Entrevista com os organizadores da Sosaci em defesa do patrimônio nacional
Entrevista concedida a Alexandre Bandeira
Qual é a origem do Saci?
Márcia Camargos: Como é um mito, você não explica cientificamente. Há algumas especulações. O folclorista Câmara Cascudo tem alguns trabalhos publicados sobre o Saci-pererê. O próprio Monteiro Lobato fez esse inquérito. Hoje, alguns estudiosos da USP também escreveram sobre essa questão. Não há uma coisa rígida. A grosso modo, o que se conta é que ele tem origem tupi guarani, surgiu há mais de 200 anos na zona fronteiriça com o Paraguai., e nem era só brasileiro. Ele habitava aquela área na fronteira e foi penetrando o território brasileiro, na viagem rumo ao Norte, em contato com os escravos. Acabou sendo apropriado pelos negros onde ganhou as feições africanas. Ele era moreno, índio e duas pernas. Ele ganhou as feições africanas como o cachimbo do preto velho e perdeu a perna. Algumas explicações: uma para representar que o homem em cativeiro não é um ser íntegro. Ele é de alguma forma mutilado. Mas mesmo assim ele resiste, enfrenta, joga capoeira... O Saci, apesar de não ter uma perna, é ágil, veloz e você só consegue o capturar através da mágica. Outra teoria é que ele foi pego numa armadilha, e como um animal ferido, que muitas vezes corta, rói, morde, o saci decepa o próprio membro para continuar livre. Ele preferiu a liberdade que preza acima de tudo.
Isso não seria uma referência literal de maus-tratos de senhores de engenho?
Wladimir Sacchetta: Sim. Os senhores de engenho de fato mutilavam, torturavam, a história do escravismo que nós temos hoje é muito amenizada. O escravismo era muito mais cruel. Você pega a Revista ilustrada editada por Ângelo Agostini, no século 19, onde ele desenha cenas da escravidão, negros sendo mutilados com óleo quente, enfiados no forno, esquartejados, puxados por um cavalo... Na representação da iconografia que você tem como legado desse período, você vê um negro amarrado num tronco, um castigo público e só. Mas, a coisa era muito pior. Era diabólica.
M: Podia haver uma ou outra exceção, senhores de engenho menos cruéis. Mas era aquela coisa de se julgar um animal, pior que um animal. Agora o importante é que o saci, como símbolo de resistência, ele não se abate. Ele continua ágil, continua enfrentando, jogando capoeira. Então, tem essa coisa da capoeira é a agilidade do saci. Ele ganha o gorrinho vermelho, o barrete frígio, que é o símbolo da liberdade, que vem da Roma Antiga. Ou o pileo.
Mas o barrete só se torna símbolo da liberdade na Revolução Francesa.
M: Não, na Roma Antiga, quando um escravo ganhava um barrete vermelho, que era uma cor sagrada, ele era um homem livre. Aí os revolucionários buscam esse símbolo na Roma Antiga. A partir da Revolução Francesa ele foi adotado por todos os partidos republicanos, se você pegar o símbolo do partido republicano paulista é um barrete frígio. O saci é símbolo de liberdade e resistência.
Quem operaria essas mudanças no mito?
W: Não tem como identificar. Isso começa a aparecer na segunda metade do século 19 para frente e vai aumentar muito no começo do século 20, porque ele vai permear a literatura.
M: Inclusive infantil, quando Monteiro Lobato faz o inquérito e escreve Pedrinho e o Saci.
Mas os 200 anos que o Saci teria não vêm pelo registro escrito.
M: Vem da tradição oral.
W: Ele vai aparecer, um mito de abrangência nacional, é um dos poucos mitos que você tem no Brasil todo. Claro que ele muda daqui para a região Norte adquirindo formas diferentes.
Existe mais de um tipo de Saci?
M: Existe. Eles falam que tem o Trique, um moreninho, brincalhão; depois o Saçurá, de olhos vermelhos; e o Pererê, que é o que nós conhecemos. E na região amazônica ele se confunde com a ave matita-perê, que todos guardam em comum a questão da defesa da natureza. O Saci é um mito que já pensava em questões ecológicas antes do conceito se colocar como tal. Contemporâneo.
Então por que o confronto direto com a data do Halloween?
W: “A ação faz a guerrilha”, diz o saci Carlos Marighella. Então a coisa cresceu muito. Um dado interessante foi no ano passado, quando uma rede de escolas de inglês, a Red Baloon, aqui em São Paulo, pediu uma consultoria a nós. Queriam deixar de fazer a festa do Halloween e transformar na Brazilian Folk. Não iam tirar as bruxas completamente, mas junto com as bruxas estaria o nosso saci. Escolhemos a data por uma questão estratégica. Pra colocar a nu essa mania de imitar. Se você vem com um mito celta que os irlandeses levam para os Estados Unidos...
M: Aí os Estados Unidos transformam em suco, vira um produto de consumo de massa.
W: Aí isso vai se conformando numa festa do dia das bruxas. Aí você vê supermercados, lojas, shopping centers, carregados de bruxas.
O Brasil poderia tropicalizar Halloween?
W: Tropicalizar? Pra quê? A gente precisa que o saci tenha o seu espaço. Temos mitos suficientes, interessantíssimos e não precisamos do Halloween.
Revista Raiz
Nenhum comentário:
Postar um comentário