por Ulisses Razzante Vaccari*
Em um dos melhores programas da série "Diálogos Impertinentes", os pensadores Celso Favaretto e Décio Pignatari discorrem sobre a natureza do Belo nas artes, mais especificamente na literatura, na música e na pintura. A certa altura, os debatedores, sob a mediação do jornalista Caio Tulio Costa, concordam que o repertório intelectual é o ponto principal em uma discussão deste nível.
publicou reflexões sobre a essência da obra de arte
Goethe é autor de "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", recentemente publicado pela editora 34, talvez o mais significativo romance de formação da história da literatura ocidental. Mais do que este significado singular, a obra traz uma relevante reflexão sobre o valor e a concepção da obra de arte.
Ao abrirmos um manual de filosofia, muitas vezes, nos deparamos com o termo filosofia da arte e nem sempre sabemos exatamente a que se refere essa linha de pensamento que, de uma forma ou de outra, pertence à filosofia. Então, pergunta-se: o que significa, afinal, filosofia da arte? Como ela surgiu? E, mais importante, como é possível pensar a arte filosoficamente?
O termo "filosofia da arte" é muitas vezes confundido com o termo "estética". Muito embora alguns autores insistam em separar uma coisa da outra, no fim, um termo e outro não deixam de designar uma e mesma coisa: a relação do pensamento filosófico com a criação artística. Se formos investigar na história da filosofia como surgem ambos os termos, veremos que o termo "estética", por exemplo, foi criado por Alexander Baumgarten (1714-1762) apenas no século XVII, seguindo as exigências iluministas daquele século de definir e delimitar todas as áreas do saber humano. Pela primeira vez na história da filosofia, o pensamento filosófico sobre a arte adquire, se não um terreno sólido, ao menos uma denominação mais específica em meio às demais disciplinas que desde sempre fizeram parte dos principais troncos da filosofia: a ontologia, a moral e a política. Segundo Baumgarten, se essa experiência provocada pela obra de arte e pela criação artística em geral deveria conquistar para si um lugar ao sol em meio às demais disciplinas filosóficas, esse lugar deveria ser aquele da sensação.
De fato, como a obra de arte exige sempre um contato mínimo com um dos sentidos (por exemplo, a música com o ouvido, a pintura com a visão), o ramo da filosofia dedicado a essa experiência deveria invariavelmente chamar-se estética, na esteira do termo grego aesthésis, que designa a sensação sensível. Em completa oposição à lógica, conhecida como a ciência das regras do pensamento, a estética, ao contrário, deveria ser aquela linha de pensamento dentro da filosofia cujo objetivo era determinar as regras, não do pensamento, mas da sensação sensível, a partir das quais se poderia definir uma experiência estética. E muito embora seja possível dizer que desde sempre os filósofos se ocuparam com o problema da criação artística - por exemplo, Platão no livro X da "República" e Aristóteles na sua "Arte Poética" - apenas no século XVII com Baumgarten essa preocupação passou a ser sistematizada, vindo a receber essa nomeação.
Preferência pela poesia
No que se refere à filosofia da arte, a sua definição e datação é um pouco mais complexa, e isso por vários motivos. Entre eles, está o de que não se tem registro de um determinado autor que tenha criado esse termo e o tenha definido, tal como Baumgarten o fez com a estética. De fato, embora se precise mais ou menos o mesmo século XVIII como o século de nascimento da chamada filosofia da arte, atribui-se a esse nascimento antes todo um movimento filosófico do que um ou outro autor. É comum dizer que a filosofia da arte teve seu início no círculo de filósofos do chamado idealismo alemão, que, dependendo de como o enxergue, se inicia com o grande seguidor da filosofia kantiana, J. Gottlieb Fichte (1762- 1814), passa por Friedrich Schiller (1759- 1805), Friedrich W. J. Schelling (1775-1854), por Friedrich Hölderlin (1770-1843) e termina no grande sistema do idealismo alemão de G.W. Friedrich Hegel (1770-1831). Como se pode ver pelos temas tratados por todos esses pensadores, a arte constituiria, senão o mais importante, ao menos um dos mais relevantes temas do pensamento de cada um deles e de todo esse movimento. E, embora não seja costume chamá-lo filósofo, não se pode esquecer o fato de que todos esses pensadores possuíam uma ligação visceral com a obra e a pessoa do chamado pai da língua alemã, o poeta Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Essa ligação, não apenas com Goethe, mas de todos esses nomes entre si e em torno de um mesmo ideal, definiu essa nova postura do pensamento filosófico, a qual hoje se dá o nome de filosofia da arte. Esse ideal, como se poderia ver já pelos escritos de todos eles, referia-se ao interesse preponderante pela criação e pela obra de arte em geral e, dentro desta, pela poesia.
Se existe, assim, um elemento que permita diferenciar a estética tal como havia sido formulada por Baumgarten da chamada filosofia da arte, ela repousa principalmente nessa preferência pela poesia. Como se pode ver já pela principal característica desse seleto grupo de pensadores, a poesia é o ponto forte de quase todos eles. Não apenas Schiller, cuja obra filosófica mais conhecida intitula-se "Cartas sobre a educação estética do homem", mas também Hölderlin são conhecidos muitas vezes antes por sua obra poética do que pela produção filosófica.
Além disso, Goethe, o mais reconhecido poeta alemão, muito embora não tivesse escrito obras propriamente filosóficas, publicou reflexões sobre a essência da obra de arte, em sintonia com os desenvolvimentos propriamente filosóficos em torno da criação artística e, principalmente, poética. Surge, então, a pergunta: por que a poesia havia sido eleita, entre todas as demais artes, a suprema? O que havia nessa linguagem em especial que permitisse caracterizar toda uma nova linha de pensamento dentro da filosofia?
Ora, uma resposta para isso poderia ser simplesmente o fato de que a poesia, muito mais do que todas as outras linguagens, afastava-se o mais possível daquela sensibilidade sensível que, para Baumgarten, caracterizava a experiência estética em geral. Acompanhando de perto as linhas gerais da filosofia idealista que apenas nascia, o pensamento sobre a arte encontrou nesta a forma mais legítima de sua própria expressão. A poesia, como definiria posteriormente Hegel em suas reflexões sobre a arte, seria a linguagem artística mais próxima da própria reflexão filosófica e, nesse sentido, a que mais se oporia à representação sensível, como ocorreria de forma mais patente com todas as outras linguagens da arte: a música, a pintura e a escultura. Posicionando-se, assim, em relação à tradição estética, essas reflexões sobre a arte do final do século XVII e início do século XIX responderiam a uma disputa milenar entre poesia e artes plásticas, que remonta a Platão e Aristóteles, passa por Horácio e chega ao renascimento italiano e ao classicismo francês e alemão. Representando um tipo de síntese entre Platão e Aristóteles, que disputaram em torno do valor da poesia, Horácio (65 a.C. - 8 a.C.), já na era romana, é o responsável pelo famoso mote do ut picturas poesis, que significa "a pintura é a poesia". Para o autor da "Arte Poética", ambas as linguagens se confundiriam na representação do gênero humano, motivo pelo qual estariam ambas no mesmo patamar.
Já na era do renascimento, a obra e o mote horacianos são redescobertos ou, mais especificamente, são duramente criticados por Leonardo da Vinci (1452-1519) em seu "Tratado da pintura". Pintor por excelência, Leonardo propõe, nessa obra, evidenciar, não apenas por meio de argumentos filosóficos, mas também por meio de ilustrações feitas a próprio punho, porque a pintura é uma linguagem superior à poesia. Conhecida como Paragone (que em português significa comparação), tal teoria deu ensejo, ao longo dos séculos, a uma intensa discussão filosófica, na qual tomaram parte os mais variados pensadores das mais variadas nacionalidades. Para nos restringirmos aqui ao tema proposto, tal discussão atingiu naturalmente a Alemanha, que, na figura de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), encontrou a maior e mais acabada expressão para a disputa. Na avaliação do autor do "Laocoonte - ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia", a supremacia da linguagem poética é flagrante em comparação com a limitação da pintura na expressão do pensamento. Exemplo disso seria, nas palavras do filósofo, a facilidade com que a poesia - e então o autor toma as epopéias de Homero como exemplo - pode representar o movimento e a ação dos seus personagens, coisa que é naturalmente impossível na pintura.
A partir de então, parecia estar inaugurada na Alemanha toda uma linha de pensamento em prol da poesia, que, de uma maneira ou de outra, estava em sintonia com a produção de grandes poetas cara a essa nação e a esse período. De todo modo, ainda cabe a pergunta: teria a filosofia da arte surgido para dar conta da grande produção poética (e musical) daquele período ou essa epifania poética da Alemanha dos séculos XVII e XIX teria surgido como efeito do pensamento filosófico sobre a poesia? A antiga questão permanece saudavelmente sem resposta.
Revista Filosofia
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