Milagre em Juazeiro
Por Carlos Alberto Dória
Livro revê a história de Padre Cícero e as tensões entre a religiosidade popular e a burocracia do Vaticano
Não é fácil fazer a história de um milagre. À primeira vista parece fruto da fé, mas a Igreja Católica entende que a fé só pode se derramar sobre os milagres estabelecidos oficialmente. Assim, haveria falsos e verdadeiros milagres, sendo a verdade um ditame da igreja. Quem decide é a Inquisição, aquela que cuidava dos hereges com a fogueira, agora chamada Congregação para a Doutrina da Fé.
O milagre ocorrido em Juazeiro do Padre Cícero, no Vale do Cariri, no Ceará, ainda não se concluiu. Foi rechaçado pelo Vaticano, no final do século 19, mas desde 2001 está em curso o processo de sua revisão, patrocinado pelo cardeal Joseph Ratzinger, que entendeu que as romarias a Juazeiro do Norte deveriam ser abertamente incentivadas. Como o cardeal virou papa, é possível que a causa prospere, iniciando-se por um pedido do bispo de Fortaleza à mesma Congregação, visado reabilitar o padre Cícero Romão Batista.
Milagres são coisas simples, fáceis de compreender no seu mistério, ainda que sejam incompreensíveis as razões divinas. No dia 1º de março de 1889, ao ministrar a comunhão à beata Maria de Araújo, a hóstia consagrada pelo padre Cícero transformou-se em sangue de Cristo na boca da beata. O episódio se repetiria por meses a fio, sendo o sangue recolhido pelo padre em paninhos de linho, guardados numa caixa de vidro, posta em adoração do sangue de Cristo.
A partir de então, a pequena cidade de Juazeiro, o sertão como um todo, a igreja brasileira, sofreram verdadeiros abalos sísmicos. Nunca mais o catolicismo brasileiro foi o mesmo.
Mas a revisão do milagre não é a única novidade. De 2003 até hoje surgiram sete novos títulos sobre o caso, sendo “Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de Lira Neto, o último deles. Assim, além da revisão do milagre, está em curso a revisão de interpretação do fenômeno religioso ocorrido no sertão cearense.
Este pode ser entendido como o terceiro ciclo revisionista. O primeiro principiou nos anos 1930, com a publicação de livros a favor e contra o padre, tomando abertamente partido na querela religiosa que se seguiu. O segundo, a partir dos anos 1960, quando os movimentos populares –como o cangaço e os surtos de misticismo– foram objeto de uma nova interpretação sociológica, no bojo da qual surgiu o excelente trabalho do brasilianista Ralph Della Cava, intitulado “Milagre em Joazeiro” (Paz e Terra, 1976). Agora, estamos no terceiro ciclo que, ao que tudo indica, tem como motivação o confronto entre uma Igreja Católica que necessita de respaldo popular e a investida das seitas evangélicas.
De fato, a revisão das punições e da marginalidade do padre Cícero é, agora, de grande conveniência para a igreja. Tanto que o pedido de revisão do caso deu entrada no Vaticano em maio de 2006, respaldado por um abaixo-assinado com 150 mil assinaturas de fiéis e 253 assinaturas de bispos brasileiros.
A igreja havia afirmado no século 19 que “Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil”; agora, parece que só um milagre desse tipo poderá salvar o catolicismo popular da bancarrota prenunciada no avanço evangélico.
O livro de Ralph Della Cava, pioneiro na interpretação moderna, fundamentado em documentos então inéditos e em uma sólida formação como historiador da Igreja Católica, demonstrou como o movimento religioso em torno do padre Cícero correspondeu a um esforço muito grande do clero brasileiro para instituir um “milagre brasileiro” numa época em que milagres “nacionais” já haviam surgido em outros países (como o milagre de Lourdes, ocorrido há 150 anos e reconhecido em 2005 pela igreja; ou, mais tarde, em 1917, o milagre de Fátima).
Mas a demanda por milagres nacionais ocorreu num contexto de extrema defensiva da Igreja Católica, depois da concordata italiana da Santa Sé, a par com o avanço da maçonaria e do protestantismo no mundo. A reação da igreja foi fechar-se sobre si, enrijecer os ritos e os cânones, aumentando o controle do Vaticano sobre todo o corpo da igreja, num processo que Ralph Della Cava denominou “re-romanização” da igreja.
Fazia parte desse processo depurar a instituição da contaminação de práticas do catolicismo popular, até então toleradas pelas igrejas nacionais, até mesmo pela deficiência de quadros sacerdotais.
Assim, criou-se uma tensão enorme entre a cúpula da igreja e o baixo clero, especialmente nos países subdesenvolvidos, onde as massas estiveram longo tempo entregues a um rebanho de pastores claramente comprometidos com as elites dominantes, como coadjuvantes políticos, que nem sequer respeitavam regras, como a obrigatoriedade do celibato.
Movimentos como os de Canudos e Juazeiro devem ser analisados a partir desse contexto. Nele, leigos assumiam funções religiosas (os chamados “beatos”), pregando em igrejas e ministrando sacramentos, criando instituições religiosas autônomas (como casas de caridade e orfanatos) e padres, como Cícero, se contrapunham à hierarquia, justamente por se sentirem mais comprometidos com o seu rebanho do que com a distante multinacional da fé a que estavam afiliados.
A tradição do catolicismo popular no sertão do Ceará vinha de longa data. Foi figura central sua o chamado “Padre Mestre Ibiapina”, um advogado que tarde abraçou o sacerdócio, conseguindo se ordenar no seminário de Olinda e que ficou famoso por percorrer o sertão à pé, mobilizando as comunidades para construírem igrejas, hospitais e casas de caridade onde abrigava meninas órfãs e ministrava educação religiosa.
Esse sacerdócio “pelo exemplo”, que em alguns traços se reconhece também no Conselheiro antes de se estabelecer em Canudos, constituiu grande ameaça ao monopólio da igreja, especialmente porque contrastava com seus quadros corruptos e relapsos aos olhos do povo.
As mulheres formadas nas casas de caridade eram chamadas “beatas” e, assim como os beatos que seguiam o Padre Mestre Ibiapina, constituíam uma verdadeira ordem religiosa popular, à margem da hierarquia da igreja. Por isso, o milagre que ocorreu na boca da beata Maria de Araújo enfrentou, desde logo, a repulsa da hierarquia da igreja, representada por homens “reformados”, imbuídos do espírito combativo e militante para “re-romanizar” a igreja, como o cardeal Arcoverde –o maior opositor do padre Cícero e do que considerava não um milagre, mas um “embuste”.
Uma sequência de equívocos políticos oriundos da tensão entre essas duas ordens –o catolicismo popular e a burocracia vaticanesca–, como a suspensão do direito do padre Cícero de ministrar sacramentos e falar do púlpito da igreja, tornaram-no ainda mais prisioneiro das massas sertanejas, isolado dentro da instituição. O seu isolamento, por sua vez, encaminhou-o para a política, talvez na crença de acumular poderes suficientes para reverter sua situação.
Não foi uma estratégia eficiente, como a história mostrou. Mas isso o fez grande personagem da política cearense e nacional. Guiado por um mentor, Floro Bartolomeu, imiscuiu-se na política da República Velha, seguindo os interesses de Pinheiro Machado no plano nacional.
Fez-se padrinho de metade das crianças sertanejas; tornou-se vice-presidente do Estado (equivalente a vice-governador hoje); envolveu-se numa rebelião que depôs um governador antioligárquico; promoveu um pacto de paz e cooperação política entre coronéis sertanejos; parece ter mobilizado Lampião para perseguir a Coluna Prestes; opôs-se a Getúlio Vargas. Ao morrer, nonagenário, em 1934, o milagre, em sua vida, já parecia uma coisa distante, embora ativa nas praticas religiosas de seus seguidores.
Pois é o realismo da política vaticanesca atual que traz à baila, de novo, essa história conturbada. O livro de Lira Neto faz uma boa reconstrução dessa longa trajetória, dispensando o leitor de recorrer à vasta literatura controversa sobre o “milagre”. Tem ainda o dom de chamar a atenção para os movimentos que a Santa Sé faz para usar esse legado histórico contra o avanço evangélico, tornando-se, assim, um livro de atualidade.
Mas não é fácil interpretar tudo isso de um ponto de vista que permita integrar o “milagre de Juazeiro” na história brasileira, deixando de lado suas dimensões mais propriamente religiosas. Assim como Canudos não se explica pelas idiossincrasias da fé, Juazeiro também não.
Nos anos 1960, o historiador Eric Hobsbawm publicou um de seus livros mais importantes –“Rebeldes Primitivos”–, no qual ensaiava uma interpretação global para movimentos messiânicos, greves anarquistas do final do século 19, banditismo “social” à maneira de Robin Hood, movimentos de “multidões” desorganizadas etc., tomando-os como reações “pré-políticas” a uma velha ordem que desmoronava pelos quatro cantos da terra, sem que uma nova ordem, capitalista e racional, houvesse ainda se firmado. Seriam, então, movimentos rurais, típicos de um período de transição para o capitalismo “maduro”.
Hobsbawm havia se inspirado numa intuição de Antonio Gramsci para a Itália. Movimentos como esses, que Gramsci chamou de movimentos de “classes subalternas”, expressariam uma constante ebulição popular, incapaz de adquirir expressão unificada como se encontra no Estado, na Igreja ou no Partido. Como eventos fugidios que tendiam a não deixar registro forte na história, Gramsci achava da maior importância seu estudo detalhado em monografias.
Mas Gramsci também estabeleceu uma relação interessante entre política e seitas religiosas. Comparando a Rússia czarista e os Estados Unidos, mostrou que, em momentos de compressão política, quando as classes subalternas não têm como expressar seus anseios, prosperam as seitas religiosas; inversamente, em situações mais democráticas, prosperam as instituições políticas e o número de seitas religiosas decai.
Certamente o movimento político-religioso do padre Cícero situa-se, de modo ambíguo, entre essas duas ordens, e o livro de Lira Neto cumpre o papel dessas monografias valiosas para entendê-lo, especialmente quando a política vaticanesca está disposta a rever seu erro histórico no combate a adversários que se tornaram tão poderosos.
O livro:
“Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de Lira Neto. Companhia das Letras, 544 págs.,
Carlos Alberto Dória
É doutor em sociologia, pesquisador-colaborador do IFCH-Unicamp e autor de "Com Unhas, Dentes e Cuca" (em co-autoria com Alex Atala), "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros.
Revista Trópico
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