Decifração de um país
Por Humberto Pereira da Silva
A historiadora Lilia Schwarcz e o sociólogo André Botelho falam sobre o livro “Um Enigma Chamado Brasil”
O Brasil ocupa posição singular na América Latina. Único país colonizado pelos portugueses, com o processo de independência instituiu um regime monárquico nos moldes do da colônia e que sobreviveu por quase 70 anos.
Além disso, a catequização de diversos grupos indígenas com a presença dos jesuítas, os ciclos de riqueza –açúcar, ouro, café–, as dimensões continentais, mantida a fogo e ferro durante o Império, o regime de escravidão, que se manteve até seus estertores, e os fluxos migratórios e imigratórios dão ao país características próprias quando comparado ao restante das nações latino-americanas.
Dadas as características próprias de sua formação histórica, o Brasil se tornou um desafio para diversos pensadores sociais que procuraram compreender seu processo formativo, suas contradições, o sentido de identidade do “povo brasileiro”. Com o intuito de apresentarem um quadro com diversas e discordantes interpretações do Brasil, Lilia Schwarcz, professora de antropologia na Universidade de São Paulo, e André Botelho, professor de sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizaram o livro “Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e um País” (Companhia das Letras.).
Concebido a partir de um grupo de trabalho originário da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), uma das finalidades dos organizadores foi a de preparar um livro com uma linguagem acessível a não especialistas. “Partimos de estudos acadêmicos, mas nosso grande desafio era convencer os colaboradores que precisávamos alcançar um público leitor mais amplo”, diz Lilia.
A seguir, os organizadores discutem a seleção dos “intérpretes do Brasil” que fizeram para o livro e a pertinência das análises desses autores para a compreensão do momento presente do país. Apesar do destaque a interpretações discordantes, ambos sustentam que um ponto de inflexão entre os intérpretes é o acerto de contas com a questão da escravidão.
“Não dá para pensar a formação da sociedade brasileira sem discutir o papel da escravidão e, por conseguinte, da população negra. Diria mais: o fato de o Brasil ainda ser um ‘enigma’ tão mobilizador tem a ver em grande medida com a escravidão e o seu legado”, afirma Botelho.
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“Um Enigma Chamado Brasil” reúne 29 “interpretações” do Brasil. Numa iniciativa assim, alguns nomes canônicos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., vêm à mente; numa iniciativa assim, também, pode-se pensar igualmente em ausências e “presenças fora do lugar”. No livro, nomes como André Rebouças, Gilda de Melo e Souza e Roberto Schwarz, não teriam tanto a pretensão de “interpretar” o Brasil, mas sim os condicionantes sociais de certo período histórico-cultural?
Lilia Schwarcz: Todos os autores, à sua maneira, são centrais. Dentre os que você cita, Rebouças representou a nascente da intelectualidade negra do Império, com seus anseios de igualdade. Roberto Schwarz é grande intérprete do Brasil. Basta notar, entre outros, sua visão sobre a “originalidade da cópia” ou os descompassos entre escravidão e liberalismo.
Gilda de Melo e Souza apresenta reflexão fundamental e absolutamente original, dentre outros, sobre moda e sua importância num país como o Brasil. Mas a melhor resposta está mesmo nos competentes verbetes de Maria Alice Rezende, Leopoldo Waizbort e Heloisa Pontes. Os autores mostram como existem maneiras diferentes, e igualmente importantes, de interpretar o Brasil. Enfim, são todos autores que a partir de entradas diferentes têm como perspectiva uma interpretação relevante do Brasil.
André Botelho: Uma das constatações do livro que organizamos é que o interesse, e mesmo o empenho, em interpretar o Brasil, de conhecer a sociedade como um todo, persiste após o bem sucedido processo de institucionalização das nossas ciências sociais; ainda que, naturalmente, isso seja feito agora de acordo com os critérios de cientificidade válidos em nosso tempo, o que sem dúvida implica em maior especialização disciplinar do que nas interpretações do passado.
Mas, mesmo quando se trata de um tema à primeira vista mais circunscrito, como a moda ou uma leitura dos romances de Machado de Assis, a visada geral da sociedade que ganhamos é impressionante. Isso tem a ver com a qualidade da abordagem dos autores, é claro, mas também com certas características da própria sociedade brasileira, que não lhes dá sossego ou segurança.
Com alguma provocação eu diria que, mesmo entre os autores dos verbetes, há alguns “intérpretes do Brasil” que poderiam tranquilamente figurar, pela importância e alcance das suas obras, como objetos do livro; e para citar apenas dois deles, penso nos professores Luiz Werneck Vianna e Sergio Miceli, e, sobre este último, aliás, eu mesmo já escrevi nessa chave.
Rui Barbosa, Celso Furtado, Alfredo Bosi, Dante Moreira Leite e Roberto da Matta teriam lugar entre os “interpretes” do Brasil?
Lilia: Eu concordo com você que outros autores poderiam entrar. Celso Furtado, Alfredo Bosi e Roberto da Matta, que você cita, são exemplos gritantes, assim como José Bonifácio. Nós tínhamos uma limitação temporal e pragmática, que era alimentada pelos temas e autores já trabalhados pelo grupo que se reúne na Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
Mas um livro como esse pode ser sempre considerado como uma obra aberta e vir a ser ampliado. Celso Furtado já estava na lista dos faltantes; o Bosi não estava, mas a partir de hoje estará também. Eu e o André (Botelho) estamos anotando todas as sugestões e, se possível, incluiremos novos verbetes, numa outra edição.
Por outro lado, se as pessoas partirem de outras áreas, vão encontrar novos autores fundamentais. Quer dizer, autores que se movimentam a partir da discussão na medicina, do direito, da engenharia e por aí afora. Enfim, essa é obrigatoriamente uma obra infinda, pensada nesses termos. Quem sabe venhamos a animar outras iniciativas nessas mesmas bases.
Mas eu acho que no formato do livro dá para perceber um padrão nas interpretações. O livro revela uma preocupação de situar historicamente a trajetória do intérprete e em fornecer elementos para a compreensão do Brasil.
Lilia: A ideia era um pouco essa. Partimos de estudos acadêmicos, mas nosso grande desafio era convencer os colaboradores que precisávamos alcançar um público leitor mais amplo. Por isso fizemos um livro sem notas, sem tantas referências e contando com uma linguagem mais accessível. A intelectualidade brasileira, de fato, encontra-se mais madura para um tipo trabalho como esse, que se abra para a sociedade em termos mais amplos.
André: Esse, de fato, é um dos desafios centrais para a intelectualidade brasileira do nosso tempo, especialmente para os cientistas sociais. A divulgação científica, entendida como a comunicação entre especialistas e o leitor leigo, é componente crucial não apenas do trabalho intelectual, mas de uma esfera pública democrática.
Qual foi o critério para a seleção das 29 “interpretações” do Brasil?
Lilia: Na verdade o que acontece é que -como está destacado na apresentação do livro- a ideia partiu de um grupo de trabalho, o que é uma raridade. Chama-se Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil e se reúne todo ano na Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). Ele tem se reunido inclusive mais de uma vez por ano.
Vários pesquisadores que colaboraram para a realização do livro já trabalham tradicionalmente com esses autores (Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., para citarmos apenas alguns nomes). Então, uma primeira seleção foi feita de maneira pouco ortodoxa. Ou seja, nós pegamos os trabalhos existentes no grupo, e fizemos uma seleção dessas pesquisas, visando um panorama amplo do pensamento social do e no país.
André: É isso que explica, inclusive, como dizia a Lília antes, a ausência de alguns intérpretes muito importantes nessa primeira edição do livro, o fato de a seleção ter operado num universo predefinido a partir das trajetórias dos pesquisadores ligados a este grupo de trabalho.
No livro há um tema que domina boa parte dos ensaios e mobiliza autores com perfis diversos. Trata-se da presença do negro na formação de uma identidade brasileira. Para vocês o acerto de contas com a questão racial é o problema mais saliente para “decifrar” o “enigma chamado Brasil”?
Lilia: Você tem toda razão; quer dizer, se você perguntar para o André a resposta seria talvez um pouco diferente. Eu penso que a questão racial no Brasil, sobretudo a temática da escravidão e a relação com a população negra, perpassa o pensamento brasileiro muito antes desses autores que nós reunimos.
Já Von Martius, em seu “Como Se Deve Escrever a História do Brasil”, escrito em 1843, colocava a questão do negro –ou melhor da mestiçagem- como um tema fundamental. O estudioso alemão, que fez expedições pelo interior do Brasil sob patrocínio do rei da Baviera, foi o primeiro a salientar a importância de escrever a história do Brasil tendo como elemento básico o caldeamento de raças.
Penso que a questão racial é o limite e a grande contradição para o pensamento social brasileiro em vários momentos da história nacional. Ocorre que o problema acaba sendo fundamental para uma série de autores –ora como elogio, ora como crítica. Se você tomar um autor como Nina Rodrigues, que é o que eu trato no livro, a questão negra é um problema sem metáfora; é um problema de fato para o Brasil, que vai marcar a ausência de futuro: sua degeneração.
Mas, se você tomar autores que guardam uma perspectiva mais culturalista, como Gilberto Freyre, a concepção será totalmente diferente. E aí vamos: de Manoel Bonfim até autores mais recentes, como Roberto Schwarz. A questão racial, especificamente a questão negra, é central para a compreensão desse enigma brasileiro; enigma aí tomado como contradição. Como pensar em modernidade e escravidão? Discriminação e inclusão oficial?
André: Eu concordo vocês. Não dá para pensar a formação da sociedade brasileira sem discutir o papel da escravidão e, por conseguinte, da população negra. Diria mais: o fato do Brasil ainda ser um “enigma” tão mobilizador tem a ver em grande medida com a escravidão e o seu legado. Mas eu não sou especialista no tema, ao contrário da Lília, cujos trabalhos são hoje referencias obrigatórias –recomendo particularmente a leitura do fundamental “O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Brasil: 1870-1930”.
Minha compreensão geral da questão racial também passa pelo tratamento dado a ela por Florestan Fernandes e seus assistentes. Eles mostraram como a não-integração dos ex-escravos à ordem social competitiva após a Abolição, bem como de parcela significativa dos homens livres pobres, constitui um dos indícios mais reveladores da forma conservadora pela qual se processou, entre nós, a modernização capitalista.
Lembro, por exemplo, da tese de Octavio Ianni, apresentada no livro por Elide Rugai Bastos, de que, no contexto da desagregação da ordem social escravocrata, a própria identidade de “negro” ou “mulato”, transfiguração do ex-escravo operada pela ideologia racial então dominante, cristalizou um conjunto de representações sociais que, ao fim e ao cabo, acabaram por mantê-los em situação de submissão na sociedade de classes emergente.
Por que a discussão racial entre nós persiste e gera polêmicas até os dias de hoje? A ponto de, creio, não ter em nosso calendário dia tão envolto em controvérsia como o da Consciência Negra.
Lilia: São questões de ordens diferentes. Eu tenho uma opinião particular sobre elas, que não tem a ver exatamente com o livro. Particularmente sou a favor, mas o dia da Consciência Negra é um dia polêmico porque no Brasil há a experiência de um preconceito silencioso, preconceito de ter preconceito (nos termos de Florestan Fernandes).
André: Entendendo que a complexidade envolvida na questão não permite de forma alguma respostas simples. E por isso não creio também que possa haver uma resposta unívoca para a centralidade da chamada “questão racial” na sociedade brasileira contemporânea. Eu diria, recuperando minha resposta a pergunta anterior, que isso ocorre, em parte, porque as escolhas do passado sempre trazem constrangimentos para as opções do presente.
A se considerar o sertanejo e o indígena como tipos ideais, ou arquétipos, vocês entendem que esses tipos humanos referem-se mais ao passado rural do que ao presente, com o rápido processo de urbanização do Brasil nas últimas décadas?
Revista Trópico
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