terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A busca de Odisseu: sociedade e moral na Grécia Antiga sob o olhar de Homero na Odisséia



Charles Sidarta Machado Domingos
Mestrando em História UFRGS/ PPGHIST
csmd@terra.com.br

Introdução
A Odisséia é considerada uma das maiores obras da literatura ocidental de todos os tempos. Talvez a mais antiga, inclusive. Provavelmente escrita no século VII A.C. por um homem chamado Homero. Mas a autoria do poema tem gerado, ao longo dos anos, muitas discussões.
A Odisséia conta o retorno de Odisseu, rei de Ítaca, para sua ilha após os confrontos em Tróia. E todas suas desventuras no trajeto de volta. Para conseguir voltar a sua terra ele passa por várias situações aventurescas, enfrentando cíclopes, sereias, feiticeiras, deuses e reis. Mas não esmorece de seu objetivo.
Já foi dito que a Odisséia tem um maior número de leitores que outra importante obra de Homero, a Ilíada. Sendo mais preciso, especula-se que tenha na realidade um maior número de leitoras: por ser uma obra mais romanceada, que conta uma história basicamente de amor, um amor que sobrevive a vinte anos de espera. E há uma engenhosa e instigante teoria formulada por Samuel Butler de que a Odisséia teria sido escrita por uma mulher, Nausícaa, a filha graciosa e bela de Alcínoo, o rei da Feácia e de sua consorte Arete.
Dentre essas especulações é que almejo retratar nesse trabalho a importância das mulheres na Grécia Homérica tendo por instrumento de análise Odisseu e suas relações com três importantes personagens femininas do romance: Penélope, Circe e Nausícaa.
Analisar através desses personagens a problemática das mulheres nesse período da História e dos verdadeiros motivos que teria Odisseu para passar tantos trabalhos para alcançar seu objetivo maior: o retorno para Ítaca.
Mesmo com tantas adversidades ele não desiste do fio condutor da narrativa. O que é tão importante para ele afinal? Quais as influências que essas três mulheres tiveram no decorrer da narrativa? A volta para casa representaria glórias, amor, ou honra?
Esse relato, que tanto influenciou a história da literatura ocidental e por extensão a história da cultura ocidental, já foi objeto de diversas análises. E continua sendo. E por um bom arrazoado de motivos continuará a ser. Por tratar-se de uma obra-prima. Mais do que uma idéia de formação de um povo, de sua consciência nacional, a Odisséia traz explicações sobre o destino humano e o sentido da existência, o sentido da vida.

A falta de Penélope ou o retorno ao porto seguro
Dentro da narrativa da Odisséia uma das principais personagens femininas é representada por Penélope. Ao contrário de sua prima Helena, a beleza de Penélope é muito mais dada pelo seu caráter e pela sua conduta que pelo seu corpo. Filha de Icário, ela se casa com Odisseu e com ele vai para a ilha de Ítaca. Ela gera o filho de Odisseu, Telêmaco, e em seguida seu marido vê-se obrigado a partir para o confronto em Tróia.
Quando parte, Odisseu confia sua jovem mulher e seu filho único a Mentor. Sua Ítaca fica sem governo, já que Penélope por ser mulher não podia governar a ilha. Mas essa situação era praticamente a mesma em todo o mundo grego por estarem os reis, com poucas exceções, na guerra.
Penélope era acima de tudo uma mulher dedicada. Mesmo não tendo o poder para governar sua ilha, ficou à espera de seu marido por 20 anos, sendo que nos últimos 10 anos sem a menor certeza de seu marido estar vivo. E mesmo com os 108 nobres a fazer-lhe a corte ela resiste. Utiliza-se da méthis, a mesma méthis de seu marido Odisseu. Enquanto ele utiliza sua astúcia para enganar os troianos no episódio do cavalo de pau, ela utiliza-se de sua méthis para postergar uma resposta aos pretendentes. Ela usa do artifício de tecer uma mortalha para seu sogro, Laertes, mas durante as noites ela a desmanchava. E esse artifício durou três anos, até sua escrava Melanto delatá-la aos pretendentes.
Penélope era uma mulher extremamente fiel ao seu marido. Ao contrário de Helena, que gera muitas dúvidas se realmente foi seqüestrada ou não por Páris, ou de Clitmenestra, que assassina seu marido Agamênon, a esposa de Odisseu “alimenta no espírito justos e honestos desígnios a descendente de Icário guerreiro, a prudente Penélope” (HOMERO, 2001, p. 445-6).
Penélope é uma importante personagem na literatura ocidental por representar a mulher forte, capaz de resistir às investidas dos pretendentes e de viver uma situação desconfortável.
Ela, mesmo quando sua fé na volta de Odisseu esmorece, não se entrega. Resiste! E quando ele volta e se apresenta, ela já não tem porque acreditar que seja o próprio Odisseu. Usa de um estratagema para saber se ele é realmente quem diz ser: “Euricléia, prepara-lhe o sólido leito fora do quarto de bela feitura construído por ele. A cama, pois, lhe prepara do lado de fora e a recobre com boas peles e mantos e colchoas de linha esplendente” (HOMERO, 2001, p. 177-8). E ele corresponde duvidando da proposta de pôr a cama para fora por sua estrutura não permitir. Ele era conhecedor das proporções da cama por tê-la construído. Com isso Penélope acredita na real presença de seu marido.
Sedução e prazeres proporcionados por Circe Nos relatos da Odisséia se torna uma figura de forte apelo popular a representada pela feiticeira Circe. Habitante da ilha de Eéia, é filha de Hélio, deus do Sol e de Persa, uma oceânida (filha de Oceano). Raramente é chamada de deusa, como podemos observar nesse fragmento: “Caros amigos, lá dentro alguém tece, meneando-se ao canto, num grande tear, de tal forma que, à volta, o chão todo ressoa; é talvez, deusa ou mulher; em voz alta chamemos depressa” (HOMERO, 2001, p. 226-8). Há uma dúvida ainda não sanada a seu respeito: seria Circe uma divindade ou uma mortal?
Circe vivia na sua ilha rodeada por porcos, leões e lobos. Transformava os homens que aportavam em sua ilha e se dirigiam a sua casa em porcos, mediante uma mistura de uma funesta droga com a bebida. Mas um dos companheiros de Odisseu salva-se e corre à praia a contar a seus companheiros o que aconteceu. Odisseu então resolve ir em busca de sua tripulação e no caminho Hermes o encontra e lhe instrui a como livrar-se de tão grande mal.
Lhe dá uma erva e lhe diz: “(...)há de bebida oferecer-te e veneno te pôr na comida. Mas impossível ser-lhe-á enfeitiçar-te, que a droga excelente que ora te entrego desfaz esse influxo”. (HOMERO, 2001, p. 290-2).
Odisseu então encontra Circe e se faz recebido em sua casa. Aceita suas ofertas e quando ela vem tocar-lhe com sua varinha, objetivando transformá-lo em porco, ele saca de sua espada e investe cheio de fúria contra a bela Circe. Ao que ela cai a abraçar seus joelhos – uma súplica com forte simbolismo à época- e lhe implora clemência. Ela o reconhece como Odisseu e convida-o para subir ao seu leito. Ele fica reticente, acredita tratar-se de alguma artimanha de Circe. Há faz jurar que nenhuma outra maldade incidirá contra ele. Ela jura e eles sobem ao seu leito. Seus companheiros voltam a sua forma natural e aparecem quatro criadas que a ela serviam.
Num mundo em que as mulheres constituíam a maior parte dos escravos (ROBERTS, 2001, p.194; FINLEY, 1965, p.52) não é estranho que ela tivesse escravas. O estranho era ela ter escravas vivendo numa ilha isolada de tudo. Como chegaram a ilha essas escravas? Eram elas vítimas de guerra?
Mas Circe rende-se aos encantos de Ulisses e o deseja para marido. E ele acaba ficando em sua morada, postergando seu retorno para Ítaca: “ lá nos deixamos ficar pelo prazo de um ano completo, todos os dias à mesa, comendo e bebendo à vontade” (HOMERO, 2001, p. 467-8).
Circe não correspondia as demais mulheres de sua época. Não era escrava, mas também não era rainha e nem mesmo camponesa. Tinha uma posição de destaque por ter o conhecimento da magia. Era proprietária de uma bela casa e tinha muitas posses. Acredita-se que era uma deusa. E seria então uma união entre uma deusa e um mortal através do casamento. Esse tipo de união era muito praticado entre um deus e uma mortal, mas raramente ocorria entre uma deusa e um mortal.
Segundo Finley “(...) até a morte de Odisseu e o casamento de Telêmaco com Circe” (FINLEY, 1965, p.34). O que nos induz a pensar nela senão como deusa, uma feiticeira. Por que Telêmaco casaria com ela algum tempo depois do fim da Odisséia se ela tivesse envelhecido? De que forma ela poderia atrair um jovem que pudesse escolher a esposa que quisesse, dado sua condição de filho de Odisseu? A não ser que ela tivesse se mantido jovem graças a seus encantamentos ou mesmo o tivesse conquistado através de seus feitiços. Mas isso não esclarece se ela era deusa ou feiticeira.
Há algo maior do que a riqueza de Nausícaa Filha de Alcínoo, rei da Feácia e de sua mulher Arete, foi ela quem primeiro encontrou Odisseu quando este desembarca na Feácia. Pala Atena aparece a ela em sonho e lhe manda ir lavar roupa no rio. Era costume as mulheres terem total domínio das lides domésticas, não apenas as escravas como as nobres também. Ela se encarrega de lavar a roupa do pai e de seus irmãos: “É a mim que está afeto isso tudo” (HOMERO, 2001, p. 65). “Ajudada pelas suas servas, Nausícaa, a filha do rei dos feácios, fazia a barrela familiar (FINLEY, 1965,p. 70).
Sendo sua atribuição, Nausícaa vai ao rio com suas servas. Depois do trabalho comem e se divertem. É nesse momento que aparece Odisseu. Um temor é causado nas escravas e só não se manifesta em Nausícaa por estar ela sob proteção de Palas Atena. Odisseu estava sem roupas e demonstra a Nausícaa, de forma galanteadora, suas angústias. Ao passo que ela acaba lhe ofertando roupas e dizendo ser filha de Alcínoo, e oferece levá-lo a cidade. Ela se encanta com ele, como pode ser visto neste trecho: “Ao vê-lo, a princesa foi tomada de admiração e não teve escrúpulo em dizer às suas damas que desejaria que os deuses lhe tivessem mandado um marido assim” (BULFINCH, 2001, p.297).
Mas ao chegar à cidade ela pede que ele espere para não serem vistos juntos. Isso mostra a evidência de um código moral forte e bem definido. Onde as aparências são importantes, pois “Quem será esse estrangeiro, que segue a Nausícaa, tão belo e de tal porte? Onde o achou? Com certeza o escolheu para esposo” ( HOMERO, 2001, p. 276-7).Ela era a filha do rei, e tinha vários pretendentes que desprezava. Não podia ser vista chegando com um homem, ainda mais um homem estrangeiro. Daria motivos para rumores, mesmo em um povo descrito como pacífico por Homero: “pois os feácios, de fato, não cuidam de aljavas nem de arcos” (HOMERO, 2001, p. 270).
No palácio havia cinqüenta escravas. Todas trabalhando nas lides da casa. E junto a elas, trabalhando também a rainha Arete, que fazia panos de fino acabamento: “por ter Palas Atena lhes dado mente elevada e perícia para trabalhos de bela feitura” (HOMERO, 2001, p. 110-1).
No banquete que se dá em honra de Odisseu, Alcínoo acaba oferecendo sua filha em casamento para o bravo guerreiro mesmo sem saber ainda de quem ele se tratava. Isso demonstra que os galanteios que ele dispensara a Nausícaa quando de seu encontro surtiram efeito. E ela era uma mulher belíssima, conforme a descrição homérica: “Nausícaa, a predileta dos deuses, que forma perfeita lhe deram” (HOMERO, 2001, p. 457-8).O que demonstra que Odisseu tinha um firme propósito de retorno. Pois deixava de casar com uma bela mulher, talvez tão bela quanto Helena, e de ter um imenso reinado, repleto de riquezas.
Em busca de uma conclusão
Num período da história grega conhecido como Homérico as mulheres de uma maneira geral eram extremamente relacionadas a idéia da sua casa, da sua propriedade. Estavam refinadas à estrutura doméstica, denominada de óikos. Raramente não estavam inseridas nessa relação doméstica. Podendo ser parte integrante do óikos de seu marido ou mesmo pai, dificilmente tinham uma propriedade própria e quando isso acontecia era justificado como sendo a proprietária uma deusa.
As mulheres tinham como molde de vida executar as atividades domésticas, eram submissas aos homens, conservavam seu silêncio e fragilidade, a vida sedentária e reclusa no interior do óikos. Essa idéia está intimamente ligada e chega a ser a base da conclusão de que as mulheres estavam excluídas da vida social, pública e econômica.
Em uma sociedade onde as mulheres eram divididas socialmente em mulheres ricas, mulheres pobres e escravas era proibido uma mulher de boa família, portanto rica, de trabalhar para os outros. Isso ficava a encargo das mulheres pobres e das escravas. As mulheres da realeza tinham muito que fazer sim, mas em casa. As mulheres ricas não apenas lavavam a roupa da família, como as teciam. A administração da casa era complicada e exigia muitos esforços.
Se uma mulher fosse a única herdeira da propriedade do marido ela deveria casar novamente para poder usufruir de seus bens. O que demonstra o porquê de Penélope ansiar pelo retorno de Odisseu. Era mais que uma simples questão de amor, era uma questão também de propriedade. Propriedade dela e de seu filho. Não vislumbrava como boas as possibilidades de um outro homem tomando conta de seu óikos.
Já as mulheres escravas em sua maior parte eram vítimas de guerras. As guerras tinham a função de obter um maior número de escrava para o desenvolvimento das tarefas domésticas. Eram uma parcela numerosa da sociedade grega apesar de não terem direitos nem voz nas questões de poder. Mas eram parte imprescindível para a manutenção do modelo de sociedade vigente.
A Odisséia é uma obra famosa, sobretudo pelo seu caráter de ser uma história de amor.
A história de um homem que passa por diferentes percalços na tentativa de retornar ao amor de sua mulher e de seu filho. E passa a idéia de uma série de abnegações empreendidas por Odisseu para realizar seu firme propósito de retornar a sua casa para encontrar sua mulher.
Odisseu volta de uma guerra de larga duração vitorioso. Mas acaba insultando um poderoso deus, Poseidon, e este deus faz com que ele não volte para casa. Mas ele tem a firme idéia de voltar. Mesmo enfrentado monstros como o cíclope Polifemo ou como Cila, passando pelos encantamentos da deusa Calipso que o queria por esposo,, até rejeitar o amor de Circe e não aceitar o reino da Feácia, representado numa eventual união com a princesa Nausícaa. A tudo isso ele renuncia. Mas renuncia só por amor a sua mulher Penélope e ao seu filho Telêmaco? Creio que não.
Para Odisseu de fato é importante o amor de sua esposa. Uma dedicada mulher que por ele mantém um amor capaz de resistir aos anos e as angústias de saber o que realmente tem acontecido para retardar o regresso de seu marido. Mostra-se importante o amor a seu filho Telêmaco, uma pequena criança quando partiu e que no desenrolar da história cresce, e que agora é um homem. E que tem o dever de honra de ser o herdeiro das terras de seu pai e cuidar da memória de seu pai. Mas não é só isso.
Por maior o amor que Odisseu tivesse por sua esposa e por seu filho – e eu não estou pondo esse amor em dúvida – a sociedade grega homérica tinha um hermético código de relações sociais. Um código que devia ser seguido por todos, mas mais ainda pelos aristocratas. E esse código era baseado numa muito forte noção de honra. E Odisseu deveria voltar para cuidar do que é seu sobremaneira para restituir sua honra e sua propriedade. Honra e propriedade eram termos indissociáveis para um aristocrata. Qualquer afronta a sua propriedade era uma afronta a sua honra.
E Odisseu sabia que se demorasse a voltar sua esposa ficaria vulnerável a muitos pretendentes a sua beleza e principalmente a sua propriedade. Não era uma questão apenas material, por ter recebido uma oferta muito maior do que seus bens feita pelo rei Alcínoo, quando esse oferece sua filha a Odisseu. Nem uma questão de amor apenas, dado que Circe teria tido o poder para fazer um encanto para Odisseu se apaixonar por ela e amá-la, talvez como tenha feito posteriormente com Telêmaco. Era muito mais. Era uma questão de espírito.
Para Odisseu a volta para casa, para os braços de Penélope e para a companhia do filho, para a restituição de seu óikos, era uma questão de honra. Uma questão de valorar o sentido da vitória na Guerra de Tróia. Era alcançar a condição de vitorioso. Ter lutado pela honra alheia – Menelau – e não ter sido substituído. Era uma questão de grande importância naquela sociedade.
Com isso se pode assegurar que a Odisséia não é uma simples história de amor. Se vê que é uma obra bem mais complexa e que influencia a humanidade por diversos séculos. Ela trata de valores humanos que acabaram por se tornarem universais na cultura ocidental. Trata de amor, honra, luta, riqueza, poder, glórias. O que os homens perseguem de uma forma ou de outra até hoje, passados vinte e sete séculos da criação da obra. A Odisséia mostra ter sido forte influência e ter tido um forte poder de disseminação dos ideais gregos de virtude – aretêque até os nossos dias se encontram como sendo o sentido da busca da vida humana.

BIBLIOGRAFIA
Fontes primárias
HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 4ªed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
Fontes secundárias
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. 18ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.
CALVINO, Italo. Por que Ler os Clássicos. 8ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. FINLEY, Moses I. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1965.
ROBERTS, J.M. O Livro de Ouro da História do Mundo. 5º ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

História - Imagens e Narrativas

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bom, esse cara sabe mesmo!