pela ala esquerda dos austríacos, desbarata a formação inimiga e liquida a batalha.

Reforços
Para ir além da batalha
Lâmina milionária

Em 10 de junho, o sabre utilizado por Napoleão em Marengo foi arrebatado num leilão na França. Custou nada menos que 4,8 milhões de euros – preço recorde para uma arma. O proprietário, cujo nome não foi divulgado, é um membro da família de Napoleão. Decorado com símbolos da Roma imperial, o sabre tem lâmina curva, inspirada nas eficientes armas orientais.

A morte do salvador

Aos 32 anos, Louis Charles Antoine Desaix era um homem de confiança de Napoleão. Havia se distinguido como líder militar durante a campanha do Egito, em 1798. Em Marengo, sua decisão de voltar para ajudar Napoleão mesmo sem ter recebido ordens o transformou em herói. O preço que pagou, entretanto, foi alto: enquanto atacava os austríacos, Desaix foi atingido por um tiro e morreu. No segundo aniversário da batalha, Napoleão inaugurou uma fonte em homenagem a Desaix na Place Dauphine, em Paris.

Homens-tanque

A cavalaria pesada do general Kellerman, que agiu no fim da batalha, era composta pela nata dos cavaleiros franceses. Protegidos por uma placa de metal em volta do torso e um capacete, os “couraceiros” eram capazes de quebrar as mais vigorosas linhas inimigas. Seu armamento principal era uma longa espada. O secundário eram pistolas e, às vezes, uma carabina.

Revista Aventuras na História