Existem poucas situações mais risíveis do que as infindáveis discussões entre dois pretensiosos donos da verdade. Podem ser muito divertidas, render diálogos dos mais irônicos, dignos de Woddy Allen. Lembro-me que há alguns anos meu amigo Alencar Arrais, dileto historiador, e eu discutimos durante dias quem teria sido o mais importante intelectual do século XX. Meu interlocutor defendia, concordando com um cânone publicado, creio eu, pela “Folha de São Paulo”, o nome do sociólogo alemão Max Weber. Eu não tinha dúvidas: o intelectual do século XX tinha sido o francês Jean-Paul Sartre. Sei muito bem que a produção de Weber é mais consistente, mas, ainda assim meus argumentos eram, em meu entender, indiscutíveis: além de sua vasta obra filosófica e artística, Sartre tinha a seu favor sua polêmica atuação política, a admirável petulância de recusar o Prêmio Nobel de Literatura e, talvez acima de tudo, o fato de ter sido um inexplicável símbolo sexual. O homem foi a práxis existencialista encarnada em carne, osso, óculos e cachimbo. Contudo, obviamente as discussões entre donos da verdade tradicionalmente não tem fim, como esta não teve. Foi apenas deixada de lado, vencida pela exaustão. Mas vai voltar. O lançamento do livro “O Século de Sartre – inquérito filosófico”, do filósofo francês Bernard-Henri Lévy, dá-me farta munição para reabrir a nossa insignificante polêmica pessoal.
“O Século de Sartre” não é uma mera biografia crítica sobre seu personagem título, vai muito além disso. É, sim, um verdadeiro inquérito filosófico sobre o impacto que o pensamento sartriano teve no século XX. É também uma proposta de redescoberta de seu pensamento. Apesar de Sartre nunca ter sido esquecido, tendo lugar cativo entre os gênios de todos os tempos, a decadência das utopias de esquerda que coincidentemente se seguiram a sua morte, ocorrida em 1980, relegou sua filosofia a desconfortável condição de peça de museu: fundamental como instrumento de análise de uma época, mas datada, ingênua e equivocada, quando fora de seu contexto histórico. Sartre que em vida foi uma longa coqueluche intelectual, uma moda que durou quarenta anos, depois de morto, ao contrário de alguns de seus contemporâneos, como Foucault e Camus, nunca entrou em moda. De certo modo, sua morte foi um alivio. Sartre fez barulho demais, incomodou demais, foi camaleônico demais ao longo de sua carreira para ser plenamente inteligível. O melhor seria mesmo deixá-lo no limbo de Dante, pensaram os sobreviventes.
Não deixa de ser curioso e irônico o fato de que o porta-voz do novo sartrismo, seja Bernard-Henri Lévy, um dos principais nomes dos chamados “novos filósofos” franceses. Geração que fez fama, dentre outras coisas, criticando copiosamente Sartre e suas relações com os maoístas, stalinistas e outras sanguinárias ditaduras de esquerda. A relação entre Sartre e Lévy era tão azeda que o veterano chegou a acusar o novato abusado de ser um agente da CIA disfarçado. Como confessou em uma entrevista ao jornal “El Mundo”, Lévy, antes de se aprofundar em sua obra, considerava Sartre “um escritor chato, um filósofo insignificante e um intelectual que se equivocava sempre”. Porém, sua magnética figura o atormentava a ponto de fazê-lo planejar um livro para que pudesse exorcizá-lo. Foi durante a pesquisa que passou a vê-lo, forçado pela gritante qualidade de suas linhas, como “um escritor de uma modernidade formidável, como um intelectual que nem sempre se equivocou e como um filósofo de grande qualidade. Teve a coragem de tentar recomeçar a aventura filosófica”. Acima de tudo percebeu que, agigantando-se erros que de fato cometeu, transformaram-no em bode expiatório de todos os males do século. A certa altura Sartre não era mais Sartre, e sim o que falavam dele. Em suma, neste livro seu autor faz uma mea culpa e presta homenagem a quem considera o intelectual do século, o último intelectual total, o último filósofo à antiga, o “homem-século”.
Talvez quem melhor tenha expressado a real importância de Sartre tenha sido um de seus maiores desafetos, o general De Gaulle. O líder da França livre da Segunda Guerra Mundial sempre foi duramente criticado pelo filósofo. Quando seus conselheiros sugeriram que mandasse prender o arruaceiro, De Gaulle replicou “não se aprisiona Voltaire”. A partir desta frase, que se converteu em clássico, tornou-se lugar comum dizer que Sartre teve em seu tempo o mesmo papel que Voltaire ocupava no século XVIII e Victor Hugo no século XIX. Lévy vai mais além, defende que “nunca, mesmo no século de Voltaire ou no de Hugo, um escritor ocupou lugar semelhante no imaginário de sua época”. Sartre foi muito além do que se esperava de um intelectual crítico, tornou-se uma potência política. E isto só foi possível graças a De Gaulle. A França do pós-guerra possibilitou o surgimento de um grande contra-poder espiritual para se contrapor a um grande poder temporal.
Este papel só foi assumido por Sartre por ser ele o último intelectual total. Como uma espécie de Da Vinci, homem de mil talentos, foi filósofo, político, escritor, jornalista, dramaturgo, crítico, roteirista de cinema etc. Claro que os “judeus-de-sartre”, o nome que o autor dá a seus adversários, em referencia aos judeus que perseguiam Jesus de Nazaré, sempre poderiam argumentar que ele nunca foi o melhor em nenhum dos gêneros. Camus era melhor escritor, Merleau-Ponty um filósofo mais consistente, a verdadeira mola mestra da lendária revista “Les Tempes Modernes”, o mesmo se pode dizer de Raymond Aron. Mas, se me permitem uma comparação grotesca, Pelé também não: Garrincha driblava mais, Cruyff foi insuperável como gênio tático, Maradona foi mais habilidoso, Puskas tinha o chute muito mais poderoso. Contudo, Pelé foi o Rei por realizar igualmente bem todos os fundamentos de sua arte / esporte. Semelhantemente, o extraordinário em Sartre estava em sua polivalência. Seu desejo de “escrever em tantas línguas que uma se mistura com a outra”. De fato, apenas para citar um exemplo, ao escrever “A Náusea”, ele inventou um gênero literário em que é impossível separar a filosofia da literatura.
“O Século de Sartre” mostra um personagem título múltiplo. Bernard-Henri Lévy fala de vários sartres que coexistiram, nem sempre de forma harmônica. Em um extremo esta o jovem dinâmico que clamava pela liberdade incondicional do ser humano. No outro o idoso enfraquecido simpático ao totalitarismo vermelho. No cerne desse debate interno está a figura espectral de Hegel. Para Lévy toda a carreira de Sartre foi concebida sob os auspícios do hegelianismo. Primeiramente um duelo. Sartre foi um radical “judeu-de-hegel”. O francês desejou mostrar que o modelo filosófico do alemão não era definitivo como se pensava, que a verdade absoluta ainda não havia sido revelada, que “Fenomenologia do Espírito” não é o evangelho que anuncia a vinda do messias do conhecimento humano. Escreveu o gigantesco e genial “O Ser e o Nada” para isso. Afirma que o existencialismo é contrario a história, sempre progressiva, devido à “individualidade irredutível da pessoa”. Retoma as questões fundamentais da vida, da morte, do tempo, da mentira e da verdade etc, deixadas de lado por Hegel e seu comentador Kosèje, e de resto por toda tradição filosófica posterior. Volta ao “Homem”, reabre o caminho da filosofia. Sartre está mesmo convencido de que “O Ser e o Nada” não apenas é superior a “Fenomenologia do Espírito”, como também é sua continuação. Essa saudável petulância fez de Sartre grande.
Depois, entrega as armas. Com o passar dos anos Sartre nega sua obra, segundo Lévy, talvez assustado pela grandiosidade do que realizou. Desafiar à altura o mito invencível de Hegel. Chegou a afirmar que “O Ser e o Nada” é uma obra “absurda”, “escandalosa”. A negação total e absoluta de seu passado glorioso está em “Crítica da Razão Dialética”, livro esmagador, barroco, mal escrito, onde sua conversão ao marxismo grita que “se existe uma História e a de Hegel”. Declara suas idéias mortas. De “judeu-de-hegel” converte-se em “apostolo-de-hegel”. Aceita seu fracasso, ou por outra, fomenta seu fracasso. Inexplicável. O que resta é o Sartre idoso que urina nas causas em “Cerimônia de Adeus”, como foi descrito por sua companheira de vida Simone de Beauvoir. O homenzinho patético desprezado pelo imponente homenzarrão Fidel Castro, em sua visita a Havana. Um velho quase sem voz, cego e “curado de si mesmo”. Um homem célebre começando a ser esquecido por aqueles que o amavam e, ainda pior, ignorado por aqueles que amavam odiá-lo.
“O Século de Sartre” não é uma obra para leigos. De modo geral seu texto é divertido, até leve em certas partes, mas entremeado entre os episódios pitorescos existem discussões filosóficas pesadas, densas. Convêm conhecer o mínimo sobre seu personagem título, as lendas que giram em torno de seu nome, para não se perder no meio do caminho. Esse aconselhável conhecimento prévio tornara a leitura muito mais prazerosa e, certamente, proveitosa. Porém, não o isenta de certas irritações. Existem alguns senões. Os mais evidentes são certos capítulos em que o autor faz intermináveis e labirínticos malabarismos retóricos para, inutilmente, tentar convencer o leitor de que Sartre, algumas vezes, não estava realmente querendo dizer o que disse. O descartável capitulo intitulado “O Existencialismo é um Anti-humanismo”, resposta a famosa palestra “O Existencialismo é um Humanismo”, que Sartre proferiu em 1946, talvez seja o exemplo mais gritante; ao lado do fragmento “O que diz, Realmente, As Palavras”, onde Lévy lê as entrelinhas da autobiografia de Sartre. De resto se deve destacar negativamente alguns trechos escritos com uma irritante linguagem floreada, que Sartre certamente não aprovaria. Escorregões perdoáveis diante da excelência do todo.
“O Século de Sartre” é um livro fascinante. Demonstra com segurança sua tese e é, realmente, visceral. Percebe-se em cada linha o prazer com que Bernard-Henri Lévy escreveu. A satisfação que sentiu ao perceber que estava errado, que encontrou em Sartre o seu Hegel. Dessa vez com tempo para remediar e capitalizar a descoberta. Enfim, temos agora nas livrarias brasileiras um ótimo argumento que pode, talvez, finalmente fechar o debate sobre quem teria sido o intelectual síntese do século XX. Portanto, caríssimo Alencar Arrais, xeque. É melhor fugir com seu rei.
Revista Bula
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