INDIVIDUALISMO DO DIREITO
Obrigações não menos expressas, ou seja, ideias morais, somavam-se a essas evidências, fosse para impô-las melhor, fosse para tentar dourá-las (quando, por exemplo, os administrados citavam como modelo a virtude privada da "doçura" de que o governador dera provas); todo mundo julgava os outros lembrando-lhes seus deveres públicos e privados. "A tirania da opinião — e que opinião! — é tão tola nas cidadezinhas da França como nos Estados Unidos", escrevia o individualista Stendhal, pensando no puritanismo americano de sua época. O civismo pagão, pois, teria sido não menos inquisidor das vidas privadas?
E no entanto Roma, a mãe do direito pelo que se diz, deveria ser um Estado em conformidade com o direito, no qual ninguém seria obrigado a fazer o que a lei não prescreve e no qual a justiça pública substituiria o arbitrário. Ademais, o direito romano pode ser qualificado de individualista: a liberdade de divórcio é igual para os dois sexos, a propriedade pode ser livremente alienada, a liberdade do testador é muito ampla; não se impõe nenhuma crença religiosa, a cidade e cada indivíduo têm seus deuses favoritos, o braço secular deixa aos [pág. 150]
Deuses — se o podem — o cuidado de vingar as injúrias que lhes são feitas, e o respeito devido aos deuses que a cidade escolheu venerar limita-se à observância dos feriados; o direito de mudar de domicílio e de atividade econômica é incontestado. Acrescentemos que uma divertida indulgência em relação aos pecados sexuais, mesmo femininos, fora erigida em doutrina pelo próprio Senado. No entanto, também é verdadeiro, como observa Bleicken, que tacitamente esse liberalismo não faz senão "decorrer de um sentimento aristocrático da vida privada" e que Roma, não mais do que a Grécia, jamais garantiu de modo formal a liberdade em seu direito; este se considerava antes como o estabelecimento dos deveres piedosos para com as relações da casa, obrigações de fidelidade, responsabilidades patrimoniais e diferenças de legislação pessoal.
"Privado" em oposição a "público" é um dos adjetivos mais empregados da língua latina, porém não delimita positivamente a vida privada; seu sentido é negativo: qualifica o que um indivíduo pode fazer sem atentar contra seus deveres e suas atitudes de homem revestido de uma função pública; não erige um santuário no interior do direito privado, que não se sentia obrigados a respeitar o que respeitava de fato. Mera nuança formal, explicável pelos acasos históricos (nossas liberdades e direitos de homem nasceram de uma revolta contra o soberano)? Bem dúvida, porém essa ausência de garantia deixava a porta liberta a todos os perigos; semelhantes a tempestades, estes fizeram intrusões momentâneas, das quais a mais sangrenta foi a perseguição dos cristãos ou dos maniqueus.
A que se acrescentam, sob certos imperadores e por obra sua, pressões de ordem moral. Em princípio os soberanos romanos, diferentemente de seus homólogos chineses e japoneses, não tinham o que Maurice Pinguet chama de "o velho hábito confuciano de medir o poder proporcionalmente à ordem moral". Alguns, porém — Augusto, Domiciano, os Severo ou Constantino —, quiseram corrigir os costumes por meio de derreto; Augusto tomou medidas severas, ao menos na aparência, Contra o adultério da mulher; Domiciano obrigou os amantes a [pág. 151]
regularizarem sua união, mandou enterrar viva uma vestal que falhara em seu voto de castidade e proibiu aos poetas satíricos o uso de termos obscenos; os Severo fizeram do adultério do marido um delito e do aborto um crime contra o esposo e a pátria; a legislação de Constantino substitui por um rigorismo mais popular que verdadeiramente cristão o velho laxismo aristocrático… Esse moralismo era uma coisa muito particular: no mundo greco-romano, um legislador podia tentar revolucionar a sociedade por decreto; as leis nem sempre tinham a prudência de não se atrasar muito nem avançar demais com relação aos costumes. Pois a cidade era considerada não como um efeito de forças naturais de sociabilidade, mas, antes, como uma instituição nascida da lei e que se degradaria se o legislador não lhe desse sustentação contra forças naturais inimigas; o cidadão era um aluno preguiçoso que só respeita a disciplina sob a palmatória do mestre. Assim também as crises de ordem moral tinham como objetivo principal provar a todos que o imperador reinante era um senhor, pois, não contente de fazer reinar a ordem pública, que os vícios privados não ameaçavam absolutamente, pretendia governar a consciência moral de cada um; depois que cada cidadão se compenetrava de tal ideia, a lei revolucionária deixava de ser aplicada e era esquecida no reinado seguinte. Somente a de Constantino se manteria e marcaria a Idade Média.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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