ALGUMAS DENOMINAÇÕES precisam de muita cautela para serem usadas, na medida em que, sem esse cuidado, podem ser empregadas para encobrir a realidade em lugar de desvelá-la, além de poderem se transformar em instrumento de hierarquização e discriminação entre pessoas, objetos, atos. É esse o caso dos termos arte popular e arte erudita. Um leigo, ou mesmo a visão capitalista, podem dissociar os trabalhos intelectual e manual, vinculados respectivamente à elite e ao povo. Daí fica subentendido que a produção popular pertence ao campo do irracional ou simplesmente do executar sem se preocupar com qualquer elaboração.
É inegável que essa é uma classificação um tanto quanto discriminatória, pois confina as criações populares num gueto, resultando em reserva de mercado para a produção de origem erudita, dirigida geralmente à camada social dominante. Para discutir a oposição entre o erudito e o popular nas artes plásticas, vale a pena lembrar que, em seu conceito "Teoria tradicional e teoria crítica", os pensadores Theodor Adorno e Max Horkheimer defendem, em 1947, que a arte não deveria ser massificada, pois era feita e destinada à elite. Portanto, a dupla de pensadores da Escola de Frankfurt defendia que, se o povo não tem acesso à arte, não pode criá-la nem julgá-la. Para eles, Van Gogh não deveria virar figurinha. Já para o pensador Walter Benjamim, da mesma escola, "rompendo o envoltório da arte, põe os homens, qualquer homem, o homem de massa, em posição de usá-las e gozá-las". Vê-se que o caso está calcado em como a arte deve ou não ser introduzida na sociedade. Se nem nesse momento se chegou a uma resposta de por que a arte popular não deve ser negada e sim inserida, quem ousa dizer que, independentemente da raiz, ela é sim a cultura de um povo – explorada cada uma à sua maneira: simples ou rebuscada, e sempre espontânea. Como as obras do cearense Hélio Melo, que estarão expostas na 27° Bienal Internacional de Artes de São Paulo, em outubro, marcando a volta da arte popular ao salão nobre.
Os preços das pinturas do artista acreano aumentaram significativamente desde sua suposta “descoberta”. Responsável pela seleção dos trabalhos de Melo, o curador do bloco Acre José Roca acredita que a valorização econômica de suas obras é inevitável. “É possível que esse interesse se estenda a outros artistas acreanos como, por exemplo, Ivan Campos”, arrisca o curador. Por que, em geral, a arte popular não é tão valorizada quanto a erudita? Enumerar motivos, elencar razões e hipóteses que respondam sem maiores problemas a diferença, sem ser a clássica "um tem estudo, o outro não", é a atual discussão. Mal se entra no assunto, no entanto, percebe-se sua complexidade. De saída, nos vemos às voltas com a nomeação dos termos dessa equação. Arte popular, primitiva, ingênua (ou naïf) e artesanato. Para o leigo, muitas vezes essas palavras são vistas como sinônimos. Para quem busca aprofundarse no tema, no entanto, fica evidente que são coisas distintas. Muito embora nem sempre se chegue a um acordo sobre o uso de cada um dos termos. Para o marchand Roberto Rugiero, especializado em arte popular e dono da galeria Brasiliana em São Paulo, o que é chamado de arte ingênua é, na verdade, um engodo. “Ela é feita por artistas que fazem uma espécie de imitação da verdadeira arte popular e que não têm interesse artístico”. A antropóloga Ângela Macelani, diretora do Museu do Pontal no Rio de Janeiro – voltado para a produção popular –, defende que o termo naïf geralmente refere-se a pinturas, enquanto o popular está mais ligado à produção de objetos tridimensionais. Seja como for, seria, no mínimo, politicamente incorreto, hoje, designar a produção popular de ingênua. Afinal, o fato de esses artistas normalmente não terem uma educação formal não faz necessariamente com que eles tenham uma visão ingênua do mundo.
Em relação ao termo primitivo, é plausível afirmar que já traz consigo a idéia de que a história da arte pode ser representada como uma caminhada rumo ao progresso. A posição mais evoluída é ocupada pela arte de hoje, contemporânea, e os artistas primitivos estariam no começo dessa linha, em uma posição menos evoluída. Nada mais contestado pelas atuais teorias da arte do que essa idéia de evolução. Por se tratar de um produto cultural, ao nos referirmos às artes popular e erudita, “não é possível afirmar que uma seja melhor do que a outra”, de acordo com o crítico de arte Olívio Tavares Araújo. O termo artesanato, e nisso os especialistas parecem concordar, não é sinônimo de arte popular. Normalmente, ele é associado a objetos utilitários, confeccionados um a um, manualmente, por uma pessoa que domina aquele processo. Ângela pormenoriza a diferença dizendo que o artista popular surge no campo do trabalho artesanal, mas não se confunde com ele. Na opinião da antropóloga, “o bom mesmo seria se a arte popular fosse chamada apenas de arte, pois o recorte popular é um recorte socioeconô- mico” e, portanto, não diz respeito a critérios artísticos. Quando se fala em “popular” – e não apenas na esfera da cultura –, usualmente se associa o termo às camadas pobres e sem formação cultural. Há quem defenda, como Rugiero, que a arte popular é a arte dos pobres. Mas como explicar que artistas de origem pobre desenvolvam trabalhos no campo da dita arte erudita? Exemplos como esses não faltam, como Alfredo Volpi, que foi pintor de parede. Para mencionar um caso internacional, temos o norte-americano Robert Ryman que, sem formação em artes visuais, começou a pintar quando trabalhava como vigia do Museu de Arte Moderna de Nova York.
Como os critérios de formação e origem social do artista não parecem suficientes, o marchand Giuseppe Baccaro, que vive em Olinda, um dos grandes pólos de arte popular, acredita que essa arte é rural e interiorana. Sua base conceitual são as lendas e as tradições regionais e utiliza materiais disponíveis no local como barro, madeira, entre outros. Em oposição, para o marchand, a arte erudita teria mais a ver com o contexto urbano. A afirmação é, no mínimo, questionável.
O FATO É QUE A ARTE POPULAR já desempenhou um papel mais central no circuito artístico. Nos primórdios do modernismo, era comum o interesse de artistas por uma arte que não carregasse os vícios da academia. Não raro os artistas colecionavam máscaras de tribos africanas, viajavam em busca de novidades e incorporavam em seus trabalhos essas influências. Os museus passaram a ter salas destinadas a esses artistas e grandes mostras de arte popular eram freqüentes. Na 6ª Bienal Internacional de São Paulo, realizada em 1961, com a curadoria de Mário Pedrosa, a arte popular romena convivia com a obra contemporânea do artista cinético brasileiro Abraham Palatnik. O que aconteceu desde então? Hoje, o valor de mercado da arte popular é muito mais baixo que o da contemporânea, e é fato que ela desapareceu das Bienais de São Paulo desde meados da década de 1980 e não consta no currículo dos principais cursos universitários de artes visuais do Brasil. Para Rugiero, a saída de cena da arte popular está relacionada a uma postura esnobe. “As pessoas acham que alguém que não tem estudo não está preparado para virar um artista.” Segundo ele, as portas fechadas da mídia e o fato de os críticos não entenderem de arte popular também têm sua parcela de contribuição. “Os críticos que defendiam uma idéia de identidade nacional dentro da cultura desapareceram”, afirma.
De fato, o interesse pela arte popular sempre esteve ligado à busca pelo exótico e por características regionais, que em tempos de globalização cultural parece não mais fazer sentido. “Hoje, no mundo da comunicação imediata, a arte erudita se tornou homogênea. É a mesma coisa em todo lugar. Até 1800, cada país tinha sua própria arte, ligada à sua história e suas raízes”, defende Baccaro. Mas a arte popular também sofre com a globalização. “Com a imigração para as cidades, pode-se dizer até que ela está acabando. Mas ainda é possível, na origem, encontrar artistas autênticos”, afirma o marchand. O fato de a arte popular não ser comercializada a preços elevados, do ponto de vista mercadológico, não é visto negativamente por Rugiero. Ele acredita que sua valorização está relacionada à forte representação histórica e social. “É justamente isso que está forçando a entrada dela no mercado”, avalia. E comemora a notícia de que uma obra da artista Mirian Inês da Silva, conhecida no meio artístico apenas como Mirian, foi vendida num leilão por 15 mil reais. Um recorde, segundo o marchand.
NÃO SÃO APENAS MUITOS CRÍTICOS e especialistas que defendem que a manifestação popular nas artes plásticas merece menos respeito do que a erudita. Para o artista popular Antonio Poteiro, que vive em Goiânia, “a valorização da arte varia conforme o currículo e a idade do artista: quanto mais velho, mais valorizado. Mas se você está falando que a outra arte é mais valorizada, eu acho que está certo, pois a pintura moderna tem que ter escola, educação, nós fazemos uma pintura mais livre”. A única certeza nesse debate é que fica cada vez mais patente a dificuldade das categorizações. As fronteiras entre o erudito e o popular estão cada vez mais tênues. Muitos artistas contemporâneos utilizam elementos da arte popular em sua linguagem. Que o diga o paraense Marcone Moreira, vencedor da Bolsa Pampulha (voltada a artistas contemporâneos emergentes pelo Museu de Arte da Pampulha). “Eu não fiz uma graduação em arte, mas fiz cursos livres. Não me coloco como autodidata, acho isso muito difícil hoje. Algumas vezes fui situado como um cara meio isolado, fora do eixo tradicional de arte contemporânea, mas é preciso desmistificar”, posiciona-se. Moreira conta que sempre teve acesso à informação e que em Marabá (cidade em que vive) também há poluição, trânsito e os mesmos problemas e impasses sociais que o resto do Brasil enfrenta. “Eu acho que só vendo o trabalho do artista é que podemos falar se ele dialoga com a contemporaneidade. Conheço artistas populares que, como eu, têm uma linguagem contemporânea”, pondera. Para José Roca, a introdução de um artista como Hélio Melo na Bienal não quer dizer, obrigatoriamente, que a arte popular esteja em voga.
“Uma andorinha só não faz verão”, diz. Para ele, encarar a presença das obras do artista como indicativo de uma nova tendência nacional ou de uma abertura na Bienal parece excessivo. Seria apenas um esboço de abertura na concepção de um evento desse porte de ir além dos centros habituais de produção artística. Não apenas do resto do mundo, mas também do Brasil.
A escolha do Acre, um estado que não tem tradição na arte contemporânea, como um dos eixos da 27ª Bienal de São Paulo coloca em pauta a discussão sobre as fronteiras que separam a produção popular da contemporânea na arte. O artista em voga é Hélio Melo (1926-2001), nascido num seringal acreano e retratista da natureza amazônica em suas obras. Doutora em filosofia pela USP, Lisette Lagnado é a curadora da mostra, que contará com obras de Melo, um dos destaques da exposição. Com a escolha das obras do artista acreano, a curadora traz à tona desconforto de alguns e satisfação de outros. “O Hélio Melo me interessa como artista de qualidade, eu não fiz uma concessão para contemplar a arte popular”, afirma. Em entrevista à RAIZ., Lagnado justifica a participação do artista na Bienal e fala sobre o estado do Acre. Como o bloco Acre foi pensado dentro da 27ª Bienal? O olhar de Hélio Melo sobre a construção da cidade e sobre a relação da cidade com a natureza não é uma coisa popular ingênua. Por ser autodidata, ele tem uma característica chamada “popular”, entendendo o artista popular como aquele que não se deixou contaminar pela História da Arte. Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), que já participou da Bienal de Veneza, talvez seja assim também, mas com a agravante de que estava dentro de uma instituição psiquiátrica.
O Acre tem uma geografia – não só a geografia que diz respeito aos rios e às florestas, mas uma geografia humana – muito característica. As tribos que vivem às margens do rio têm, cada uma delas, uma língua diferente, há uma riqueza humana que, junto com a potência das florestas, das lendas, do Santo Daime, me atrai muito em termos culturais. E, obviamente, tem a questão histórica.
É um estado que tem em sua história a anexação de um território boliviano e de um pedaço do Peru, o que tem a ver com a questão da modernidade. São esses elementos que explicam a escolha do Acre para a Bienal? A escolha demandou uma grande discussão entre os co-curadores e sou extremamente grata ao José Roca, como colombiano, por ele ter entendido. Eu queria fugir do clichê brasileiro, mas também queria evitar essa moda de fazer residências em lugares exóticos e longínquos. No Acre, você tem uma questão de fronteiras que tem a ver com uma das idéias centrais dessa Bienal: a da construtividade. Quando Hélio Oiticica se refere ao artista construtor, ele está falando daquele artista que vai construir o Brasil. O Acre faz sentido dentro desse programa ambiental do Oiticica: um Brasil contra a cultura de exportação.
O Acre funciona como uma espécie de metáfora de uma modernização que não deu certo? Não. Eu acho que é uma modernização possível, mais humana, não essa modernização capitalista selvagem. Se você for para lá, vai encontrar casas de leitura que são lindas, como a Casa de Chico Mendes que foi transformada em casa de leitura depois que ele morreu. São espaços em que você pode tirar o sapato para ler, que você tem à disposição livros de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e talvez [Julio] Cortázar e Gabriel García Márquez. Há monitores que narram histórias, conservando a tradição oral. Tem programas voltados para famílias, um estímulo muito grande para a leitura. Eu não encontrei uma cena artística contemporânea viva no Acre. Então, tive vontade de levar artistas para lá para fazerem um workshop e deixarem uma semente. Talvez fazer com que os artistas acreanos que têm uma timidez com relação à arte contemporânea, que só fazem arte artesanal, possam misturar as duas coisas, como Hélio Melo fez. Ele trabalhou com as sementes e as substâncias da floresta para pintar, os pigmentos dele são da floresta. Ele é um autodidata, mas isso não significa que ele não tenha uma visão ácida do desenvolvimento das cidades, da maneira como a mata está sendo devastada. Você percebe isso nas imagens nessa fusão com os mitos, os animais.
Tendo a obra de Hélio Melo em vista, parece difícil falar em uma separação entre arte contemporânea e arte popular, não? O Hélio Melo é contemporâneo no sentido de ser crítico. Eu chamo de contemporâneo, normalmente, quem está produzindo hoje. A Bienal tem um compromisso com a contemporaneidade, não tem mais nada de histórica. Mas, na minha opinião, por vários motivos, isso não significa que artistas mortos tenham que ser banidos. Primeiro porque eles influenciam a produção dos artistas contemporâneos, então, eu os chamo de artistas históricos contemporâneos. Segundo, porque eu acho que a gente convive com os mortos. O Leonilson (1957-1993), para mim, está aqui, eu falo com ele, com Hélio Oiticica, Mira Schendel (1919-1988), Arthur Bispo do Rosário. Agora, há artistas que estão produzindo hoje coisas de terceira geração do movimento expressionista abstrato americano. É contemporâneo, no entanto, é uma digestão de um movimento de 50 anos atrás. O que é contemporâneo no Acre é uma reflexão absolutamente nova sobre um estado que ainda não tem uma representação de si mesmo, que ainda não tem história suficiente para ter criado uma imagem de si mesmo. É uma tentativa de dar dignidade a eles: o gaúcho tem a sua dignidade, o carioca também.
Como serão apresentados os trabalhos de Hélio Melo na Bienal? É muito cedo para falar da montagem, nada está certo ainda. Como o Hélio Oiticica não trabalhava com categorias estéticas, também não vou trabalhar com elas na montagem. Mas eu entendo que é preciso montar um percurso “didático” para que as pessoas possam caminhar e ir compreendendo desde o sentido de construtivo até essa dissolução, esse adeus ao esteticismo que ele propôs. Eu acho que o Acre pode não ser um território dentro da Bienal, acho que ele conversará com todos os trabalhos que tem a ver com fronteiras. Então, por exemplo, temos um palestino discutindo isso, um israelense, um chileno. Numa Bienal sem representações nacionais a graça é essa. Ver que a reivindicação de fronteiras não é só da Palestina, foi uma reivindicação entre a Bolívia e o Brasil (claro que com as especificidades históricas). Até brinquei outro dia falando para uma artista que, quem sabe, o Acre não é uma espécie de Palestina feliz, que tem a terra conquistada através do trabalho.
Como você vê a súbita valorização da obra de Hélio Melo pelo mercado depois que foi anunciado que ele participaria da Bienal? Olha, é inevitável e eu diria até que é saudável. Pois um artista como Hélio Melo não pode ficar refém de alguns poucos connaisseurs, como foi até agora. Fazendo a pesquisa para localizar seus trabalhos descobrimos que um dos maiores colecionadores de Hélio Melo era [o artista plástico] Sérgio Camargo (1930-1990). Como imaginar que alguém com o trabalho de Sérgio Camargo colecionasse Hélio Melo? As pessoas têm Hélio Melo como em outros tempos tinham as monotipias de Mira Schendel, que ela dava de presente. Para mim, o melhor da Mira são as monotipias. Mas era um mercado disperso, desinformado. É óbvio que eu não quero ser vampirizada pelo mercado, então, às vezes, respondo um pouco abruptamente quando as pessoas querem a lista dos artistas. Eu não dou por dois motivos. O primeiro é que ainda não está fechada, e o segundo é que essa inflação dos trabalhos é uma coisa que atrapalha. Esse troca-troca de artistas que passam de uma galeria para outra, esse troca-troca de obras, isso tudo dificulta. Estávamos fazendo uma lista de rastreamento das obras de Hélio Melo que queríamos para a exposição e, de repente, um lote de 20 desenhos dele passou de uma mão para outra. Alguém comprou 20 desenhos do artista. Quanto custa um Hélio Melo? Antes custava R$ 200 e hoje custa R$ 2 mil? Ninguém tinha noção de que aquilo tinha valor. Eu acho a valorização saudável para a família, para o patrimônio público, e acho uma pena para o artista que não está mais aqui.
É possível relacionar a obra de Hélio Oiticica com a de Hélio Melo? Eu acho que Hélio Melo entra na Bienal como um artista que Hélio Oiticica certamente teria olho. O carnaval, para Oiticica, era uma manifestação popular de alto valor. O que eu posso dizer é que para ambos existe o “Como viver junto”, que é o título da Bienal. Nunca tive o propósito de colocar na Bienal um artista que é considerado popular e, nesse sentido, contemplar a arte popular. Mas quando percebi isso, vi que tinha feito um outro “Como viver junto”, o “popular” convivendo com uma arte mais “instruída”. Para mim, essas coisas vivem juntas, pois meus artistas prediletos como Marepe (1970) e a Rivane [Neuenschwander] (1967) se inspiram em feiras populares, é lá que eles vão beber. O Hélio Melo me interessa como artista de qualidade, eu não fiz uma concessão para contemplar a arte popular. Eu simplesmente o escolhi porque ele traz as questões das fronteiras, da crítica à destruição da floresta, porque ele é o maior artista do Acre que eu encontrei. Eu não tenho preconceito com arte popular, como não teria com arte formalista, se coubesse e fosse o caso. O Hélio Melo é tão importante nessa Bienal como o [artista norte-americano] Gordon Matta-Clark (1943-1978) e o [artista belga] Marcel Broodthaers (1924-1976), se eu conseguir trazê-los.
GUIDOBALDO QUER INCREMENTAR seu aposento especialmente reservado a aventuras eróticas. Contrata um artista e lhe encomenda um quadro ao qual se refere apenas como “de uma mulher pelada” (ele não escreveu “nua”, pois não era o caso de ser tão formal nesse contexto). O quadro chega, é instalado e cumpre com sucesso sua função. Os amigos o invejam e pedem indicações do artista. São feitas outras encomendas àquele gênio capaz de criar essas figuras quase vivas. Quando a cópia encomendada por Farnese chega, ele diz a Guidobaldo: “Perto do meu, o teu parece a figura de uma madre frígida”. Até aí, são apenas amigos ricos farristas que trocam sugestões sobre como tornar mais quentes suas noites na cama. Não é diferente de comentários atuais sobre DVDs eróticos ou canais pay-per-view. Mas estamos em 1542 e a “madre frígida” é o quadro hoje conhecido como Vênus de Urbino, de Ticiano (1490-1576).
Dê um salto de 450 anos e teremos a grosseira série em que o artista norte-americano Jeff Koons posa com a atriz pornô Ilona Staller, então sua esposa. É certo que não precisaremos de mais 450 anos para que a série seja considerada as Vênus de Koons. A diferença é que Ticiano sabia que não fazia arte em nenhum sentido que hoje emprestamos à palavra. Já Koons é artista, e erudito, e exposto em grandes museus e centros culturais em todo o planeta. Ticiano adoraria poder trabalhar assim tão às claras, vender bem e, acima de tudo, ter suas “mulheres peladas” consideradas arte. Esse é um exemplo no qual o papel do tempo é evidente: o que era antes aceito com reserva se torna elegante; o que era visto como escandaloso se torna exemplo de sobriedade. Nesses casos —que não se restringem às artes, pois em ciência e tecnologia também acontece algo parecido, com teorias vistas como estapafúrdias numa época ganhando respeitabilidade em outra posterior, e vice-versa – o fluxo é do considerado popular, ou mesmo obsceno, ao erudito. Listar apenas uma parte desses casos, em somente um campo artístico, levando em conta só o fator tempo, encheria livros com relatos iconoclastas. Interessa ver se outros fatores criam esses canais entre o erudito e o popular, entre o considerado educado e digno de reflexão e o considerado apenas divertido, ainda que bem elaborado. Não existe artista desligado de uma cultura e a própria noção de erudição envolve mais método que conteúdo. Existe, antes de tudo, um método erudito, que consiste em um olhar crítico, na coleta de material, na interpretação deste e, eventualmente, em sua transformação em matéria-prima para um trabalho de fôlego. Bartók colecionou canções populares húngaras e dali veio seu Microcosmos. Villa-Lobos tinha os olhos voltados para a música popular do Brasil. Isso torna seu trabalho, de alguma forma, menos erudito que o de um Stockhausen ou um Ligeti, que trabalham no limite da sonoridade, sem nenhuma referência aparente com aquilo que as pessoas leigas consideram música? Certamente não. E Ligeti teria se tornado de algum modo popular quando muitas de suas peças foram usadas como trilha sonora de 2001, de Stanley Kubrick? Também não é o caso.
Novamente, essa distinção não é privilégio das artes. Praticamente qualquer campo de conhecimento, da aeronáutica à escultura figurativa, separa seus produtores por métodos. O método erudito consiste em uma série de procedimentos formais, todos guiados por alguma reflexão teórica, cujo resultado vemos exposto, seja num museu, seja numa mostra de tecnologia. O popular, por outro lado, denota uma certa ausência de método formal, um tatear e, encontrada a solução desejada, o repetir dessa solução, repetição essa que faria avançar somente a técnica de execução. O método erudito se aprende com mestres consagrados e, hoje, nas universidades, que praticamente monopolizam a disseminação de conhecimento considerado de alto nível. Já o método (melhor talvez seria dizer tática) popular é aprendido no contato com profissionais, geralmente como aprendiz, como auxiliar em um meio em que o que conta é essencialmente a produção. Mas mesmo a questão do método não constitui boa separação. Primeiro, porque o aprendizado em um clima popular pode render, a uma pessoa especialmente talentosa, ferramentas mais que suficientes para a produção de uma arte considerada erudita. Segundo porque, na universidade, a preocupação formal pode levar facilmente a uma troca da estética pela palavra, do trabalho pelo falar sobre o trabalho. De fato, mas essa é outra história e bem mais complicada, a localização de departamentos de artes em universidades, cujos padrões para avaliação de ensino e pesquisa não são bem adaptados para a produção artística, leva mais à produção de discurso (que se materializa em relatórios, papers apresentados em congressos etc.) e menos de objetos (materiais ou não) portadores de um conteúdo estético.
O século 20, especialmente no que diz respeito às artes visuais, complica ainda mais o quadro, quando considera (com toda a razão) Marcel Duchamp um de seus maiores expoentes. O que é arte, afinal de contas? Se não é bem método, nem bem conteúdo, nem história, nem técnica, talvez ela se defina apenas por “arte é o que o artista diz que é arte”. Duchamp cria o readymade, um objeto sem importância, nem feio nem bonito, nem útil nem inútil, enfim, algo absolutamente mediano, e lhe dá nome e assinatura: um mictório vira Fonte, uma escumadeira, um Braço, e esses são objetos de arte. Revolucionário, mas com tradição, quando nos lembramos que Leonardo havia definido arte como cosa mentale. É certo que ele ficaria horrorizado com Duchamp, mas este apenas levou ao desfecho lógico a expressão do artista italiano. O tempo mistura o erudito e o popular, também o método, também a origem da matéria-prima (como nos casos vistos de Bartók e Villa-Lobos e, nas artes visuais, para citar mais um caso, o altar para Roberto Carlos, de Nélson Leirner), também a própria lógica dos artista, como em Duchamp. Então, talvez o suporte fosse um modo seguro de separação entre campos. Claro que ninguém acredita nisso, pois existe Francis Bacon e existem os incontáveis quadros de cavalos e de meninos chorando, expostos em toda feira de artesanato.
Em ambos os casos, trata-se de óleo sobre tela. E se tentarmos as novas mídias? Estamos em uma época especialmente interessante no que diz respeito não só à produção artística, mas com respeito ao papel do receptor em um ambiente de comunicação. A internet e, mais geralmente, as aplicações multimídia, permitem ao receptor um certo grau de autoria. Aquela reflexão que parecia exótica em Umberto Eco, de que não há linha clara entre autor e leitor, parece se confirmar nos meios digitais. Não que esse tal apagamento de limites seja pacífico: de qualquer forma, para que o receptor aja como autor, ainda é preciso que um autor “de verdade” ofereça algo de antemão. Mas esse é outro ponto. A produção de objetos de arte que usam mídias digitais cresceu enormemente e ocupa espaço em exposições, em cursos universitários, em congressos etc. Os artistas e curadores que tratam com essas manifestações estão sempre dispostos a dizer que a própria ciência já se volta para os achados desses artistas, mas isso não é verdade. O problema que essas manifestações enfrentam, e que remetem à questão do erudito/popular, é a que chamaríamos “transparência das mídias”. Uma tela recoberta de tinta ou um pedaço de mármore esculpido são tão óbvios para nós como veículo de arte que desconsideramos o suporte. Olhamos para um certo conteúdo e nos esquecemos da mídia. O uso a tornou transparente. Nas mídias digitais, a fascinação tecnológica ainda é mais forte que o conteúdo e o resultado é que nesse campo recente a confusão entre popular e erudito é ainda mais grave.
Videogames podem aspirar a arte? Sim, no que diz respeito ao conteúdo e à linguagem, e ainda não, no que diz respeito à transparência da mídia. Volta-se sempre a Leonardo. Arte é coisa mental e, para apreciá-la (e avaliá-la), é preciso examinar o discurso que cerca qualquer trabalho. A arte está nas intenções, e para isso não existe saída material.
Revista Raiz
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