Cláudia Maria Ribeiro Viscardi
Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF. Doutora em História Social pela UFRJ. Bolsista de produtividade do CNPq. Laboratório de História Política e Social (LAHPS), Departamento de História/ICH, salas 26 e 27. Campus Universitário (UFJF), Bairro Martelos. 36036-330 Juiz de Fora – MG – Brasil . claudia.viscardi@ufjf.edu.br
Historicamente, o olhar sobre a pobreza permitiu diferentes abordagens em relação a suas causas, sua contingência real ou ilusória e alternativas de sua superação. Como narra a historiografia sobre o tema, especialmente relacionada à Europa Ocidental, no período medieval a pobreza era vista como virtude daqueles que por ela optavam com o fim de expurgar pressupostos pecados. Mais tarde, constituiu-se em indício da presença de vícios, como a preguiça, o desânimo, a imprudência, ou da ausência de caráter. Ao final do século XIX, passou a ser vista como um mal derivado das circunstâncias históricas, e responsabilizaram-se agentes econômicos impessoais, como o mercado, os mecanismos desiguais de distribuição de renda, o desemprego e tantos outros.2
Tais diferentes olhares sobre a pobreza foram acompanhados de estratégias construídas para a sua superação ou amenização, as quais igualmente variaram no tempo e no espaço. As elites políticas e econômicas, os religiosos, os filantropos laicos, os intelectuais e os cientistas, entre outros setores sociais, não se eximiram de opinar sobre o problema ou de agir sobre ele. Tão logo a pobreza foi estigmatizada, deixando de ser uma virtude responsável pela salvação de suas vítimas, os filantropos (laicos ou religiosos) empenharam-se para minorála mediante inúmeras ações, que incluíam a doação de alimentos, roupas, remédios e dinheiro, entre outros itens. Como o pauperismo não regredia, a solução foi investir na construção de abrigos, que assumiram o formato de hospitais, hospícios, albergues, orfanatos ou asilos. Em todo o mundo ocidental tais soluções se repetiram, de forma minimamente diferenciada.
Em geral, quando se aborda o tema da pobreza, as preocupações se voltam para os não pobres, que lutam por dirimi-la. Pouca atenção é conferida para as estratégias que os próprios pobres engendravam, em sua luta cotidiana pela sobrevivência. Quando o tema é assistência ou seguridade social, pouco se fala sobre os incontáveis momentos em que os próprios pobres se ajudavam mutuamente. Mesmo vitimados por mazelas comuns, encontravam meios de expandir laços de solidariedade entre si, responsáveis pelo fortalecimento de elos comunitários, sem os quais dificilmente se manteriam vivos. Ações simples como o cuidado com as crianças dos vizinhos, os pequenos empréstimos e o abrigo voluntário a quem dele não dispusesse, entre outras colaborações, são fartamente encontradas nas mais diversas comunidades carentes, desde tempos imemoriais. Por essa razão, Robert Castel chamou-nos a atenção para o personagem que adveio no novo roteiro inaugurado com a implantação do capitalismo no campo: o "desfiliado". Para o autor, esse personagem se definia como o trabalhador que, ao não encontrar mais condições de ocupação no campo, em razão das mudanças lá introduzidas, abandonava a sua comunidade de origem e se lançava numa aventura nova em busca de sobrevivência, normalmente migrando das áreas rurais para as cidades. Tal movimento migratório rompia com os laços de proteção comunitária em que esse personagem se enredava, tornando-o um desfiliado (Castel, 1998, p.43).
Os pobres possuem à sua disposição algumas estratégias de superação da pobreza. Mas elas podem ser agrupadas em duas modalidades de escolha, raramente excludentes: o apelo por proteção de alguém que dispõe de bens disponíveis a serem doados, e o recurso à ajuda mútua, na qual o próprio grupo se apoia, estabelecendo redes de colaboração entre seus membros.
Daí decorrem dois tipos de relação social. No primeiro caso, o outro a quem se recorre pode assumir a face de uma Igreja, do Estado, do cidadão benemérito ou do coronel, e outras tantas variações que se encaixam bem no conceito de paternalismo. Tal relação tende a ter um trajeto verticalizado, no qual o doador estabelece com o receptor uma hierarquia cujo tom, à revelia das intenções ou motivações, será o do poder de quem doa sobre quem recebe. Nessa situação, o receptor se encontrará submetido ao doador, mesmo que este último não se utilize da relação em seu próprio proveito. No segundo caso, o outro é um igual, aquele que compartilha das mesmas necessidades e potencialidades. Juntos, desenvolvem relações de reciprocidade que tendem a ser mais balanceadas. Todos contribuem e todos recebem a contribuição. Realçam o ethos da obrigação mútua e a responsabilidade coletiva pelo bem-estar dos outros. Nesse contexto as relações tendem a ser mais horizontalizadas, e as hierarquias, menos definidas. A dependência persiste, mas assume um caráter mútuo.
A definição e a mensuração da pobreza sempre se constituíram em problema para os cientistas sociais e, sobretudo, para os historiadores, na medida em que o conceito variou no tempo e no espaço. Para os fins desta pesquisa, optou-se por adotar um conceito mais geral, por ser mais adequado à realidade brasileira nas primeiras décadas do século XX, foco do presente artigo.
Udaya Wagle sugere a junção de três referenciais para que se possa conceituar melhor a pobreza: o referencial econômico, o capacitário e o da exclusão social. Dessa forma, a autora entende a pobreza como a ausência de renda e riqueza (econômico); de educação e saúde, condições que capacitam os indivíduos a adquirirem renda ou riqueza (capacitário); e a presença da exclusão étnica ou de gênero, o que impede que os indivíduos participem politicamente da vida cívica e cultural de uma sociedade (referencial da exclusão social).3
Nesse sentido, os recursos à filantropia e ao mutualismo podem ser lidos como duas das inúmeras alternativas disponíveis aos pobres para a superação de determinadas carências, resultantes da situação de pobreza. Graças à filantropia era possível obter, em parte, condições para complementar a renda, manter ou melhorar a saúde ou ter acesso à educação. No que tange à estratégia mutualista, os trabalhadores poderiam garantir por meio dela uma renda complementar, o acesso ao atendimento médico, ou diminuir os efeitos da exclusão social, na medida em que tais sociedades ofereciam espaços de formação de uma cultura cívica e, eventualmente, de participação política.
É sobre uma dessas alternativas de enfrentamento da pobreza que pretendemos refletir neste artigo. Para tal, escolhemos o recurso à ajuda mútua, através da participação dos trabalhadores em associações mutualistas, muito embora a filiação a uma mutual estivesse longe de garantir imunidade contra o empobrecimento. Além disso, recorrer à autoajuda ou submeter-se à caridade muitas vezes não derivavam de escolhas racionais dos agentes vitimados pela pobreza, mas de inúmeros outros fatores que os levavam à condição ou de sujeitos de sua própria sobrevivência, ou de objetos da boa vontade alheia, ou mesmo de ambos.
Fazem parte do debate sobre o mutualismo as teses que alegam ter sido o movimento composto não por trabalhadores pobres, mas pela "aristocracia operária".4 Ademais, sabe-se que alguns indivíduos bem aquinhoados poderiam compor uma mutual, embora não se constituíssem na maioria de seus sócios. A despeito de tais ponderações, é inegável que o movimento associativo mutualista foi composto, sobretudo, por trabalhadores – assalariados ou não – que por não serem ricos, precisavam garantir a sua sobrevivência e a de seus familiares em momentos de infortúnio. Dessa forma, as mutuais recrutaram seus sócios preferencialmente entre os trabalhadores humildes, que não fossem totalmente destituídos ou marginalizados, mas que delas necessitassem, por não disporem nem da proteção do Estado nem de riquezas acumuladas. Na ausência das mutuais, só lhes restaria a caridade alheia.
A proximidade entre tais estratégias de sobrevivência levou grande parte de seus agentes a ter dificuldade no estabelecimento das fronteiras entre mutualismo e filantropia. Tanto no ocidente europeu como no Brasil, várias mutuais praticavam caridade, e os legisladores tiveram problemas em definir as sociedades como de socorro mútuo, beneficentes, filantrópicas, seguradoras privadas com fins lucrativos, ou mesmo sindicais. Simon Cordery afirma que no Reino Unido, só a partir de 1860 se estabeleceu uma melhor distinção entre caridade e ajuda mútua, após a ocorrência de mudanças culturais e políticas. No Brasil, em trabalho anterior, tivemos a oportunidade de refletir sobre a ausência de distinções entre as duas práticas, ao final do século XIX.5
Com o fim de fundamentar as reflexões aqui propostas, escolhemos a cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX. Pretendemos acompanhar de que forma os pobres se ampararam mutuamente, em um período marcado pelo intenso processo de modernização.
Em definição mais clássica, a modernização pode ser entendida como um conjunto de mudanças sociais e políticas que acompanharam a industrialização. Ao longo desse processo, ocorreu a expansão da autoridade pública e da cidadania. Para Bendix, esse intenso movimento de mudança implicou a coexistência entre o tradicional e o moderno nos países onde ocorreu, na medida em que a modernidade implantada foi necessariamente pautada pela tradição acumulada ao longo dos anos anteriores.6
No Brasil, as primeiras décadas do século XX soaram sob o tom da modernização. A abolição havia retirado as amarras que freavam a expansão da cidadania. E o fim da Monarquia, ao descentralizar as estruturas governamentais, permitira maior expansão da autoridade pública.
No que diz respeito à coexistência entre o tradicional e o moderno, típica desse período de transição, pode-se afiançar que o recurso à filantropia denotava a permanência de relações paternalistas tradicionais, que sedimentavam a cultura política brasileira desde o período colonial. Porém, o recurso à ajuda mútua pode ser lido como uma estratégia típica dos contextos nos quais o processo de modernização entrava em curso, na medida em que era capaz de conferir a seus agentes valores muito difundidos pelo discurso liberal dos contemporâneos, tais como os da respeitabilidade, da autonomia e da liberdade.
Não pretendemos com tais relações afiançar que a modernidade, tão logo implantada, teria posto fim às relações de caridade que interligavam pobres e ricos, receptores e doadores de ajuda. Mas pode-se afirmar que o seu avanço, sobretudo nos locais onde ocorreu significativa expansão da cidadania, reduziu as estratégias populares de recorrer-se à filantropia. Abram de Swaan destaca que nos países onde inexistia seguridade social, o apelo para a generosidade das pessoas era muito grande. Após ser instituído o sistema de contribuição compulsória, que garantiu aos pobres a proteção social necessária, retirou-se um pouco da tragédia e também um pouco da magia relativa à religiosidade do homem ocidental.7
Na Europa, o advento do Welfare State foi responsável pela redução significativa do recurso à caridade, embora não tenha posto um fim definitivo às ações filantrópicas, mesmo em seu território. Mas é incontestável admitir que tais ações voltaram-se majoritariamente para outros países e internacionalizaram as relações de caridade, que se tornaram mais impessoais. Atualmente, as Ongs vêm cumprindo um papel cada vez mais efetivo na institucionalização desse tipo de ajuda. Referindo-se a esse contexto, Godelier afirma que as dádivas tornaram-se institucionalizadas, e o dom passou a ser um ato a ligar sujeitos abstratos.8
Tendo por alvo a análise de uma das mais frequentes estratégias escolhidas pelos pobres, como meio de suprir suas necessidades mais imediatas – o recurso à ajuda mútua –, voltaremos agora nosso olhar para o Rio de Janeiro republicano, enfocando esse conjunto de experiências na então capital do Brasil.
O MUTUALISMO NO RIO DE JANEIRO SOB AS LENTES DOS HISTORIADORES
Do que temos conhecimento, o mutualismo carioca foi estudado pioneiramente por Michael Conniff, em 1975.9 O autor teve como objetivo mapear o comportamento associativo do município entre 1870 e 1945. Com esse fim, lançou mão de alguns levantamentos produzidos por encomenda dos governos Imperial e Republicano. Ao analisar as várias modalidades de associações, levou em conta as de caráter mutualista, por ele qualificadas como entidades laicas, inicialmente compostas por trabalhadores qualificados e de renda estável. Mais tarde, o fenômeno teria se tornado mais difuso, ampliando o espectro de associados. O autor confere destaque especial às associações dos funcionários públicos e às associações de trabalhadores por categoria ou empresa. Porém, não trata essas sociedades como mutualistas, embora o fossem em sua maioria. Talvez por essa razão, tenha encontrado tão poucas mutuais no Rio de Janeiro republicano. Em que pese o pouco relevo conferido ao fenômeno, enquanto espaço de representação de interesses, para ele o movimento contribuiu com a explicitação de uma série de conflitos sociais, responsáveis por trazer à tona a chamada 'questão social'.
Mais de dez anos depois, Beatriz Kushnir 10 abordou o tema, embora sua pesquisa não tenha tido como objetivo precípuo estudar o fenômeno mutualista de forma global. Seu trabalho, acerca da prostituição e da sexualidade das chamadas 'polacas' identificou a existência de cinco sociedades mutualistas nas cidades do Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Buenos Aires e Nova York. Tais sociedades atuavam como mecanismos de proteção das mulheres – em sua maioria judias – em meio às situações adversas em que viviam. Cada uma das associações tinha uma sede social própria, um cemitério e uma sinagoga, além de todo um aparato administrativo eficiente. Graças às mutuais, aquelas mulheres em situação de risco conseguiam reforçar uma identidade afirmativa, amenizando em parte os inconvenientes resultantes de sua marginalidade social. Muito embora o conhecimento sobre a existência de tais sociedades seja relevante para o entendimento do fenômeno mutualista, sabe-se que se constituíram em exceções, na medida em que as mutuais, em sua maioria, eram espaços masculinos.
Cláudio Batalha, ao analisar um conjunto variado de fontes, identificou que a maior parte das sociedades de trabalhadores formadas na cidade do Rio de Janeiro entre 1835 e 1899 era de caráter mutualista. Em seu trabalho aborda as relações dessas sociedades com a escravidão, com o republicanismo e com o movimento sindical. Levanta a hipótese de que as mutuais eram os únicos espaços legalmente disponíveis aos trabalhadores manuais que quisessem se organizar após 1824. Por essa razão, muitas mutuais se utilizavam des-se precedente para atender ao seu objetivo primordial, que era o da defesa profissional. Batalha leva em conta também as relações existentes entre as mutuais, irmandades e corporações de ofícios, modalidades diferentes de organização da sociedade civil, mas que compartilhavam uma série de valores, rituais e práticas comuns.11
Mais tarde, o trabalho de Ronaldo de Jesus,12 focado nas relações entre o povo e o monarca, tal como Batalha, utilizou igualmente do conjunto documental disponível no Conselho de Estado. Em sua análise destacou que algumas mutuais recorriam ao Império para requisitar algum tipo de apoio que lhes garantisse a subsistência. Quando conseguiam, podiam usar o prefixo "Imperial" em seus nomes. O autor destaca a existência de mutuais compostas exclusivamente por escravos, algumas delas formadas para financiar a compra de alforrias. Encontrou outras, de caráter menos popular, que recebiam o apoio de setores da elite, levando-as a travar compromissos políticos que resultaram, na maioria das vezes, em restrição de sua autonomia.
Em levantamento posterior realizado sobre a mesma documentação, o mesmo autor encontrou 239 associações funcionando no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1889. Delas realçou as compostas por trabalhadores: ourives, tipógrafos, artistas da construção naval, maquinistas, alfaiates e operários fabris, entre outros. Ronaldo de Jesus identificou tais sociedades como espaços de construção de relações de solidariedade horizontais e levantou a hipótese de que, a despeito de as sociedades terem sido marcadas pelos mecanismos tradicionais de dominação política, próprios da sociedade escravista monárquica, suas experiências contribuíram para a formação de uma cultura emergente, específica dos subordinados.13
Recentemente, Vitor Fonseca14 voltou seu olhar sobre o fenômeno associativista da cidade do Rio de Janeiro, de forma mais ampla, incluindo em suas análises as mutuais, as associações filantrópicas, recreativas, religiosas, de lazer etc. Para a produção de um levantamento inédito do fenômeno associativo na cidade, no período compreendido entre 1903 e 1916, o autor se utilizou prioritariamente dos estatutos depositados no Registro Especial de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, bem como de dados referentes a associações encontrados no Almanaque Laemmert. No trabalho produzido consta um acompanhamento minucioso de todo o processo de regulamentação jurídica do fenômeno associativo no Brasil, realizado tanto no Império como na República. Destaca-se, igualmente, a análise empreendida pelo autor sobre as sedes e os diplomas de várias associações.
Para os fins deste artigo, procuramos acessar uma documentação alternativa e complementar às que foram pesquisadas, muito embora, em projeto anterior, tenhamos trabalhado também com a documentação depositada no Conselho de Estado, da qual igualmente lançaremos mão. Assim, utilizaremos dois levantamentos das associações da cidade do Rio de Janeiro, os quais foram produzidos no início do século XX.
O primeiro levantamento foi feito por Ferreira da Rosa, a pedido de Pereira Passos.15 O autor publicou um livro ilustrado sobre a cidade do Rio de Janeiro, do qual constam um breve histórico sobre o município e inúmeras informações sobre seu sistema viário, seus serviços de instrução pública, polícia, abastecimento de água, sua economia e os serviços de assistência. Ao final da obra há um anexo com 181 associações por ele conhecidas, no ano de 1902. Os dados foram recolhidos de 1815 a 1904 (e o livro foi publicado no ano seguinte). Por trabalhar com um pequeno número de associações e com critérios mais homogêneos, os dados de Rosa são muito úteis.
Na gestão do prefeito Bento Ribeiro (1910-1914), o advogado, escritor e jornalista Ataulfo de Paiva foi incumbido de realizar um segundo levantamento estatístico geral de todos os estabelecimentos de assistência pública e privada, existentes na capital. Esse levantamento – no qual foram incluídas as associações mutualistas – buscava produzir um diagnóstico que orientasse o combate à crescente pobreza que avassalava o Rio de Janeiro. A encomenda, iniciada em 1903, só pôde ser concluída em 1922, quando foi publicada em edição comemorativa do centenário de "nascimento" do Brasil.16
Para esse fim, Paiva organizou três tipos diferentes de questionários, que foram enviados às associações de auxílio mútuo, aos asilos e recolhimentos e a hospitais. Ademais, visitou quase todas as instituições sobre as quais obteve informações através do questionário. Foram recenseadas 624 instituições, que se encontravam em funcionamento entre os anos de 1912 e 1920 no Rio de Janeiro.
Com base nessa importante documentação, discutiremos o fenômeno na cidade do Rio de Janeiro sobre três eixos: a composição do movimento, sua dimensão e sua trajetória.
OS INCLUÍDOS E OS EXCLUÍDOS
Raramente as mutuais se construíram em bases igualitárias. Muito embora definissem sua identidade a partir da isonomia e da ajuda mútua, eram estruturas hierarquizadas e excludentes. Para integrar uma mutual era preciso, em primeiro lugar, possuir renda regular, que possibilitasse o pagamento das mensalidades, embora elas fossem baixas. Desse critério já estavam excluídos os desempregados, os miseráveis e os trabalhadores sazonais, entre outros. Mas não era essa a única fronteira que afastava do movimento boa parcela da sociedade civil. Havia outros critérios excludentes como os etários, raciais, de gênero, de status ou de região. Tal fenômeno não foi exclusivamente brasileiro, mas se repetiu em diversos locais do mundo, com ênfase em um ou outro critério, dependendo do país.
Ao se constituírem em espaços de ajuda solidária, tentavam obscurecer as diferenças sociais entre seus membros. Em contraposição, realçavam outras diversidades, tais como as de cor, de gênero e de nacionalidade. Nesse sentido, as mutuais esforçaram-se em negar a importância das diferenças de classe, oferecendo idade, gênero e raça como categorias apropriadas para a organização de identidades coletivas. Mas enquanto a importância social da instituição mutual é reconhecida, há pouco consenso e menos clareza teórica sobre o seu papel na construção da identidade de classe nesse período. Sua composição multiclassista pode ter facilitado mais uma solidariedade interclassista do que intraclassista. Por essa e por outras razões, alguns historiadores questionam a contribuição dada pelo mutualismo ao processo de formação de uma classe trabalhadora homogênea e igualitária.17
No Brasil percebem-se, ao menos, quatro modalidades de exclusão: por renda ou profissão, por gênero, por idade e por nacionalidade. A de gênero era a mais visível. Mary Clawson afirma que organizações como as corporações de ofício, irmandades, maçonaria, sociedades de socorros mútuos e demais fraternidades tinham em comum o fato de se constituírem em espaços de reforço de alguns valores. Entre eles destacava-se o da masculinidade, e a identidade masculina era lida como autoridade patriarcal. O fraternalismo servia, entre outras coisas, para delimitar fronteiras de exclusão daqueles que não tivessem o status de homens e adultos (Clawson, 1989, p.45-52). Num contexto em que a maioria das mulheres não se encontrava no mercado de trabalho, a interação social era dificultada pela sua permanência no lar. Daí sua pouca participação nos espaços de sociabilidade que se multiplicavam nas cidades, a partir do final do século XIX.
Em relação à cidade do Rio de Janeiro, o levantamento de Paiva nos oferece dados referentes a mulheres e estrangeiros. Como tais dados não foram obtidos de maneira uniforme, Paiva só apresenta o número deles para o ano de 1912. Não obstante, os resultados são ilustrativos, e é interessante reproduzi-los.
Os dados mostram que as associações eram compostas em sua grande maioria por homens (89%), e, entre eles, 38,92% eram estrangeiros. Tendo sido a cidade um polo assaz atrativo para os imigrantes, e sendo o mutualismo já uma tradição em seus países de origem, era normal que os estrangeiros se associassem em grande número. Ademais, as mutuais funcionavam para eles como espaços de sociabilidade, fortalecimento e conservação de suas identidades nacionais, na medida em que reproduziam as divisões de seus respectivos países na Europa.
Nos Estados Unidos os negros eram proibidos de se filiar a mutuais de brancos. Por essa razão criaram as suas próprias mutuais, que, por sua vez, excluíam os brancos.18 No Brasil havia algumas mutuais de ex-escravos ou de negros, mas em muito menor número. Nos estatutos aos quais tivemos acesso, que compunham a documentação já citada do Conselho de Estado, não encontramos muitas restrições à cor. Mas a maior parte das mutuais de imigrantes impunha restrições a sócios de outras nacionalidades.
Em levantamento feito sobre essa documentação, encontramos 21 mutuais reconhecidamente de imigrantes num universo de 123 sociedades, no período entre 1860 e 1882. Para compor uma amostra mais homogênea, retiramos do levantamento as associações patronais, filantrópicas, religiosas, recreativas e de lazer, científicas ou literárias, os montepios, as cooperativas e seguradoras, cujos processos também integravam o conjunto documental. Entre elas havia: cinco portuguesas, três francesas, três alemãs, três italianas, duas suíças e cinco de outras nacionalidades variadas.
Tal como no Brasil, no Reino Unido a principal discriminação era de gênero. Embora as mutuais masculinas fossem mais numerosas, havia sociedades que aceitavam mulheres ou eram compostas só por elas, especialmente do final do século XVIII às primeiras décadas do XIX. Em geral, tinham pouca duração e não sobreviviam mais que trinta anos. Em boa parte dessas mutuais, as funções administrativas, que demandavam maior conhecimento técnico, eram entregues a homens.19
Retomando os dados de Paiva, percebe-se pelo quadro que as mulheres, brasileiras ou estrangeiras, compunham aproximadamente 11% do número total de sócios, e o número de brasileiras era cinco vezes maior que o de estrangeiras. Ou seja, independentemente da nacionalidade, as mulheres que moravam no Rio foram majoritariamente excluídas do associativismo. Esses números referem-se a todos os tipos de sociedades, não somente as mutuais. Como as mulheres tinham maior participação nas associações de caráter religioso ou filantrópico incluídas na amostra, o percentual de participação feminina nas mutuais deve ter sido ainda mais baixo.
AS MUTUAIS E SEUS SÓCIOS EM NÚMEROS
A quantificação das mutuais e de seus sócios é sempre um desafio para os estudiosos. Na maior parte das vezes não se encontra disponível, para um conjunto expressivo de mutuais, a sua documentação específica, como atas, correspondências, relatórios e livros contábeis, entre outras fontes, as quais poderiam garantir acesso ao cotidiano de seu funcionamento. Os trabalhos produzidos têm recorrido à análise de estatutos ou às notícias publicadas na imprensa, documentos que, quando muito, podem apenas fornecer algumas pistas sobre como funcionavam tais instituições. Em geral, os estatutos seguiam um padrão minimamente diferenciado entre si, e as notícias, além de esparsas, acabavam por apenas atestar que a sociedade tinha existido.
No Brasil tal situação foi agravada em razão das contínuas mudanças da legislação sobre as mutuais. Entre 1860 e 1882 as mutuais da capital registravamse no Conselho de Estado. No início da República, passaram a registrar-se nas juntas comerciais ou em cartórios das comarcas. Algumas sociedades, sobretudo as esportivas e de lazer, eram registradas nas delegacias de polícia. A ausência de um registro único ou mesmo a não obrigatoriedade de registro são fatores que, certamente, levaram a que incontáveis sociedades não deixassem pistas de sua existência.
Mesmo em países como a Inglaterra, a existência de um registro único a partir de 1846 não garantiu aos pesquisadores o acesso ao número real de mutuais e de sócios, uma vez que muitas associações não se registravam.20
Diante de tantas incertezas, os levantamentos feitos pelos contemporâneos podem ser ferramentas muito úteis no dimensionamento do fenômeno. Mas apresentam problemas para os quais devemos estar atentos. Ataulfo de Paiva fez seu primeiro levantamento em 1912 e depois o completou com dados colhidos entre 1913 e 1920. Mas os critérios utilizados no momento de sistematização dos dados não foram uniformes. No primeiro levantamento, relativo ao ano de 1912, o autor listou 421 associações, com 282.937 sócios. No segundo levantamento (1913-1920), trabalhou com um universo de 319 instituições, com um número total de sócios que variou entre 204.008 (1918) e 205.707 (1915). O gráfico anexo ilustra o "movimento social" do Rio de Janeiro observado nos dois levantamentos.
O gráfico nos mostra que houve pouca variação do número de sócios no decorrer da segunda década republicana, o que indica que o fenômeno associativo manteve-se constante, ao longo do período. O que chama mais a atenção é o alto número de sócios, de 645 a 715 por instituição, aproximadamente. (Para a obtenção deste número, calculamos a média entre o primeiro e o segundo levantamentos, ano a ano.) No entanto, estudos anteriores já haviam revelado que o Distrito Federal possuía o maior número mutuais do Brasil.21
Se levarmos em conta que o total de homens em 1910, no Distrito Federal, era de 496.284, incluindo-se entre eles as crianças, o número de sócios em 1912 parece, de fato, superestimado (282.937 sócios, 57%), embora não impossível. O número se torna alto apenas quando comparado com outras realidades anteriormente estudadas no Brasil.22
Além do levantamento de Paiva, o trabalho de Ferreira da Rosa pode nos ajudar a entender melhor a dimensão do fenômeno. Segundo consta em sua obra, havia na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1902, 170 mutuais (retiraram-se da listagem as associações que não se configuravam como tais). Elas possuíam, no conjunto, 86.241 sócios (incluídos os remidos), o que produz uma média de aproximadamente 510 sócios por instituição. Essa média é um pouco menor que a obtida por Paiva, mas ainda alta em relação à população masculina adulta da cidade. Havia, em 1902, 727.919 habitantes no Distrito Federal, entre homens, mulheres e crianças. Considerando-se que aproximadamente 57% desse total era de homens (incluídos entre eles as crianças), o percentual de associados encontrado por Rosa correspondia a 20,78% desse universo, número que acreditamos ser mais próximo da realidade, por sua amostra ser mais homogênea e por coincidir com levantamentos feitos posteriormente.
Se compararmos os dados do Rio de Janeiro com os de outras capitais, os números parecerão bastante razoáveis. Para Buenos Aires, estima-se que em 1914 metade dos trabalhadores encontrava-se filiada a algum tipo de sociedade de socorro mútuo. Para o caso inglês, estima-se que 60% dos homens adultos eram associados a uma mutual que incorporava trabalhadores e setores médios. Os dados para os Estados Unidos, levantados mais recentemente por David Beito, apontam que em 1920, para cada três homens adultos, um pertencia a mutuais, compostas sobretudo por negros e imigrantes. No Canadá, 30% dos homens trabalhadores eram mutualizados. Na cidade do México, em 1873, havia mais de cem mutuais, e cerca de um quinto de sua população participava das associações.23
O levantamento de Ferreira da Rosa nos possibilitou uma explicação para o alto número de sócios encontrados no Distrito Federal, quando comparado com outras cidades brasileiras. Pudemos perceber que algumas mutuais tinham um número muito grande de membros – tais como as dos comerciários,24 dos ferroviários, dos trabalhadores navais e as de portugueses –, e elas foram responsáveis pela elevação da média.
O levantamento de Vitor Fonseca, feito com base no Registro Especial de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, entre os anos de 1815 e 1914, encontrou 346 mutuais (Fonseca, 2008, p.120). Mas a documentação por ele utilizada não lhe fornecia o número de sócios. A despeito desse problema, o seu levantamento atesta que o número de mutuais era maior do que o encontrado por Paiva e por Rosa. No ano de 1912, Paiva listou 220 mutuais, e, nos levantamentos feitos para o período posterior (1913-1920), trabalhou com um universo de 216 mutuais.25 Como o método utilizado por Paiva foi o envio de questionários, muitas associações podem ter se eximido de lhe responder, o que torna os números encontrados por Fonseca mais próximos da realidade, muito embora devamos admitir a hipótese de que algumas mutuais podem igualmente ter deixado de se registrar.
Em que pesem as incertezas em relação aos números, podem-se afiançar algumas conclusões em relação ao tema. A primeira é que a cidade do Rio de Janeiro teve, a partir da segunda metade do século XIX, um número expressivo de mutuais, certamente, o maior do país. Esse número se ampliou consideravelmente ao longo das duas primeiras décadas do século XX, atingindo o mínimo de 170 e o máximo de 346. As mutuais possuíam em média de 510 a 715 sócios, número elevado em relação aos padrões encontrados para outras cidades brasileiras, mas proporcionalmente próximo de algumas capitais no exterior. Esses indicadores apontam para um dinamismo muito grande da sociedade civil, que não se limitava às mutuais.
Tal dinamismo é compreensível em razão das especificidades da então capital nacional. Era a maior cidade do país e tornou-se polo atrativo de um grande número de imigrantes. Seu desenvolvimento comercial, industrial e do setor de serviços propiciava a ocupação de diferentes setores de mão de obra qualificada, sócios em potencial das mutuais. Como centro político do país, tinha condições mais propícias à emergência e consolidação de uma cultura associativa. Esse conjunto de características fez que o Rio de Janeiro atingisse níveis expressivos de organização de sua sociedade civil.
TRAJETÓRIAS
O levantamento de Ferreira da Rosa permitiu que aferíssemos o período de fundação das mutuais por ele listadas. Como seus dados e critérios são mais homogêneos que os de Paiva – o qual também nos indica a data de fundação das sociedades –, são mais confiáveis.
Como se percebe, o número das mutuais teve grande crescimento a partir de 1875, tendência que não foi interrompida nas décadas seguintes, conforme nos aponta o levantamento de Paiva, observado anteriormente. O período de maior crescimento foi ao longo da década de 1890 e até as primeiras décadas do século XX.
Os dados obtidos na documentação reunida no Conselho de Estado apontam para a mesma realidade. Das 123 mutuais, fundadas entre 1860 e 1882, mais de 70% haviam sido fundadas após 1870.
O levantamento de Vitor Fonseca traz resultados muito próximos dos outros citados. Entre as 346 mutuais listadas por ele, quase 76% haviam sido fundadas entre 1875 e 1914. (Em sua listagem só incluímos as definidas por ele como entidades de socorros mútuos.) Como os dados avançam até a segunda década do século XX, foi possível perceber que o maior crescimento se deu entre 1905 e 1914.
Nos Estados Unidos, elas proliferaram igualmente na segunda metade do século XIX, sobretudo após a Guerra de Secessão. No período da depressão, a falência das seguradoras contribuiu para a ampliação do número de mutuais, as quais gozavam de melhor reputação (Cordery, 2003, p.89-90).
Na Itália, o maior crescimento também se deu na segunda metade do século XIX. A partir de 1898, o país possuía quase um milhão de associados. Pelo período de emergência e crescimento do mutualismo italiano, percebe-se que foi tardio em relação aos seus congêneres europeus, e próximo cronologicamente ao mutualismo das Américas.26
Tomando por base os diversos levantamentos anteriormente expostos, perceberemos que as mutuais da cidade do Rio de Janeiro, embora tenham sido criadas na primeira metade do século XIX, conheceram grande expansão nas últimas décadas do século, expansão esta que vigorou até o final da primeira década republicana, quando houve uma estabilização do número de sócios, seguida pela desaceleração do fenômeno nas décadas de 1930 e 1940, após a implantação de medidas de proteção social. À medida que as leis protetoras iam surgindo, os socorros oferecidos pelas mutuais tornavam-se dispensáveis. Destacam-se, sobretudo, o impacto proporcionado pela Lei de Acidentes de Trabalho (1919), as Caixas de Aposentadorias e Pensões (1923 em diante), a Lei de Férias (1925) e o Código de Menores (1927), que muito embora não tenham sido iniciativas extensivas a todos os trabalhadores, atingiam boa parte da clientela das mutuais.27
AS MODALIDADES ASSOCIATIVAS E OS SOCORROS OFERECIDOS
Com base ainda nos levantamentos de Paiva, separamos as associações listadas por modalidade, para identificarmos o número de mutuais no conjunto do associativismo do Rio de Janeiro. A Tabela 3 sintetiza os resultados obtidos:
Como se observa, do movimento associativo pesquisado pelo autor para a cidade do Rio de Janeiro, na segunda década republicana, as mutuais representavam a grande maioria, entre 50 e 70% do geral. É difícil afirmar que a diferença entre os números de mutuais e de sindicatos tenha sido assim tão grande. Entre as associações listadas por Paiva como "beneficentes" estavam incluídos alguns poucos sindicatos que, além de atuarem como organismos de resistência, prestavam também algum tipo de assistência a seus associados e, por essa razão, foram qualificados pelo autor como "sociedades beneficentes". Os demais sindicatos não foram incluídos em seu levantamento, daí seu pequeno número.
No que diz respeito aos benefícios pagos pelas mutuais aos sócios, constam do levantamento de Ataulfo de Paiva as relações das despesas efetuadas pelas associações ao longo dos anos, bem como o volume de seu patrimônio. Muito embora os dados para 1912 não obedeçam ao mesmo critério utilizado para os anos posteriores, percebe-se que a maior parte dos gastos das associações – retirando-se o item "despesas gerais", que sempre foi o maior – era realizada com o pagamento de pecúlios ou pensões. Em terceiro lugar, os maiores gastos referiam-se às despesas médicas; por último, constavam as despesas com funerais. Estes representavam, em geral, de um terço à metade dos valores gastos com pecúlios ou pensões.
Entre as mutuais dos Estados Unidos predominavam aquelas que ofereciam socorros em caso de doenças ou funerais. Em segundo lugar, e com mais capital, constavam as que ofereciam seguros de vida (Beito, 2000, p.1, 14).
Já o mutualismo inglês era mais próximo do modelo brasileiro do que o estadunidense. A maior parte dos pecúlios pagos aos sócios era composta por auxílios a funerais – as mutuais mais populares – e, depois, por auxílios a doentes. O pagamento de seguros de vida – raros no Brasil e comuns nos Estados Unidos – era propiciado somente pelas grandes mutuais – conhecidas como Ordens –, que se espalhavam por todo o território britânico e também sobre suas colônias e ex-colônias e eram compostas por uma série de sociedades afiliadas (Neave, 1996, p.55).
Tais coberturas não resolviam o problema da pobreza, mas garantiam àqueles que pudessem ser incluídos ao menos um recurso adicional, em caso de necessidade. Ter um funeral digno, garantir um seguro para os familiares após a morte ou eximir-se de recorrer à caridade eram motivações suficientes para que um grande número de trabalhadores, em diversas regiões do globo, se empenhasse na edificação e manutenção dessas organizações sociais.
AS INSOLVÊNCIAS
Em vários lugares do mundo onde o mutualismo se desenvolveu, os resultados das pesquisas apontam que grande parte das mutuais faliram após alguns anos de existência. As razões para a insolvência de tais sociedades estiveram ligadas a fatores como a incapacidade ou a impossibilidade de calcular os riscos. Para que tal cálculo fosse feito era indispensável ter acesso às taxas de expectativa média de vida da região onde a mutual se inseria e conhecer as principais causas que levavam a doenças e falecimentos. Com base em tais informações era possível às mutuais calcular devidamente o valor de suas mensalidades e dos benefícios pagos, garantindo seu equilíbrio financeiro. Tais dados raramente estiveram disponíveis para os contemporâneos, o que os levou a agir de forma mais intuitiva do que racionalmente calculada.
Ademais, Swaan destaca que muitos sócios pertenciam a grupos homogêneos, formados por trabalhadores de uma mesma cidade ou até de uma mesma empresa. Tal conjuntura poderia levá-los a adoecer em um mesmo momento, ou serem vítimas de um mesmo acidente de trabalho ou epidemia, o que levava a mutual a cobrir um custo volumoso de uma só vez, fato que a conduziria inevitavelmente à insolvência.
O levantamento de Paiva incluiu análise do patrimônio, das receitas e despesas de todas as sociedades – não somente as mutuais –, e revela uma constante oscilação. O gráfico anexo ilustra melhor nossas afirmações.
A leitura do gráfico aponta para uma ligeira evolução patrimonial das sociedades até 1915, com abrupta redução nos anos seguintes. A queda se estabiliza a partir de 1916 e apresenta leve tendência de crescimento até 1920, mas nunca atinge o nível em que se encontrava antes, o que indica que ao longo do período houve perda patrimonial. Acredita-se que a queda vincula-se ao impacto da Primeira Guerra Mundial sobre a economia brasileira, inicialmente levando à carestia, ao desemprego e à desaceleração econômica, problemas amenizados a posteriori. Pode ser, também, que essa queda fizesse parte da trajetória de insolvência que se anunciava para grande parte das mutuais. Como foram criadas, em sua maioria, ao final do século XIX, no contexto de crise possuíam, em média, de vinte a trinta anos de existência, tempo suficiente para o envelhecimento de seus primeiros sócios. Esse tempo de vida de uma mutual levava sempre ao aumento de seus gastos, nem sempre compensados pela adesão de novos sócios jovens. Como o levantamento não prossegue nos anos seguintes, não se pode saber se, de fato, tais sociedades tiveram seu patrimônio totalmente depreciado ao final da década de 1920, como ocorreu em outros lugares no Brasil.
A análise das relações entre as receitas e despesas ajuda a explicar as oscilações do gráfico anterior.
Nas relações entre receita e despesa percebe-se que, pelos levantamentos de Ataulfo de Paiva, no conjunto, as sociedades não foram deficitárias em suas contas correntes ao longo do período, muito embora o gráfico anterior nos mostre que elas abriram mão de seu patrimônio para manter tal situação, em períodos de crise.
Pelo gráfico nota-se, igualmente, que os anos mais difíceis foram os de 1916, 1917 e 1918, por indicarem uma descapitalização das sociedades. Há queda na arrecadação nos anos de 1915 e 1916. Essa situação só começa a se alterar a partir de 1919, apontando para uma tendência de crescimento que se refletiu, também, na evolução patrimonial das associações, conforme apontou o gráfico.
A situação financeira das mutuais era agravada pelo hábito de não cobrarem mensalidades mais altas para os idosos, que naturalmente apresentavam maior possibilidade de adoecer. Ao mesmo tempo, as mutuais não se esforçavam muito em atrair sócios mais jovens. Tal situação foi destacada por um estudioso do mutualismo irlandês, o qual alegou que muitas mutuais preferiam filiar os mais idosos, porque acreditavam que o momento da morte dependia menos da idade e mais da vontade de Deus (Campbell, 1996, p.69). Dessa forma, não se pode caracterizar tais comportamentos como economicamente irracionais, pois encontravam suas justificativas no ambiente cultural que os principais agentes compartilhavam.
No que tange a modalidades dos Estados Unidos, as primeiras a falir foram as afro-americanas. As étnicas não conseguiram atrair a segunda e terceira gerações, já nascidas no país, o que levou a seu esvaziamento progressivo. Na década de 1920 houve considerável queda no número de mutuais, e em 1930 o movimento perdeu 378 mil membros. Porém, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais as entidades de imigrantes foram as mais duradouras.28
Com o tempo, o equilíbrio entre sociabilidade e seguridade – dois princípios que expressavam a identidade das mutuais – foi se tornando um problema para elas. Tão logo a falência se anunciava, os gastos com a sociabilidade iam sendo diminuídos, muito a contragosto dos gestores, para que a seguridade pudesse ser mantida. Tais decisões sempre representavam conflitos para os pares, os quais muitas vezes sentiam que os valores que haviam originado a associação estavam sendo postos em segundo plano, em prol de outros como os do lucro e da competição. Tais conflitos expressavam bem as contradições de um período de modernização.
DO PRIVADO AO PÚBLICO
Em vários países da Europa ocidental a desaceleração do mutualismo coincidiu com a expansão das companhias de seguros, mais capazes de calcular riscos e gerenciar seus lucros. Em que pesem tantas habilidades, elas igualmente faliram diante da enorme demanda por socorros e os baixos valores das contribuições pagas, assim mantidas para que novos sócios fossem conquistados.
Segundo análises existentes para a Inglaterra, os trabalhadores, que antes apostavam nas mutuais como a melhor estratégia para escapar da pobreza, perceberam que após a falência do mutualismo e das iniciativas privadas representadas pelas seguradoras só lhes restava recorrer ao Estado. Tal decisão não foi fácil, já que tinham de abrir mão de valores que deram origem à criação das mutuais, tais como os de voluntarismo, autonomia e respeitabilidade. Mas no contexto de adversidade o cálculo racional levou-os a aderir a propostas de inúmeros 'reformadores' que defendiam que o Estado assumisse o ônus pela proteção social.29
Na França, tal como na Inglaterra, as mutuais rejeitaram inicialmente a contribuição compulsória, pois viam com desconfiança a intervenção do Estado sobre os princípios da livre escolha. Essa realidade foi alterada após o repentino aumento das demandas por proteção social, em razão da Primeira Guerra Mundial. A mudança de conjuntura levou as mutuais a apoiarem a intervenção do Estado, desde que fossem envolvidas no processo de implantação das políticas sociais.30
No Brasil, pouco se sabe acerca do papel que as mutuais tiveram na proposição das políticas de amparo social. Pesquisas nesse campo apontam para o estabelecimento de alguns benefícios para os trabalhadores, sobretudo a partir da década de 1920, e, muito mais tarde, da Previdência Social. Se tais iniciativas resultaram da ação dos reformadores, das conquistas dos trabalhadores organizados ou das concessões do Estado, a historiografia brasileira tem discutido. Mas o papel das mutuais nesse processo ainda requer investigação. Coloca-se aí uma nova pergunta, que ainda aguarda por resposta, entre tantas outras referentes ao tema.
A opção pelo mutualismo pode ter significado, para aqueles que a fizeram, uma estratégia fundamental de manutenção de um importante valor compartilhado pelos trabalhadores, o da respeitabilidade. Os benefícios recebidos nos momentos de necessidade eram tidos como direitos e não como favores. O mesmo não acontecia com aqueles que dependiam da caridade alheia. É praticamente impossível identificar se os pobres recorreram mais às mutuais do que à caridade, pois se os números são incertos para a primeira opção, são ainda mais fluidos em relação à segunda. O que é patente, no entanto, é que antes do estabelecimento das políticas protecionistas, os pobres recorreram a diferentes estratégias de sobrevivência, mais ou menos dignas. Além disso, a permanência da filantropia no Brasil, em larga escala até os dias de hoje, nos remete à distância em que nos encontramos em relação às experiências mais igualitárias de outras nações, uma vez que a extensão da cidadania não acompanhou a expansão de nossa autoridade pública.
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