Unicamp | Universidade Estadual de Campinas
quinta-feira, 31 de março de 2011
Angelo Agostini - Carnaval de 1881
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quarta-feira, 30 de março de 2011
Angelo Agostini de volta do Paraguai - 1870
(1843-1910) Desenhista italiano que construiu carreira no Brasil. Foi um dos primeiros cartunistas no país e o mais importante artista gráfico. Sua carreira teve início com os combates da Guerra do Paraguai em 1864.
A herança de Vargas: a crise de 1954 e a carta testamento
A ida de João Goulart para o Ministério do Trabalho, em meados de 1953, fez parte da estratégia deGetulio Vargas de reformar o ministério visando a uma maior sustentação de seu governo. Na verdade, Goulart não foi capaz de conter o ímpeto da oposição que denunciava, entre outras coisas, o favoritismo do governo nos empréstimos ao jornal Ultima Hora, único periódico da grande imprensa a apoiar Vargas. Em fevereiro de 1954, vem a público o Manifesto dos coronéis, documento que criticava a política econômica e trabalhista do governo e pedia mais recursos para as Forças Armadas. Em seguida, o ex-ministro João Neves da Fontoura traz a público correspondência secreta entre Vargas e o presidente da Argentina, Juan Domingo Perón. Nela se cogitava a formação de uma república sindicalista no Brasil e também a de um pacto dos dois países, em conjunto com o Chile, o pacto do ABC, que teria como objetivo formar um bloco continental de oposição aos Estados Unidos.
Em maio, com Jango já fora do Ministério do Trabalho, Getúlio concede um aumento de 100% no salário mínimo, iniciativa entendida como um gesto extremado para procurar apoio entre os trabalhadores em função da oposição sistemática que recebia do Parlamento, da imprensa e dos militares. O maior porta-voz da oposição era Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN) do Distrito Federal, um brilhante orador de vocação golpista. O clima político era regido também pelas discussões em torno da sucessão presidencial, cujas eleições se dariam em outubro de 1955. De um lado, os seguidores de Getulio, acuados pelo rolo compressor da oposição; de outro, os antigetulistas, ambos com aliados nos quartéis.
No plano militar, o debate se radicalizava ideologicamente dentro do Clube Militar, instituição também recortada pela clivagem getulismo e antigetulismo. No Congresso, em junho de 1954, é votado o impeachment de Vargas, que, embora rejeitado por ampla margem, dá o termômetro do clima político da época. A escalada contra o governo tem novo patamar em agosto de 1954 quando Carlos Lacerda é vítima de um atentado na rua Tonelero, em que morre um dos seus guarda-costas, o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz. A Aeronáutica toma a dianteira nas investigações policiais e rapidamente descobre que as ordens do atentado tinham partido do chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato.
A partir de então, um bombardeio de críticas toma conta da imprensa que denuncia o "mar de lama" em que se convertera o governo. Os quartéis entram em prontidão e, em sucessivos manifestos, brigadeiros, almirantes e generais pedem a renúncia ou a deposição de Vargas. Frente a essa pressão, Getulio convoca uma reunião ministerial na noite do dia 23 de agosto, assistida por sua filha Alzira, João Goulart, e vários assessores e amigos do presidente. Ao final, Vargas decide licenciar-se do governo por 90 dias.
Na madrugada do dia 24, quando a reunião terminara, Getulio foi informado que seu irmão, Benjamim Vargasestava sendo convocado a depor na "República do Galeão", nome dado à operação da Aeronáutica que se investira de funções policiais para apurar o atentado da Rua Tonelero contra Lacerda. Mais tarde, foi-lhe comunicado que os militares consideraram definitivo o seu afastamento do poder. A licença fora convertida em veto militar. O Palácio do Catete já estava protegido com trincheiras de sacos de areia. A possibilidade de uma guerra civil era considerada uma ameaça real. Por volta das 8:30h Getulio Vargas se suicida.
O impacto do suicídio de Vargas foi surpreendente. Primeiro pela ousadia do gesto, segundo, pela emoção e pelo ambiente de tragédia que tomou conta do país, terceiro, pelo desnorteamento que produziu em seus adversários. Foi um ato político, talvez o maior concebido por Getúlio, que sabia poder contar com a simpatia do povo. Como testemunho de seu gesto Getulio deixou uma carta testamento com três cópias. Uma, na mesa de cabeceira da cama onde morreu, outra dentro do seu cofre e uma terceira entregue a Goulart, ainda durante a reunião ministerial. Getulio pedira a Jango que guardasse o documento sem lê-lo e se retirasse para o Rio Grande do Sul, pois no Rio, ele, Getulio e o próprio governo eram muito vulneráveis.
O fato de Getulio ter entregue pessoalmente a Jango um documento deste teor era uma maneira de expressar publicamente a descendência de sua linhagem política. Jango era o fiel depositário da carta-síntese de sua vida e obra. Aqui simbolicamente fica como o responsável pela continuidade da obra iniciada por Vargas. É o sucessor ungido pelo carisma, é o herdeiro de uma idéia, de um estilo de política, a continuação de Vargas no poder, o ponto de referência para o PTB e para os trabalhistas.
Maria Celina D´Araújo
O aumento do salário mínimo e a saída de Jango do Ministério do Trabalho
Angela de Castro Gomes
João Goulart - Trabalhadores, movimento sindical e greves
Quando João Goulart toma posse como ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas, em 1953, era grande o descontentamento entre os trabalhadores urbanos e organizados em sindicatos. Desde a eleição de Vargas, aumentaram as expectativas e a mobilização desses trabalhadores. Afinal, tratava-se de um governo que lhes acenara com promessas de melhorias e que abrira possibilidades para a expansão do movimento sindical, muito reprimido durante a presidência deEurico Gaspar Dutra. Contudo, durante os anos de 1951 e 1952, a inflação e o custo de vida subiram bem mais que o salário mínimo, que, desde 1943, quando fora criado, recebera um único e insuficiente aumento. Juntando-se os dois lados da moeda – difíceis condições salariais e maior liberdade para a mobilização sindical –, o resultado é um grande número de greves. Segundo alguns cálculos, elas alcançaram a cifra de 264 nesses dois anos, concentrando suas reivindicações nos aumentos salariais ou no pagamento de salários atrasados. A categoria que mais se fez presente foi a dos operários têxteis, mais numerosos devido ao perfil da indústria do país nos anos 1950.
O ano de 1953 é histórico, tomando-se esse ponto de vista. Nele ocorrem duas experiências grevistas particularmente importantes para o sindicalismo brasileiro. Em março, a chamada greve dos 300 mil, que agitou São Paulo não apenas pelo grande número de manifestantes, como principalmente por ter dado origem a um Comando Intersindical, do qual nasceu uma organização à margem da estrutura sindical corporativa: o Pacto de Unidade Intersindical (PUI). E em junho, a greve dos marítimos, diretamente relacionada à chegada de Jango ao Ministério do Trabalho. Se por um lado, essa greve inaugurou uma estratégia de negociação entre governo e sindicatos, por outro, desencadeou o temor de muitos, a começar pelo ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, defensor de uma política de contenção de gastos e crítico de qualquer elevação salarial. Foi nesse espaço minado, portanto, que Jango se moveu.
Sua gestão assinalou uma orientação de liberalização nas relações entre movimento sindical e Ministério do Trabalho, tendo tomado várias iniciativas importantes. Foi extinta a exigência de um pedido prévio e obrigatório para se realizar assembléias sindicais e, na mesma linha, aboliu-se o envio de um fiscal do ministério para observá-las. Mais importante ainda: não mais foram feitos adiantamentos em dinheiro, pela Comissão de Orientação Sindical, aos sindicatos, pois isso os colocava em posição de devedores e dependentes desse órgão do Ministério do Trabalho. Tais condições, somadas ao fim do atestado de ideologia e à nova decisão do Partido Comunista Brasileiro (PCB) de entrar na estrutura sindical oficial, resultaram em grande mobilização política dos trabalhadores e em um novo e acirrado tipo de competição entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e os comunistas no terreno sindical.
Além de tudo isso, a estrutura sindical foi revigorada por um novo tipo de relações com a máquina previdenciária então existente. No I Congresso de Previdência Social, ocorrido no Rio de Janeiro e reunindo representantes de todo o país, ficou estabelecido não só um maior acesso dos sindicatos aos serviços assistenciais da previdência, como igualmente um maior acesso dos sindicalistas (e também dos petebistas) aos cargos da administração dos inúmeros Institutos de Pensões e Aposentadorias, os IAPs. Essa prática se tornaria regulamento (Decreto-Lei nº 7.526), em maio de 1954, após a saída de Goulart do ministério. Esse é um ponto a ser destacado, já que a relação dos sindicatos com a máquina da previdência social torna-se, desde então, uma das principais fontes de poder dos sindicalistas, do PTB e do próprio João Goulart.
Angela de Castro Gomes
João Goulart - O ministro dos trabalhadores
A posse de João Goulart no Ministério do Trabalho do governo Getúlio Vargas, em 17 de junho de 1953, não deve ser entendida como um acontecimento político-administrativo como tantos outros do gênero, ocorridos anteriormente ou posteriormente. Há, pelo menos, duas razões para isso. A primeira tem a ver com a escolha do nome do ministro, ou seja, com sua trajetória política e com o que ela representava. A segunda envolve as circunstâncias em que ele chega ao cargo, ou seja, no bojo de uma reforma ministerial que provocou polêmica entre os contemporâneos e que ainda hoje suscita debates na literatura que trata do tema.
Jango, como era conhecido e gostava de ser tratado, torna-se ministro aos 35 anos; jovem em idade, mas nem tanto em experiência política. Sua carreira foi meteórica. Entre 1947 e início de 1952, foi deputado estadual, deputado federal, secretário de Interior e Justiça e principal organizador do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) gaúcho. Além disso, e o que o qualifica para uma posição tão alta em momento tão delicado são suas estreitas ligações pessoais com Vargas e sua já inequívoca liderança dentro do PTB. Presidente do partido desde 1952, Jango já era identificado em 1953, para o bem e para o mal, como um líder partidário de grande carisma junto à classe trabalhadora, além de receber uma especial atenção do presidente.
Toma posse no bojo de uma grande reforma ministerial e em meio a uma crise que atingia especialmente o Ministério do Trabalho. Essa reforma tem sido interpretada por uns como uma "virada à esquerda" do governo Vargas e, por outros, como uma maturação das intenções conciliadoras do mesmo governo, que insistia na busca de um consenso político. Esta última perspectiva tem ganho espaço crescente entre os estudiosos, o que implica em se pensar por que, sobretudo para os contemporâneos (militares e civis de vários partidos), interessava ou era possível ver a reforma como uma possível "radicalização popular" do governo. A resposta está, em boa parte, nas ações do titular da pasta do Trabalho.
Num certo sentido, pode-se dizer que Jango se saiu muito bem. Cerca de dez dias depois de tomar posse, a greve estava encerrada. Houve reuniões com o comando geral e o próprio ministro se encontrou com empregadores e trabalhadores para encaminhar uma solução definitiva. Muitas demandas dos grevistas foram atendidas e o impopular presidente da Federação dos Marítimos foi afastado. Uma ação rápida, que evidenciou o estilo político de um ministro que gostava de falar pessoalmente com lideranças sindicais e que intervinha diretamente na dinâmica das negociações dos conflitos trabalhistas. Interessante por um lado e assustador por outro, especialmente para setores conservadores e oposicionistas, como os militares e os udenistas, sempre dispostos a mobilizar o medo face à ameaça do "continuísmo" de Vargas e/ou de uma excessiva aproximação sua com a "massa trabalhadora". De fato, esse é o tom que marca a curta e ativa gestão de Jango na pasta do Trabalho: maior aproximação com setores sindicais e crescentes acusações por parte de variados grupos políticos oposicionistas.
Angela de Castro Gomes
Liga das Nações
Anos 20 - Modernidade Carioca
terça-feira, 29 de março de 2011
Visões originais sobre o cangaço
Fabrizio Rigout
É sempre uma surpresa positiva encontrar um livro de pesquisa social que exercite a dúvida. Uma obra que exponha tanto as evidências que levaram o autor a chegar a determinada conclusão como aquelas que poderiam fazer com que o leitor delas suspeitasse. Temos então a promessa de um diálogo de honestidade intelectual. Isso se alcança, num primeiro momento, pelo descarte das grandes teorias explicativas em favor de um recorte mais indutivo, o que por sua vez pode implicar uma falta de ambição teórica. Esse é sempre o dilema da explicação na ciência social: comprovar a tese ou teorizar sobre a prova. A interpretação apresenta-se nessas horas como alternativa. O autor interpela os fatos não para retomar na conclusão a hipótese adiantada no primeiro capítulo, mas o faz no decorrer da exposição à luz de grandes questões teóricas, buscando dosar profundidade e representatividade.
É uma missão arriscada que requer muita capacidade argumentativa. Se à criatividade necessária para realizar esse projeto não corresponder uma pesquisa original diligente, a obra será enquadrada entre os textos de sistematização. Se o autor ostenta grandes descobertas factuais, porém faz perguntas ingênuas, o livro gravita para um mercado em que o sucesso de público depende tanto ou mais da qualidade literária do que do interesse teórico.
Interpretação original
Muitos podem não concordar com suas teses originais, mas é difícil que alguém as considere ousadas demais em face da riqueza de fatos apresentada. Entre suas melhores passagens, o livro propõe que a forma de guerrear do cangaceiro foi produto do amadurecimento secular da experiência de negros rebelados, caboclos oprimidos, e da crueldade do senhorio moreno do Nordeste, vencendo assim a tentação de explicar a luta entre as forças da ordem e do banditismo alinhando-as em termos de classe ou cultura. Em todos os momentos, a análise revela maturidade ao não se deixar seduzir pela dimensão épica do cangaço e traçar um panorama complexo das mentalidades de seus integrantes, em que as vontades de riqueza, poder e gozo se misturam ao desejo de justiça coletiva e redenção.
Trata-se da obra mais sofisticada até o momento de um historiador jovem, inquieto, e de certo modo outsider. Pericás construiu uma já prolífica carreira (mais de 50 artigos acadêmicos publicados, dez livros, sendo dois de ficção, e outros tantos organizados e prefaciados) tangenciando os departamentos universitários, evitando associar-se a esta ou àquela corrente de pensamento. Tal desprendimento seguramente é uma das razões para o frescor deste livro.
Fabrizio Rigout é doutor em sociologia pela Universidade da Califórnia
Os Cangaceiros – Ensaio de Interpretação Histórica
Luiz Bernardo Pericás
Boitempo
320 págs. – R$ 54
domingo, 27 de março de 2011
O Brasil e suas epidemias
Moacyr Scliar
O Brasil e suas epidemias
Palmares, a longa resistência
Para o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos, Palmares, por sua longevidade de quase cem anos, é o mais importante capítulo da história social brasileira
No fim dos anos 60, o futuro premiado escritor Joel Rufino ainda era um professor de História sem emprego, a caminho de uma entrevista na Volkswagen, quando, por acaso, encontrou uma ex-aluna que estava envolvida na criação de uma revista para crianças, a Recreio. Convidado a escrever alguma história infantil, o historiador, que tinha visto sua coleção didática História Nova do Brasil, escrita em parceria com Nelson Werneck Sodré, ser recolhida pela ditadura, viu ali uma oportunidade, mesmo sem nunca ter feito isso antes. E a editora da revista, a futura premiada Ruth Rocha, gostou do que leu e pediu mais. Assim, por acaso, começou a carreira de escritor Joel Rufino, que nunca mais seria só historiador. Nem apenas um escritor de boas histórias, pois nelas sempre há, por trás, os livros lidos por direito e dever de ofício. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado, o historiador indica bons livros para ensinar a cultura afro-brasileira e discute alguns mitos sobre a história dos negros. E o escritor declara seu tributo a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Ou o contrário: o historiador fala do sertão rosiano e o escritor conta como extraiu literatura do rico período da abolição.
Carta na Escola: O que o senhor descobriu sobre o tipo de texto que mais agrada a crianças e jovens?
Joel Rufino: Eu fazia a crítica de que a literatura para crianças era boba, tratando a criança como débil mental. Até hoje tem isso, aquela profusão de “inhas”, “inhos”, e eu achava que alguém deveria fazer literatura pra criança sem tratá-la dessa forma. Havia o antecedente de Monteiro Lobato…
CE: O senhor foi leitor de Monteiro Lobato na infância?
JR: Não, foi até uma falta que me fez. Não sei por quê, mas não fui leitor de Lobato, não. Quando era adolescente, lá pelos 12 anos, comecei a ler Júlio Verne e Jack London, e ficou esse furo na minha formação. Mas o que me motivou a escrever foi, de uma forma semelhante, o que aconteceu com o Gonzaguinha na música. Eu me lembro que ele foi perguntado sobre como começou a compor e ele disse que achava tão ruim o que ouvia que pensou: “Eu posso fazer melhor que isso”. Aí, eu comecei a procurar uma linguagem que não fosse aquela coisa infantiloide, e acho que encontrei esse estilo em grandes autores que escreveram para crianças também, como o Graciliano Ramos. Alexandre e Seus Heróis foi um desses livros que me ensinaram como tratar a criança como um leitor, provável consumidor de literatura. Acho que foi assim que consolidei o meu estilo, longe do “nhenhenhém” infantiloide e me amparando nos grandes autores.
CE: Em O Gosto da África há alguns ecos de Guimarães Rosa, como a referência à cidade do Ão, perto de Montes Claros. Ele, de alguma forma, também se situa entre esses autores que o influenciaram?
JR: O Guimarães Rosa motivou todos aqueles que vieram depois. Ele reinventou a literatura, como todo grande autor. Essa referência ao Ão devia estar na minha memória, no meu imaginário. Aquela região do Guimarães Rosa ele tornou tão poderosa que é difícil esquecer; o lugar, como os geógrafos gostam de chamar, que une o local geográfico mais o imaginário. Esse lugar recriado pelo escritor aparece nas minhas histórias, de vez em quando.
CE: Até pela sua formação de historiador, o senhor gosta de usar personagens históricos na literatura. Eu gostaria, inicialmente, de falar de um deles, Zumbi, que foi tema de um livro seu. Como foi fazer esse trabalho de pesquisa? E por que Zumbi demorou tanto tempo para aparecer?
JR: Esse meu livro é dos anos 80, tem 20 anos. De lá pra cá, nós aprendemos um pouco mais sobre o Quilombo dos Palmares e Zumbi. De passagem digo que é conversa fiada aquela história de que não se consegue fazer pesquisa sobre os negros porque Rui Barbosa teria queimado os arquivos, isso é uma lenda. Há muita documentação sobre os negros, sob todos os aspectos. E no caso de Palmares, há pelo menos 10 mil manuscritos, fragmentos de documentação histórica que ainda não foram completamente lidos e decifrados. Só a Universidade Federal de Alagoas tem mais de 5 mil desses documentos sobre Palmares.
CE: Talvez por conta da longevidade do quilombo?
JR: É uma extensão de quase cem anos. Se a gente pensar que o Brasil tem cinco séculos, é o capítulo mais importante da história social do País, pela sua duração. Aqui entramos na segunda parte da sua pergunta: por que demorou tanto tempo para emergir? A razão só pode ser ideológica. A consciência conservadora brasileira sempre foi muito sensível a mexer na história, havia alguns tabus: João Cândido, Canudos. E Palmares era um tabu também, que ficava trancado pela consciência conservadora. No fim dos anos 70, alguns historiadores começaram a revelar essa história. Como Décio Freitas, por exemplo, que estava exilado no Uruguai e foi pesquisar a história de Palmares no Conselho Ultramarino da Espanha. Ele conseguiu reunir uma documentação que lhe permitiu escrever o primeiro livro de impacto sobre Palmares, que foi A Guerra dos Escravos. Outro avanço veio de um filme do Cacá Diegues, feito nos anos 80, chamado Quilombo. Cacá partiu desse livro do Décio, consultou outros historiadores e fez um filme que é alegórico, não é realista, mas no qual já surgem alguns elementos sobre Palmares de que não se falava antes. Se fosse resumir esse filme, eu diria que é a história de um negro portador da ideia da utopia, de uma sociedade justa, igualitária. Por último, vou citar o movimento negro, que descobriu Palmares nos anos 80 e transformou a Serra da Barriga em local de peregrinação. Hoje, o quilombo é -visitado por muita gente, recebe acadêmicos do mundo todo. Quando o movimento negro descobriu Palmares, colocou Zumbi como uma bandeira.
CE: É quando a história da escravidão começa a mudar da Princesa Isabel e dos abolicionistas para o aspecto de luta e resistência?
JR: O que aconteceu é que começou a se fazer a seguinte analogia: a história do negro é uma história de luta. Será que no 13 de Maio também não houve luta? Será que foi apenas um ato formal da Princesa Isabel para confirmar um fato já dado? Daí se começou a estudar melhor o processo da Abolição. Alguns historiadores começaram a rever o 13 de Maio e mostrar que houve luta também naquela época. Eu tomo essa revisão como consequência de Palmares.
CE: Especulando sobre como seria uma outra história construída a partir da Abolição, seria possível para o Brasil ter seguido um caminho que colocasse essa massa de trabalhadores para dentro do sistema econômico?
JR: Considerando que o historiador é aquele que prevê o passado, se pegarmos 1850, quais eram as possibilidades que havia? Era um momento em que nascia o capitalismo brasileiro e ele trazia várias possibilidades de desdobramento. Havia nessa época uma camada de negros livres, donos de pequenos negócios. Joaquim Nabuco chamou essa camada de um “formigueiro de pequenas iniciativas feitas por negros”, que tinham suas oficinas e outros pequenos comércios. Olhando de hoje, uma das possibilidades era essa camada de negros livres ter se tornado uma burguesia negra, uma classe média negra. Então seria diferente hoje. Mas esse “formigueiro de iniciativas” foi eliminado pela concorrência. Em 1900, essa camada já estava derrotada pelos estrangeiros imigrantes, que chegavam com capital, muitas vezes apoiados por bancos ou pelo governo, que lhes dava facilidades. Assim, essa camada negra protoburguesa desaparece.
CE: O senhor também escreveu sobre essa época em seu livro A Abolição, que virou minissérie de televisão. Esse livro surgiu como uma proposta da emissora?
JR: Você está falando de um livro que foi a base de uma minissérie do Walter Avancini, não é? Você tem esse livro?
CE: Eu o li na Biblioteca Nacional. Por quê?
JR: Porque eu acabei ficando sem nenhum! (risos) O Avancini, já falecido, era meu amigo e queria fazer uma história sobre a Abolição e outra sobre a Proclamação da República. E me estimulou a escrever alguma coisa. Foi uma encomenda e eu a escrevi quase ao mesmo tempo que dava os argumentos para o Avancini. Foi interessante mexer naquele ambiente de jornalistas (a revista Semana Illustrada, dirigida por Angelo Agostini, reduto de abolicionistas) e dos intelectuais, que naquele momento fizeram aliança com a classe trabalhadora, no caso os escravos. Quando essa aproximação acontece, em geral provoca mudança. E foi esse o primeiro caso na história do País, porque na Independência essa aliança não aconteceu, nem nos movimentos anteriores. Ou eram grupos de intelectuais sem conexão com os trabalhadores ou o contrário. Na Abolição houve esse encontro de intelectuais, principalmente jornalistas, como Angelo Agostini, Carlos Lacerda, e os quilombolas, os organizadores dos escravos. Houve, também, participação dos trabalhadores livres. Nessa época já chegavam por aqui os italianos e espanhóis, no meio deles muitos anarquistas, que participaram dessa luta. Muita gente no movimento negro diz que a abolição não tem nenhuma importância, mas eu não concordo. Inclusive, porque manifestou um processo mais geral de transformação que o País estava passando. Daí que tem relação direta com a Proclamação da República e o início da economia capitalista no Brasil. É na passagem do trabalho escravo para o livre que deslancha o capitalismo no País.
CE: Que autores o senhor recomendaria para quem quer saber mais sobre a Abolição?
JR: Essa nova geração de historiadores é muito boa. Há João José Reis, que publicou um “senhor livro” sobre esse período chamado Domingos Sodré, um Sacerdote Africano, que conta a história de um babalaô de Salvador que viveu no fim do século XIX. Lilia Schwarcz também é uma historiadora respeitável. Há, ainda, Eduardo Oliveira, que vem publicando sobre esse período. Qualquer professor vai ler livros desses autores com agrado porque, hoje, um historiador publicado é perfeitamente legível por alguém que não é do ramo. Outro exemplo, ainda, é Alberto da Costa e Silva, que talvez seja o principal historiador desse processo Brasil-África. Ele tem um livro que eu recomendaria efusivamente, Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos. Esse é um pequeno livro que conta a história do principal mercador de escravos para o Brasil, que era um mestiço brasileiro que foi para a África e fez fortuna. Daí, o leitor fica sabendo como era o tráfico negreiro, como se fazia no dia a dia, quanto se ganhava. De passagem, derruba aquele mito de que a escravidão foi um assalto do homem branco impiedoso em busca de mão de obra. Mostra-se ali que a escravidão foi um negócio, um empreendimento. Nei Lopes é outro que tem uma preciosa Enciclopédia da Diáspora Africana. Todos esses livros são de boa leitura. Além disso, a Unesco financiou um programa internacional chamado Rota do Escravo, que fez um mapeamento das fontes e dos documentos sobre o tráfico negreiro na África, nas Américas e na Europa. Só para dar um exemplo, todos os fortes africanos que embarcavam negros para o Brasil têm a sua documentação. Não falta documentação sobre esse período, é bom lembrar que a história não se faz só com documentos de papel. A língua, por exemplo, é um documento da história. A genética também tem ajudado os historiadores a descobrir de onde vieram os escravos.
CE: Que mitos sobre a história do negro são os mais persistentes?
JR: Nós já citamos dois, o de que o comércio de escravos era unilateral; outro, de que não dá pra fazer a história do negro porque não há documentação. Um terceiro seria o de que há uma história do negro e uma história do Brasil que correm paralelas. É possível separar a história do negro pedagogicamente, mas é só se avançar um pouco para perceber que quem fala da história do negro fala da história do País. Outro, ainda, que está imbricado em todos os anteriores, é o mito da passividade do negro. Quando eu estava na escola, se dizia que o escravo no Brasil foi o negro porque o índio não se submeteu à escravidão. Esse é um mito de duas faces. Uma, a de que o índio não se submeteu; outra, a de que o negro se submeteu. Nenhum povo se submete à escravidão. No caso do índio, ele lutou contra a escravidão, mas também foi escravo. Por muito tempo, até o século XVIII, mais tempo do que no resto da América espanhola, durante quase 250 anos.
Revista Carta na Escola