Felizmente ou infelizmente, considerando algumas variáveis estatísticas, parece que estamos mesmo sós, nessa imensidade assombrosa. Para existir vida é necessário que haja uma conjunção de fatores, da qual a Terra é um exemplo único conhecido
Por que Deus — se existe — se ocupa com um ser tão ínfimo na escala universal quanto o homem? A desproporção parece ridicularizar a Bíblia e outros livros sagrados. Faz sentido? Faz, e a resposta não é necessariamente religiosa. É também científica.
A física é a ciência capaz de conferir ao homem sua verdadeira dimensão, na natureza. De acordo com ela, faria sentido um Deus tão grande dedicar seu tempo a uma criatura tão pequena, por duas boas razões. Primeiro, porque nosso tamanho físico não traduz nossa estatura intelectual. Segundo, porque a probabilidade de sermos únicos no Universo é bastante apreciável. As duas questões relativizam, de saída, o que entendemos por grandeza e mediocridade. Está certo que devemos — e a física paradoxalmente reforça essa postura — devemos ser humildes. Se o homem é maior do que parece, sua casa, a Terra, é por outro lado bastante pequena e frágil. Pode acabar num simples e inesperado evento cósmico, como a colisão com um asteróide (infelizmente, não é ficção científica). De forma que não temos nenhuma garantia de futuro.
Feita a advertência, podemos nos reconfortar. O principal desafio da física, hoje, é confirmar a existência de uma partícula conhecida como bóson de Higgs. Para obtê-lo os cientistas construíram o LHC, que é o maior acelerador de partículas do mundo (um corredor circular de 27 quilômetros de extensão, onde prótons se chocarão entre si a uma velocidade próxima à da luz). Mas, o que é o bóson de Higgs? A menor partícula existente, o tijolo com o qual foi erguido todo o resto. Inclusive o homem. Daí que a chamaram, também, de “a partícula de Deus”. Comparado a esse tijolinho — muitíssimo menor que um átomo -, o homem é uma grandeza. Já o é, se comparado à menor estrutura orgânica conhecida, o DNA, que é igual a 2 x 10 elevado à nona potência. O é, também, se comparado aos seres unicelulares, milhares dos quais habitam o nosso organismo, que podemos imaginar como um universo à parte. Faz sentido, também, nos concebermos como um universo à parte.
Graficamente, o desenho de muitas estruturas microscópicas que compõem os nossos órgãos parece ser análogo ao das estruturas macroscópicas que existem no firmamento. A grande “teia cósmica”, que corresponde ao maior aglomerado de galáxias observável, é semelhante por exemplo aos nossos neurônios. Existe, assim, em escalas muito diferentes, certos padrões gráficos que fazem confundir aquilo que somos com aquilo que está acima — muito acima - de nós. É como se nos repetíssemos, em tamanho e complexidade, ao infinito. Deus, quem sabe, seria o limite extremo desse processo. Voltando aqui à primeira questão — a relatividade de nosso tamanho -, pode-se dizer que o que nos faz muito maiores do que o nosso corpo é a capacidade de conceber o Universo. Há formas poéticas e mitológicas de fazê-lo, como a religião. Mas há, também, uma forma verificável, que é a científica. E a física é o caminho, o método, para traçarmos já o seu esboço. Nem mesmo os céticos podem resistir ao encanto dessa capacidade.
Um homem normal olha para o céu, durante o dia, sem o auxílio de uma telescópio e do conhecimento da natureza acumulado nos últimos 6 mil anos, e enxerga apenas uma porção da atmosfera terrestre. Uma profundidade de, no máximo, 15 ou 20 quilômetros. À noite, pode ver muito além, de sorte que enxergaria as estrelas. Vai uma enorme distância, porém, entre essa capacidade ocular natural e as possibilidades da especulação e experimentação intelectual. E é nesse ponto que o homem começa a se redimensionar, deixando para trás a condição de simples animal proporcional ao seu organismo. É aí que, apesar de sua escala física relativamente minúscula, ele se torna um gigante, capaz de mapear o Universo como um cartógrafo debruçado sobre seu objeto de estudo — portanto localizado, imaginariamente, num ponto externo, à maneira daquele cientista pintado por Jan Vermeer, em 1668. Sim, o homem, amparado pela ciência, goza desse privilégio. Como assim, considerá-lo pequeno?
O mais impressionante dessa capacidade de se colocar como um observador externo — apesar de estar dentro — é que não é exatamente com o auxílio da visão que o faz. É o fato justamente de ser “cego” que aumenta a magia. Todas as conclusões a que tem chegado a física, inclusive a das proporções descomunais do cosmo, se dá por intermédio da inteligência, da capacidade humana de se fazer cúmplice da Natureza. Se as leis se inscrevem nos fenômenos, o homem vai lá e as descobre, com imaginação e raciocínio. É assim que pode chegar a uma conclusão impressionante: o Universo observável pelo homem, a parede contra a qual se choca nossa capacidade, chega a mais de 13 bilhões de anos-luz! Uma vez que o que enxergamos é o passado, essa profundeza abissal é quase o ponto de origem de tudo o que conhecemos. Convenhamos: é algo mais do que aqueles 20 quilômetros que podemos ver todo dia, ao abrir a porta de nossa casa e olhar para o céu. Devemos isso a gênios como Copérnico e Galileu, Newton e Einstein, ou seja, devemos a nós mesmos, humanos. Sob essa perspectiva, Deus não se ocuparia, ao se ocupar de nós, com uma criatura que ridicularizaria sua grandeza.
O segundo ponto é a probabilidade de sermos realmente únicos, no Universo. Muitos cientistas acreditam nessa possibilidade. Em sendo verdade, seríamos literalmente um milagre. Tanto melhor se encontrássemos outros seres semelhantes a nós, e que fossem pacíficos. Isso tiraria nosso brilho, mas diminuiria nossa solidão excruciante. Porém as evidências não são animadoras. Se há vida além da nossa, no Sistema Solar, tudo indica que não passaria de bactérias, em Marte ou Titã, satélite de Saturno. A outra possibilidade considerada está fora de nosso sistema, e bem longe, a 20,5 anos luz de distância, onde poderia existir uma civilização complexa. Trata-se de um planeta, o GL 581c. Porém, um simples contato a essa distância, à velocidade da luz (quase 300 mil quilômetros por segundo) levaria 40 anos para obter resposta. Mas não se trata de distância, antes de condições efetivas para a manifestação da vida.
Felizmente ou infelizmente, considerando algumas variáveis estatísticas, parece que estamos mesmo sós, nessa imensidade assombrosa. Para existir vida é necessário que haja uma conjunção de fatores, da qual a Terra é um exemplo único conhecido. Contam desde a distância relativa de uma estrela que gere calor até a composição atmosférica de um planeta. E mesmo que haja tais condições em algum outro lugar, elas por si sós não garantem a manifestação de vida inteligente. Mesmo na Terra, ambiente inteiramente favorável, há milhares de formas de vida, mas apenas uma espécie, a humana, evoluiu sua capacidade cognitiva. Em quanto tempo? É outra variável: mais ou menos 1,7 milhão de anos, a idade do homem. Cada uma dessas variáveis elimina a chance de estarmos acompanhados, tornando-nos hipoteticamente a única companhia inteligente de Deus, em todo o Universo. Então, faria sentido que ele se revelasse para as únicas criaturas capazes de admiti-lo: nós.
Sem outros seres, seríamos uma preciosidade sem par, o que nos imporia uma reavaliação ética radical. Tal reavaliação importaria em repensar atos e atitudes, para nos fazermos jus à nossa estatura e verdadeira importância na criação, seja lá o que isto significa. Não nos arrogaríamos, longe disso: tornarmos-íamos mais prudentes e responsáveis. Nós e nosso mundo são minúsculos, mas, e daí? Nós — e apenas nós, em certo sentido — justificamos o empreendimento de Deus.
É inevitável, por fim, voltar ao passado, aos gregos. Não convém ceder à tentação depreciativa de nossas mazelas, tantas que assustam. Protágoras de Abdera (480 a.C.) tinha mesmo razão: “O homem é a medida de todas as coisas”.
Revista Bula
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