Soviéticos impõem em Stalingrado primeiro e inconteste revés à 'Wehrmacht' - Pertinácia de Hitler sela a derrota alemã - Stalin prevê novos êxitos nas batalhas contra os nazistas - EUA e Grã-Bretanha também comemoram
Ruidosas metralhas e morteiros solapam a fachada da Univermag, loja de departamentos transformada em quartel-general das forças de ocupação alemãs em Stalingrado. Após um cerco de semanas, as falanges soviéticas acabam de chegar à Praça Vermelha. Um dos prisoneiros tedescos informa que o marechal-de-campo Friedrich Paulus, comandante do Sexto Exército, está no magazine, localizado no coração da cidade velha. Os russos já se preparam para a invasão do local quando avistam uma bandeira branca sendo desfraldada. De imediato, o tenente russo Fedor Yelchenko cruza a praça e entra no edifício, escoltado por dezenas de soldados. Encontra Paulus no porão, deitado em uma cama dobrável, impecavelmente trajado em seu uniforme militar. "Bem, então acabamos por aqui", diz Yelchenko. O alemão meneia a cabeça, assentindo; minutos mais tarde, assina sua rendição.
A folhinha marca 31 de janeiro de 1943. Anotem. É a data em que a Wehrmacht experimenta pela primeira vez o gosto da capitulação. É a jornada na qual o Exército Vermelho recupera o controle de Stalingrado. É o instante que representa um divisor de águas na pugna que se arrasta desde 1939. A lenda do invencível exército dos super-homens arianos de Adolf Hitler caiu por terra, justamente pelas mãos dos soviéticos, povo que o Reich inclui em sua lista de Untermenschen, "subumanos". Além de se recuperar das severas perdas materiais e de pessoal, os alemães terão de superar um terrível golpe psicológico. Em contrapartida, para Josef Stalin, o êxito em Stalingrado é a prova da irrefutável vitória da Guerra Patriótica da terra-mãe Rússia. Daqui para frente, ao que tudo indica, a luta será conduzida em seus termos.
O triunfo do Exército Vermelho encerra uma batalha de quase seis meses, seguramente a mais sangrenta e parelha desta guerra. Desde que, em 12 de setembro de 1942, as primeiras tropas tedescas entraram em Stalingrado, até o raiar de fevereiro, quando os últimos alemães baixaram as armas, a carnificina fez parte do cenário da cidade, tal e qual a usina Outubro Vermelho, a montadora de tratores Djerjinski e a fábrica de produtos químicos Lazur - que, como a vasta maioria das edificações, acabaram em ruínas. Os duelos eram travados rua a rua, a cada esquina. Conquistar Stalingrado, portentosa cadeia urbana e industrial às margens do rio Volga, importante ponto de entroncamento ferroviário, havia virado questão de honra para ambos os lados. Com isso, a lógica militar deu lugar a um fanatismo incontrolável - especialmente por parte de Hitler, que se recusava a admitir a hipótese de derrota. Obcecado, o Führer terminou por insistir em uma campanha que, já em fins de dezembro, estava condenada à destruição.
O resultado, é evidente, não poderia ser outro. Calcula-se que 120.000 germânicos foram mortos em Stalingrado, enquanto outros 91.000 foram feitos prisioneiros. Nessa contagem não estão incluídas baixas do Terceiro e Quarto Exércitos da Romênia e do Oitavo Exército da Itália, que correram em socorro da Alemanha e acabaram dizimados por completo. As perdas materiais nazistas são igualmente devastadoras: 75.000 veículos, 3.500 tanques, quase 2.000 aeronaves, 12.000 metralhadoras e morteiros. A imagem dos alemães rendidos, esqueléticos, sujos e ainda atarantados com o cerco de semanas à cidade está impressionando o mundo. "O que testemunhamos em Stalingrado é uma catástrofe de inédita magnitude", afirmou Hitler, que, pela primeira vez, deixou transparecer um tom soturno e perturbado em mensagem aos correliginários nazistas. Será o começo do fim? ...
Teimosia fatal - Analistas do teatro de operações já afirmavam desde o ano passado que a agonia alemã em Stalingrado poderia ter sido evitada mesmo antes da primeira contra-ofensiva soviética, em novembro. Era sabido que o Sexto Exército germânico, apesar de ter ocupado sete oitavos de Stalingrado, estava desprotegido e vulnerável em seus flancos. Ciente do iminente ataque vermelho, generais do Reich tentaram demover Hitler da idéia de prosseguir na conquista total da cidade, mas este insistiu na cruzada e convocou o Terceiro e o Quarto Exércitos da Romênia para proteger as alas direita e esquerda, com o auxílio de forças italianas e algumas unidades da Luftwaffe. Entretanto, quando a chamada operação Uranus foi lançada, em 19 de novembro, esses reforços laterais provaram-se de cristal, soçobrando em menos de três dias. Isolado em um bolsão, o Sexto Exército, com seus 220.000 homens, passou a depender de suprimentos conduzidos por via aérea.
Não havia, porém, pistas de pouso adequadas no perímetro das tropas germânicas acuadas. Para piorar, o frio, acompanhado de uma névoa cerrada que tornava os vôos arriscados - quando não impraticáveis -, torturava os mecânicos em terra, congelados em suas vestes inadequadas. Na virada de dezembro, o comandante Paulus pediu a Hitler permissão para bater em retirada, enxergando uma saída a Oeste: "Exército a caminho do desastre. É essencial retirarmos todas as divisões de Stalingrado". Mas o Führer ordenou a manutenção das tropas alemãs no local.
A insistência insana do chefe apressou a confirmação das previsões de Paulus. Em 8 de janeiro, o general Konstantin Rokossovsky, comandante do front Stalingrado soviético, ofereceu um termo de rendição aos alemães. A proposta era mais do que atraente para os famélicos e congelados farrapos fardados confinados nas ruínas da cidade: os camaradas prometiam que todos os homens que se entregassem seriam alimentados e receberiam assistência médica. Além disso, poderiam manter seus uniformes, medalhas, condecorações e todos os objetos pessoais e de valor. Aos oficiais graduados era reservado inclusive o direito de permanecer com suas espadas e baionetas. Entretanto, nas entrelinhas, Rokossovsky já alertava: caso a oferta fosse recusada, o Exército Vermelho partiria para o massacre das forças nazistas cercadas em Stalingrado.
Os soldados tedescos tomaram conhecimento da proposta por folhetos espalhados por aviões do Exército Vermelho, e viram no acordo a última esperança de que sua provação chegasse ao fim. Hitler, porém, mais uma vez determinou a Paulus que repelisse qualquer tipo de rendição. A recusa desestruturou ainda mais os combatentes germânicos; um deles resumiu o desespero da situação em carta enviada à família. "Estamos sozinhos, sem ajuda externa. Hitler nos abandonou aos lobos. Quando Stalingrado cair, vocês ficarão sabendo. E terão a certeza que não retornarei para casa". ...
'Reverência e estupor' - Responsáveis pela impecável estratégia de ataque ao Sexto Exército, o recém-nomeado marechal Georgi Zhukov e o general Aleksandr Vasilevsky deixaram o confronto final com os alemães a cargo das tropas de Rokossovsky. A operação Pequeno Saturno, iniciada em dezembro, deu origem a uma operação-filhote, batizada de Anel. Em 10 de janeiro, quando o plano começou a ser executado, o bolsão das forças alemãs se estendia por 60 quilômetros no sentido Leste-Oeste e 45 quilômetros no sentido Norte-Sul. Atacando no sentido Oeste-Leste, o Exército Vermelho reconquistou metade do terreno em menos de uma semana; no final do mês, a resistência nazista resumia-se a dois minúsculos bolsões separados no centro de Stalingrado.
Por volta do dia 25, Friederich Paulus havia novamente sugerido a rendição a Hitler - sugestão mais uma vez rejeitada. Em 30 de janeiro, o Führer promoveu o oficial a marechal-de-campo. A mensagem endereçada ao comandante era clara. Jamais um marechal-de-campo alemão havia se rendido ao inimigo: Hitler esperava que o líder do Sexto Exército cometesse suicídio. Mas o oficial não tinha sequer forças para isso, e se entregou no dia seguinte, fazendo o líder nazista explodir em fúria. "Há que matar-se com a última bala. Desprezo um soldado que se rende. Vinte mil pessoas se suicidam por ano na Alemanha, e é absurdo que um general não possa fazer o mesmo que uma mulher ultrajada. Não farei mais marechais-de-campo. O heroísmo de dezenas de milhares de soldados é manchado pela covardia de um só". Os combatentes do segundo bolsão, seguindo a ordem de Berlim, ainda lutaram por mais algumas horas, mas também entregaram-se à capitulação. Em 2 de fevereiro, toda a resistência havia cessado.
Stalin, porém, já comemorava desde 25 de janeiro: em sua ordem do dia, dirigiu aos militares vermelhos seus mais graduados elogios, continuando a incitá-los para a luta. "Nossas tropas conquistaram uma grande vitória, e seguimos com a ofensiva. Vamos em frente, rumo à aniquilação dos invasores germânicos e sua expulsão de nosso país!" Com o moral elevado, o Exército Vermelho ganha agora novo impulso para enfrentar os homens de Hitler no vasto front soviético, especialmente em Leningrado e no Cáucaso, pontos-chave desta contenda. Os alemães que se preparem: em Stalingrado, os russos deram uma inequívoca demonstração de sua força militar. Já não devem mais nada aos nazistas em número e qualidade de seus tanques e armas. Até mesmo a tão decantada Luftwaffe - que, a bem da verdade, já não tem colhido bons resultados há tempos - foi neutralizada pelos soviéticos, com a estréia do La-5, caça confeccionado em madeira que teve papel decisivo na conquista da superioridade aérea na batalha em questão.
Enquanto os camaradas celebram a vitória - comemorada também com alívio pela Grã-Bretanha e os Estados Unidos - e a nação alemã abate-se com o malogro do Sexto Exército no Volga, uma única voz dissonante se alevanta. É a de Hermann Göring, o comandante da Luftwaffe (leia entrevista nesta edição). "Daqui a mil anos, os alemães falarão desta batalha com reverência e estupor, e lembrarão que, apesar de tudo, a vitória da Alemanha foi ali decidida". Como profeta, Göring parece ser um excelente piloto.
Revista Veja na História
Nenhum comentário:
Postar um comentário