RETRATO DA AMÉRICA QUANDO JOVEM*
Imagens e representações sobre o Novo Continente entre os séculos XVI e XVIII
Mary Lucy Murray Del Priore
“Voilà un monde qui ne peut estre remply que de toutes sortes de biens et choses tres excellentes; il ne faut que les decouvrir “. La Popelinière, Les trois Mondes, 1582
Desde o achamento da América, cada século exprimiu-se na percepção do Novo Continente através de uma visão de mundo que lhe era própria e específica. Sucedendo-se uma a outra, podemos, de início, identificar imagens da América como uma passagem para o Oriente-grande preocupação do século XVI - caminho, portanto, para a fonte de sonhadas riquezas referidas ao Eldorado. Esta imagem ligava-se a outra, igualmente cara ao Renascimento: aquela de uma Idade de Ouro onde vicejaria o estado natural que teria antecedido a Antiguidade. O século XVII é marcado por uma visão ao mesmo tempo missionária e colonial, fruto do desejo universal de conquista, mas também do poder absolutista de jovens Estados Modernos e da Igreja reformada. Na visão naturalista e científica do XVIII, os enciclopedistas associavam a relatividade religiosa com a noção de um homem originalmente puro, o “bom selvagem”, o que abriu as portas para o pré-romantismo. Já no início do XIX, a França, por exemplo, olhava a América através de uma visão de mundo que fez desabrochar uma sensibilidade romântica, na qual o exotismo teve um grande papel. Vejam-se os clássicos Atala, de Chateaubriand, ou Les Incas, de Marmontel, para ficar nos mais conhecidos.
Testemunha atenta destas variações na percepção do Novo Continente, o mapa e seus ornamentos apresenta-se como um alicerce cognitivo no qual se entrelaçam a imagem de positividade do próprio documento e a visão de mundo de que é portador e a partir da qual se funda a imagem do Outro. É importante o estudo do sentido das imagens nas vinhetas dos mapas para conhecer a representação dada pelo cartógrafo, somada àquela dada pelos indivíduos, grupos e sociedade que, ao contemplá-los, vêem aí uma paisagem real e outra, ideal.
* Sou grata a OEA e ao Governo da França pelo prêmio que me permitiu pesquisas na Bibliothèque Nationale de Paris, onde levantei o material cartográfico para este artigo.
Os mapas medievais, Mappae Mundi, reconhecidos como “cartes moralisées”, eram mais portadores de valores ideológicos do que repositórios. de fatos geográficos e históricos. Um saltério anônimo do século XIII, por exemplo, revelava a localização da muralha atrás da qual Alexandre o Grande prendera as hordas de Gog e Magog, trazia um catálogo de humanidades consideradas monstruosas e derivadas dos escritos de Solinus, bem como apontava a situação de Jerusalém e do Paraíso. Neste período, desenhavam-se distâncias de forma esquemática, e sábios religiosos copiavam, segundo a tradição, manuscritos e cartas geográficas transmitidas por gerações passadas. Os homens se interessavam muito pouco pela forma verdadeira da terra, enquanto a Igreja Católica incentivava os cartógrafos a retratarem-na como expressão artística e contemplativa de suas próprias idéias. Esta imagem “fechada” do mundo não foi jamais modificada pelos relatórios de religiosos que fizeram viagens de missões nas regiões longínquas, em particular na Ásia. Outras viagens foram necessárias até que este mundo se abrisse.
O Renascimento da cartografia foi grandemente determinado pelas descobertas geográficas. Estas, por sua vez, não foram obra do acaso. Estão ligadas ao desenvolvimento do comércio da época e à evolução de conhecimentos técnicos, como a descoberta da bússola, da orientação de ventos e correntes, o aperfeiçoamento da navegação marítima e a introdução de novos tipos de barcos, nos quais os marinheiros tinham mais esperanças de voltar ao porto.
Neste mesmo período, inicialmente na Itália e depois no resto da Europa, a imprensa começa a se impor, e sem ela é impossível pensar no desenvolvimento da cartografia. A xilogravura pertencia às técnicas gráficas mais antigas e foi, até meados do século XVI, a técnica principal para a fabricação de mapas. Neste setor de artes gráficas os alemães tinham a primazia, por serem mais artistas do que artesãos. Albrecht Dürer era um destes expoentes e, entre outros, destacou-se por suas cartas impressas à mão, ou por xilogravuras produzidas a cores.
O pensamento na Europa à época dos descobrimentos inseria-se numa concepção de História dominada pela idéia de que o Mediterrâneo e as partes orientais eram o centro de difusão em torno do qual se agrupava o mundo habitado. A multiplicação de civilizações exóticas conhecidas incentivou, todavia, analogias, e nelas, o sentido de contrastes, às vezes críticos, sobre temas comparativos como as representações antropomórficas ou as correspondências estabelecidas entre os ciclos históricos do Velho e do Novo Mundo. Neste contexto, os mapas e seus ornamentos acabaram por constituir-se mais numa invisível paisagem de idéias do que na descrição de um terreno tangível sobre o qual se destribuíam formas e direções. O Theatrum Orbis Terrarum, de Abraham Ortelius (1527-1548), é um bom exemplo desta maneira de pensar, uma vez que coloca em causa a visão aristotélica e ptolomaica do mundo sem que as crenças populares nem a prática marítima tenham sido transformadas. Nele, a viagem real e aquela do espírito se misturam, permitindo a coexistência de lendas e fatos, de mitos vividos como realidades e de verdades descritas como fabulosas. Aí, por exemplo, a ilha de Próspero é reconhecível pelo seu público, capaz de descobrir o real através do imaginário. Esta geografia fantástica, patrimônio que desde a Antiguidade era transmitido aos diversos autores, irrigava outros trabalhos igualmente importantes. Duarte Pacheco, no seu Esmeraldo de Situ Orbis, indica na região da Serra Leoa a existência de “homens selvagens a que os antigos chamavam de sátiros, todos cobertos de cabelos e cerdas tão ásperos quanto porcos”. A cosmografia de Jean de Fontenau (1559) explicita, por sua vez:
“Et au dedans de Ia terre, (Angola), y a des gens gui n'ont point de teste et est Ia teste dedans Ia poitrine, et tout le reste forme d'homme.” Iesin Ulsius, numa carta feita em 1599 sobre a América do Sul, ilustra-a com homens sem cabeça, amazonas, animais insólitos e antropófagos.
Tal era a beleza e a riqueza dos mapas impressos ao longo do século XVI que estes não satisfaziam a demanda crescente de tiragens novas. Destinados a um largo público,
somavam-se a eles as cosmografias acompanhadas por mapas executados em xilogravura, cujo objetivo era familiarizar ao máximo o leitor com fenômenos e eventos ali descritos.
Diálogos silenciosos entre o real e o sonho
O estudo dos ornamentos cartográficos permite acompanhar a trajetória de um inventário de variantes que, modificando tal figura ou tal imagem, traz sentidos novos à interpretação dos mapas modernos. Atrás de cada vinheta dissimula-se uma intenção polêmica, mais ou menos explícita ou escondida, que visa justificar, convencer ou sublinhar. As imagens nos ornamentos e vinhetas das cartas geográficas propõem ao leitor a corneta compreensão do texto e sua justa significação. Neste papel, elas são um lugar de memória cristalizando uma única representação, uma história, uma propaganda, um ensinamento. Ou bem, como sugere Roger Chartier, são construídas como uma figura moral, simbólica e analógica, que salva o sentido global do texto cartográfico de sofrer uma leitura descontínua e errática. Neste uso, portanto, envolvem adesão, produzem persuasão e crença, exprimindo, finalmente, a teoria da intelecção pela imaginação.
Revista Estudos Históricos - CPDOC - FGV
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