sexta-feira, 11 de março de 2011

Rio de Janeiro - Encanto não se transfere

Como foram os melancólicos (mas nem tanto)
últimos dias do Rio de Janeiro como sede do governo


Sérgio Rodrigues

Foto: Aliam Milan/Agência Tyba
Noite ilustrada
À porta do Teatro Municipal, em noite de gala, o chofer do Simca Chambord à espera
dos passageiros
Rio de Janeiro - 3 | 3 | 1959

No dia 21 de abril de 1960, o último do Rio de Janeiro como capital da República, dois de seus principais cronistas – nenhum deles carioca de nascimento, o que era típico de uma metrópole que se pretendia a "síntese do Brasil" – viveram experiências opostas. O capixaba Rubem Braga se desgarrou dos amigos que iam conferir o desfile das escolas de samba na Avenida Rio Branco, um evento sintomaticamente bagunçado, promovido sem dinheiro e com escassez de policiamento pelo Departamento de Turismo da prefeitura para comemorar o nascente estado da Guanabara. Depois de ver no Leme os fogos de artifício que saudaram a meia-noite, Braga entrou solitário numa boate e, ao sair, constatou melancolicamente que a lua minguante era agora uma "lua estadual".

Naquele momento, o pernambucano Nelson Rodrigues estava longe de tudo isso – do Rio e da melancolia –, em plena festa de inauguração de Brasília, esta sim uma comemoração rica, financiada por um "crédito especial de
Cr$ 150 milhões", como noticiou na primeira página o jornal antibrasilienseTribuna da Imprensa. Contrariando sua lendária aversão a viagens, Nelson tinha aceitado carona num dos ônibus que o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) – onde um de seus filhos prestava serviço militar – alugara para levar oitenta estudantes secundaristas aos festejos. A caravana saiu do Rio no dia 20 para uma desconfortável viagem de vinte horas. Em troca da hospedagem no Planalto Central, o maior dramaturgo brasileiro negociou enviar para o jornal Última Hora, de Samuel Wainer, uma crônica a ser publicada no dia 22, o primeiro da Federação redesenhada.

O cisma aberto em sua elite cultural deixa claro que o Rio de Janeiro chegou aos últimos momentos de seus 71 anos como capital da República – e dos 197 desde que se tornara sede da colônia, em 1763 – imerso em confusão. Uma confusão construída paralelamente ao trabalho dos candangos, crônica por crônica, samba por samba, conversa por conversa, pelo menos desde o início de 1957, quando começou a ficar evidente até para os céticos que Juscelino Kubitschek não estava brincando ao dizer que levaria a capital embora. Aquilo seria bom para o Brasil, mas ruim para a cidade? Um desastre para ambos? Excelente para todos, com exceção dos barnabés? O Rio, agora autônomo, ganharia mais atenção de seus governantes? Brasília dividiu os brasileiros em duas facções, a dos "mudancistas" e a dos "antimudancistas". Era natural que a capital preterida fosse palco das principais batalhas.

Quem não chora não mama

Havia muita reclamação, mas a população do Rio aceitara Brasília – Ibope*

80% acreditavam que JK tinha acelerado o desenvolvimento brasileiro

73% aprovavam a mudança da capital

62% acreditavam que a nova capital traria benefícios ao país

24% desaprovavam a iniciativa

* Pesquisa realizada em março de 1960

Não se tratava de mera rixa de literatos. A novidade de concreto armado que brotara em tempo recorde no meio de Goiás era um ímã de aventureiros em busca de enriquecimento rápido, mas deixava apavorados os funcionários públicos federais habituados à vizinhança da praia e ao consumo elegante na Galeria Menescal – destes, apenas 1,1% tinha sido transferido para Brasília a tempo da inauguração. Políticos amotinados ameaçavam criar um Senado paralelo no Rio, alegando falta de condições de trabalho na Novacap. Na área da cultura popular, o racha ganhou corpo nos sambas antípodas de Billy Blanco e Ataulfo Alves. O primeiro, que em 1957 chegou a ter sua execução proibida extraoficialmente na Rádio Nacional, apregoava que, por não ser "índio nem nada", não iria para Brasília, "nem eu nem minha família". O segundo rebuscava a rima com o nome da nova capital para tomar o rumo oposto: "Levo comigo Conceição e Dorotília / violão e tamborim. / Vou fazer samba em Brasília".

A imprensa guardou os melhores registros da briga. O título da crônica que pagou a hospedagem de Nelson Rodrigues em Brasília – e que mereceu chamada de primeira página na Última Hora – era "A derrota dos cretinos". Não foi Rubem Braga o alvo escolhido pelo autor entre os antimudancistas que, sobretudo no Rio e em São Paulo, pululavam na imprensa e nos meios políticos – estes puxados pela retórica inflamada do udenista Carlos Lacerda, dono da Tribuna da Imprensa e líder das manobras que haviam tentado impedir JK de tomar posse. "A derrota dos cretinos" fazia mira no poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, outro carioca de adoção, que em uma crônica no Correio da Manhã tinha criticado a poeira vermelha do Planalto Central. Em transe épico – o mesmo que o levara a declarar que, "a partir de Juscelino, surge um novo brasileiro" –, Nelson imaginou o dia em que veria Drummond num canteiro de obras da nova capital, "dando rijas e sadias marteladas".

Havia mudancistas mais sóbrios. O escritor paraibano José Lins do Rego defendia a tese corriqueira de que o governo federal precisava se isolar dos "problemas locais" de uma grande cidade. Os antimudancistas também tinham colorações variadas. Enquanto o maranhense Josué Montello lamentava a partida das autoridades federais, "grandes figuras que se ajustavam à importância" do relevo carioca, Rubem Braga mal disfarçava o despeito ao prever que "pelo menos no caráter" faria bem ao Rio a migração da "fauna mais graúda dos animais de rapina" para o Planalto Central. O ciúme era tão disseminado que chegava a ser explícito no texto publicado por David Nasser na revista O Cruzeiro de 7 de maio de 1960: "Obrigado, Juscelino, por haveres trocado esta cidade por uma paixão recente. O Rio te agradece por Brasília, a noiva que preferiste a um velho amor".

Café society. Tratava-se, porém, de um ciúme temperado por autossuficiência. Ao mesmo tempo em que listava as mazelas urbanas que poderiam ter sido resolvidas pelos dutos de dinheiro canalizados para Brasília – falta de água crônica, enchentes, trânsito engarrafado, favelização –, a imprensa da cidade fazia variações sobre o tema "Encanto não se transfere", ilustrado por uma foto da Praia de Copacabana no Jornal do Brasil de 21 de abril de 1960. O "encanto" não englobava pouca coisa. O Rio acabava de adicionar mais um tijolinho ao edifício de sua fama internacional com o sucesso do filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, Palma de Ouro em Cannes. Exportava para o resto do Brasil, via colunismo social e revistas de grande vendagem como O Cruzeiro e Manchete, um espetáculo de boa vida e elegância conhecido como café society e simbolizado pela sofisticação da boate Sacha’s, frequentada até por JK. E embalava tudo isso na batida da bossa nova, produto de sua classe média praiana, que naquele ano de 1960 venderia nos Estados Unidos mais de 1 milhão de cópias de Samba de Uma Nota Só e Desafinado. Como poderia o Peixe Vivo competir com aquilo? "Espírito e coração do Brasil", pontificou o Correio da Manhã em editorial, "continuamos sendo nós."

AE
Despedida
Juscelino, ao lado de dona Sarah, alguns ministros
e funcionários, desce pela última vez a escadaria
do Palácio do Catete
Rio de Janeiro - 20 | 4 | 1960

JK, político hábil, tratou de afagar esse orgulho na despedida. No programa de rádio Voz do Brasil de 19 de abril de 1960, mandou um recado à cidade, dizendo que seus "centros de cultura prosseguirão jorrando a luz que dirige a marcha do Brasil para o seu grande destino". No dia seguinte, ao descer a escadaria do Palácio do Catete pela última vez, derramou algumas lágrimas. E no fim tudo acabou em festa popular, com "centenas de milhares de pessoas" (a conta é do jornal O Estado de S. Paulo) tomando "a Avenida Rio Branco, Largo da Lapa e vias adjacentes". À meia-noite do dia 20, o samba deu lugar a um buzinaço e à marchinha Cidade Maravilhosa, recém-transformada em hino da Guanabara. Na guerra ruidosa entre mudancistas e antimudancistas, entre a ciumeira e a euforia, não sobrara espaço para uma reforma institucional que equacionasse o futuro político e econômico de uma cidade desabituada de ser província. Quarenta anos depois, com amargura, o economista Carlos Lessa anotaria no livro O Rio de Todos os Brasis: "O Rio cedeu os direitos de primogenitura em troca de um prato de lentilhas". Deu-se parte da recuperação da autoestima carioca em 2 de outubro deste ano, quando a cidade foi anunciada como sede da Olimpíada de 2016. "O Rio é uma cidade que perdeu muitas coisas ao longo da história", disse o presidente Lula. "Foi capital, foi coroa portuguesa, e aparece nos jornais em notícias ruins. É hora de retribuição a um povo maravilhoso."

Foto: Arquivo Nacional
Foto: Peter Scheier/Instituto Moreira Salles
A saída...
Caminhão de mudança leva móveis e papelada
do Palácio Monroe, sede do Senado no Rio
Rio de Janeiro - 5 | 4 | 1960
...A chegada
Desolação do funcionário público no cenário
seco do novo Distrito Federal
Brasília - 1960


Foto: Peter Scheier/Instituto Moreira Salles
Solidão
Apenas 1,1% dos funcionários
públicos federais trocou o litoral
pelo cerrado nos primeiros dias
da mudança

Brasília - 1960


A rixa dos cronistas

Camilo Calazans/CPDOC JB
"Um túnel ou um viaduto
leva anos para ser construído
no Rio, qualquer obra
se arrasta miseravelmente,
por falta de verba – e vamos
fazer uma cidade nova
nos confins do Judas."

Rubem Braga, contra a mudança


"Na Praça dos Três Poderes, o brasileiro
que não viajou nada, que não passou
do Méier, é atravessado pela certeza
fanática: a Praça de São Marcos não
chega aos pés da nossa."

Nelson Rodrigues
, a favor da mudança
Divulgação



O duelo dos sambistas

Acervo Pessoal

Eu não sou índio nem nada
Não tenho orelha furada
Nem uso argola pendurada no nariz
Não uso tanga de pena
E a minha pele é morena
Do sol da praia onde nasci
E me criei feliz
Não vou, não vou pra Brasília
Nem eu nem minha família
Mesmo que seja pra ficar cheio de grana
A vida não se compara
Mesmo difícil, tão cara
Eu caio duro mas fico em Copacabana

Billy Blanco, em Não Vou pra Brasília, contra a mudança



Trabalhador eu sei que sou
Me dê um palmo de terra, doutor
Garante a minha família que eu vou
Levo comigo Conceição e Dorotília
Violão e tamborim
Vou fazer samba em Brasília
Parto, saudoso do meu
Rio de Janeiro
Mas eu vou ficar famoso
Lá serei o primeiro

Ataulfo Alves, Samba em Brasília,
a favor da mudança

REVISTA VEJA
http://veja.abril.com.br

Acervo UH Folha Imagem



Um comentário:

Unknown disse...

Queria eu ter conhecido o Rio de Janeiro nessa época, deveria ter sido um verdadeiro encanto e ou verdadeira "Maravilhosa".
Abraço