Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP) www.renatojanine.pro.br
Nosso período eleitoral terminou: entre mortos e feridos, numa campanha que tinha tudo para ser uma discussão exemplar de ideias e projetos, mas que se degradou num festival de acusações, sobrevivemos. Sobreviveu a democracia brasileira.
Churchill tem uma expressão famosa sobre a democracia, que cito na íntegra: "Muitas formas de governo foram experimentadas e ainda o serão neste pecador e desafortunado mundo. Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou saiba tudo. Na verdade, já se disse que a democracia é a pior forma de governo, isso depois de todas as outras que foram testadas ao longo dos tempos". Ele a proferiu na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, dois anos depois de vencer a Segunda Guerra Mundial. Traduzindo a frase sobre a democracia, tentei preservar um pouco a sua ironia. Vamos lá.
Muitos já mencionaram essa frase como se ela significasse que a democracia é a melhor forma de governo possível. Mas não é isso! Porque Churchill começa dizendo que ela não é uma forma de bom governo. Churchill não apenas nega à democracia a qualidade de ser um bom governo, como nega a própria possibilidade de existir um bom governo. Ora, o que isso significa?
O buon governo. Num painel em Siena, pintado entre 1337 e 1340, estão expostos o bom e o mau governo e seus respectivos resultados. Se o rei é bom e justo, tudo em seu reino floresce. Se ele é mau e tirânico, tudo fenece. Nesse afresco de Ambrogio Lorenzetti (que usamos em parte para ilustrar esse artigo), estudado com primor por E. H. Kantorowicz em seu Os dois corpos do rei, se mostra com a maior clareza como o buon governo do rei é a chave para a sociedade viver bem.
Não é exagero dizer que Churchill, em sua célebre frase, está afirmando que esse ideal medieval, fortemente embebido da religião cristã (mas poderia ser de qualquer religião), é impossível. Não há como realizá-lo, na prática, ainda mais quando a sociedade se torna complexa e deixa de ser a caixa de ressonância de uma única fé, um único poder, uma única hierarquia.
O governo dos bons. Existe, porém, uma ideia adicional de governo bom, que não é a da boa monarquia, mas a do poder exercido pelos melhores. A palavra grega aristoi significa, como a latina optimata, "os que são melhores", "os superiores em qualidade". Portanto, a aristocracia seria o poder dos ótimos. Então, por que não ser governado pelos mais virtuosos e mais capazes? Por que não eleger os honestos e competentes?
Se o leitor reconhecer aqui temas que aparecem em todas as campanhas políticas brasileiras, terá razão. Hoje, temos três grandes famílias de valores políticos: o liberalismo, o socialismo (ou a preocupação social) e, ainda despontando, o crescimento sustentável. Mas muito pouco se discutiu sobre eles na recente campanha eleitoral. O que vimos foram acusações - que, não por acaso, eram de corrupção ou de incompetência. Ou seja: o que a maior parte dos candidatos e de seus marqueteiros valorizou foram, justamente, os temas do governo dos aristoi, da aristocracia.
Mas o problema, com a aristocracia, é que ela acaba beneficiando seus próprios membros. Quando se torna hereditária, aliás, depressa desaparecem a excelência moral e a competência que ela podia expressar originalmente, para se tornar mera transmissão de privilégios, de pai para filho.
Transparência. O que é, então, a democracia? Qual a sua vantagem? A vantagem é a transparência. Vários já disseram que o melhor detergente para a corrupção é tornar transparentes os atos do governo. Quando vieram a público os gastos indevidos com cartões corporativos, vários detentores de cargos tiveram de se demitir. Mas, essencialmente, a democracia é o poder do povo. O povo somos todos nós, virtuosos ou não, competentes ou não. Parodiando o título do romance de Robert Musil, na democracia cada eleitor é um "homem sem qualidades" - negativas ou positivas. Eu não preciso passar por nenhuma prova para votar. Posso, claro, ser privado do voto se cometer crimes, como sucede em muitos países - mas, para adquirir o direito de votar, nada se exige, além da nacionalidade e da idade.
Todos somos iguais, portanto, na urna. Isso não é fácil de aceitar. Muitos se indignam de ver que seu sufrágio vale o mesmo que o de uma pessoa simples. Pois é... Não é porque sou professor, fiz teses ou sou rico, poderoso, que meu voto deve valer mais que o do pobre ou inculto. Na verdade, quando voto, defendo meus interesses - assim como ele. Por muito tempo, a classe média brasileira vibrava com viadutos e avenidas expressas, que foram um desastre para as cidades, mas davam vazão mais rápida a seus carros. Essa classe, embora mais abonada e estudada que a dos pobres, foi mais esclarecida?
Obviamente que não. Mas de todo modo, se era legítimo ela votar nas suas convicções ou interesses, mesmo que de curto prazo, também é lícito os pobres votarem em suas preferências ou vantagens.
Igualdade. Essa é a dificuldade da democracia. Temos de aceitar uma igualdade que, no fundo, muitos de nós repudiamos.
Temos de aceitar que não há um governo ideal, a cargo dos melhores - e que sempre que isso se tenta, resulta em coisa pior. Acredito piamente que (quase) todos os ditadores do século XX estavam convictos de que governariam melhor do que as democracias. Poriam fim à corrupção, desenvolveriam seus países, etc.
Mas não houve ditadura que, ao acabar, tivesse deixado um legado melhor que o democrático. Em suma: ruim com a democracia, muito pior sem ela.
Revista Filosofia
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