Immanuel Kant: A razão do Universo
Há dois séculos e meio, o filósofo ImmanuelKant resolveu escrever sobre astronomia. O livroque ele então produziu ainda é a base do nosso conhecimento sobre a formação do sistema solar
por Othon Winter e Thierry Gil-Chanut
Quem conhece o pensador alemão Immanuel Kant, que viveu entre 1724 e 1804, sabe que ele foi um dos maiores filósofos de todos os tempos. Autor de livros como Crítica da Razão Pura, ele influenciou decisivamente o pensamento ocidental em áreas como a ética e a estética. O que pouca gente sabe é que ele também foi inovador na astronomia. Em 1755, Kant escreveu História Geral da Natureza e Teoria do Céu, obra em que introduz princípios que até hoje são a base das teorias sobre a formação dos planetas e do sistema solar.
Nascido em Königsberg, na Prússia (hoje Kalinigrado, na Rússia), Kant foi um expoente do Iluminismo. Esse movimento intelectual, que se desenvolveu na Europa dos séculos 17 e 18, valorizava o uso da razão como ferramenta para conhecer o mundo. Foi nesse período que se consolidaram os alicerces de várias áreas do pensamento científico moderno, como a astronomia. Desde a Grécia antiga, acreditava-se que o Universo girava em torno da Terra. O primeiro passo para mudar essa concepção foi dado pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico. Em 1543, ele publicou um livro no qual dizia que nosso planeta se movia em volta do Sol. No século seguinte, o italiano Galileu Galilei provou que Copérnico estava certo. Com uma luneta, ele identificou luas girando em torno de Júpiter e mostrou, de uma vez por todas, que havia corpos celestes que não orbitavam em volta da Terra.
Os enigmas do Universo atraíam a curiosidade do jovem Kant, que começou sua carreira acadêmica como professor de Matemática e Física. A obra do inglês Isaac Newton, fundamental para essas duas áreas, era uma de suas principais influências. Isso fica claro no subtítulo de História Geral da Natureza e Teoria do Céu, que é: “Ensaio sobre a contribuição e a origem mecânica do Universo na sua totalidade, tratada de acordo com os Princípios de Newton”.
O cientista britânico merecia mesmo ser citado por Kant. Ao publicar Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, em 1687, Newton lançou as bases da física contemporânea. É nesse livro que ele introduz a célebre Lei de Atração Gravitacional. Na época era uma novidade, mas hoje todo mundo pode aprender isso no colégio: entre dois corpos existe uma força de atração que aumenta conforme a massa de ambos e diminui conforme o quadrado da distância entre eles. Partindo desse princípio, Newton mostrava que era possível explicar o movimento dos astros.
Naquela época, só seis planetas do sistema solar eram conhecidos: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno (o sétimo planeta, Urano, foi descoberto em 1781). Newton sabia que os planetas tinham órbitas quase circulares ao redor do Sol e ficavam aproximadamente no mesmo plano. O problema era saber como isso tudo teria surgido. Sem encontrar uma explicação científica, Newton disse que isso só poderia ser obra de Deus (veja quadro na página 56). Até o século 17, era comum pensar que a natureza era invariável. Na visão de Newton, depois de terem sido criados, os planetas continuariam se movendo do mesmo jeito eternamente.
Kant rompe com o paradigma anterior e propõe que a configuração do sistema solar não teria sido sempre igual, mas sim o resultado de um processo de evolução. A partir das leis da mecânica newtoniana, ele deduz como teria sido a formação dos corpos siderais e a origem de seus movimentos, desde o início. Das três partes de História Geral da Natureza e Teoria do Céu, duas tratam da formação do sistema solar. Na primeira, após fazer um breve resumo da teoria de Newton, Kant descreve sua visão do Universo. Segundo ele, “as estrelas fixas não estão espalhadas desordenadamente como um formigueiro disperso sem ordem aparente, mas sim como um sistema muito parecido com o dos planetas”. O alemão argumenta que, assim como os planetas do sistema solar, as estrelas também se distribuem ao longo de um só plano, a Via Láctea.
Alguns anos antes da publicação do livro de Kant, o matemático francês Pierre-Louis de Maupertuis havia identificado “nebulosas elípticas”, estrelas muito grandes que, por girarem muito rápido, teriam forma achatada. Em seu livro, Kant discordou, dizendo que essas nebulosas eram, na verdade, imensos conjuntos de estrelas, todas distribuídas ao longo de um mesmo plano. Se elas assumiam a forma de um disco, seria só por causa do ângulo em que podem ser observadas da Terra. Mais tarde, quando essas idéias foram aceitas, passou-se a utilizar o nome “galáxia” para todos os enormes agrupamentos de estrelas fora da Via Láctea (a galáxia onde fica nosso planeta).
Do menor para o maior, Kant propõe que o Universo é formado por estruturas que se repetem. Os planetas possuem satélites orbitando ao seu redor, mas eles próprios também giram em volta de estrelas, formando sistemas planetários. As estrelas, por sua vez, giram em torno de um centro comum, formando as galáxias. Kant chega a propor que inclusive as galáxias também se moveriam ao redor de algum ponto. Essa idéia de que existe uma infinidade de sistemas de mundos é hoje conhecida como “Hipótese dos Universos Ilhas” e continua sendo aceita para descrever o espaço.
Na segunda parte do livro, para explicar a origem dos sistemas planetários, Kant supõe que, no início, a matéria que forma os corpos celestes estaria decomposta e distribuída por todo o espaço, num estado que “parece ser o mais simples que possa existir, depois do nada”. A partir do caos primitivo, a gravidade faria com que as partículas atraíssem umas às outras. Em torno dos pontos mais densos teria havido uma concentração maior de matéria, dando origem a corpos de diferentes massas e tamanhos que se tornariam, assim, estrelas.
O processo de atração gravitacional não pára, fazendo com que partículas continuem sendo atraídas para as estrelas. Mas isso não aconteceria sempre. Para Kant, uma força repulsiva faria com que algumas partículas, ao chegar perto das estrelas, desviassem e passassem a orbitar à sua volta, formando um grande “disco” de matéria. O mesmo processo do início voltaria a acontecer: os pontos mais densos do disco atrairiam partículas, crescendo e se transformando em planetas, que continuariam girando em torno da estrela. Os satélites surgiriam do mesmo jeito, a partir de discos de matéria formados ao redor dos planetas.
A tal força repulsiva imaginada por Kant não existe. Mas uma parte significativa da hipótese dos discos de matéria foi comprovada. Em 1983, os astrônomos americanos Bradford Smith e Richard Terrile descobriram um disco de poeira girando ao redor da jovem estrela Beta Pictoris. Mais recentemente, o telescópio espacial Hubble detectou vários discos de matéria circundando estrelas. Para que a teoria de Kant se confirme, os cientistas precisam achar protoplanetas – embriões de planetas em formação – imersos nesses discos.
No início, as teorias de formação planetária possuíam apenas um exemplo concreto no qual se basear: o Sistema Solar. Nos últimos 15 anos, entretanto, foram detectados mais de 100 planetas girando ao redor de outras estrelas, formando sistemas muito diferentes entre si. Com esse aumento do conhecimento astronômico, surgiram vários modelos de formação planetária. A teoria de Kant, embora tenha sido ajustada cientificamente nos últimos 250 anos, ainda é a idéia básica de todos eles.
Apesar da sua importância atual, o livro de Kant passou despercebido na sua época. O motivo é prosaico: a gráfica que o publicou foi à falência logo após a sua publicação, sendo que ainda não havia feito a distribuição dos exemplares. Poucas cópias da primeira edição do livro circularam. Kant chegou a incluir parte de suas idéias em outros textos, mas nada tão sofisticado quanto o original. Só no fim do século 19 foi publicada uma segunda edição da obra. Mas, em 1796, o francês Pierre Simon de Laplace propôs uma teoria semelhante à kantiana para explicar a origem do sistema solar. Seria um plágio? Improvável. Aparentemente, os dois abordaram o mesmo problema de maneira equivalente – o que é comum ocorrer na ciência. Hoje as idéias de ambos são conhecidas como Teoria de Kant-Laplace.
Deus tem lugar no céu?
Os pensadores modernos demorarampara deixar a religião de lado nahora de estudar o espaço
Como seria possível a existência e um sistema solar tão perfeito? No fim do século 17, em busca de uma resposta para essa pergunta, o gênio das ciências exatas Isaac Newton não titubeou: “Essa admirável disposição do Sol, dos planetas e dos cometas não pode ser mais que a obra de um ser onipotente e inteligente”, escreveu ele em Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Já no século 18, Immanuel Kant avançou bastante na explicação da origem dos planetas, mas não descartou totalmente a intervenção divina na história. Segundo ele, no princípio de tudo, Deus teria criado um espaço infinito preenchido com matéria. Em seguida, teria escolhido uma região do Universo a partir da qual esse caos primitivo teria começado a se organizar, graças à ação de forças criadas pelo próprio todo-poderoso (a gravidade, por exemplo). De acordo com a argumentação de Kant, um universo inteiro jamais seria capaz de surgir a partir do nada – como o filósofo alemão não aceitava o acaso como explicação, tudo dependia da tutela divina. Foi só na virada para o século 19 que Pierre Laplace apareceu com uma teoria de formação do Universo totalmente científica, em apelar para a religião. Era uma inovação e tanto, que acabou causando alguns problemas ao cientista. Há relatos de que, certa vez, um livro escrito por ele caiu nas mãos de Napoleão Bonaparte, imperador da França. Intrigado por não ter encontrado nenhuma vez a palavra “Deus” na obra, o governante exigiu explicações. A resposta de Laplace a Napoleão foi curta e grossa: “Senhor, eu não tive necessidade dessa hipótese”.
Saiba mais
Livro
Histoire Générale de la Nature et Théorie du Ciel, Immanuel Kant, Vrin, 2000 (edição francesa)
Revista Aventuras na História
Nenhum comentário:
Postar um comentário