Maria Ligia Coelho Prado
Departamento de História – FFLCH – USP – CEP 05508-900 – São Paulo – SP
A independência das colônias espanholas da América é tema consagrado desde o alvorecer das historiografias nacionais do século XIX, amplamente visitado e carregado de interpretações estabelecidas. Consensualmente, apenas se pode afirmar que a independência é vista como momento da quebra da dominação política exercida pela metrópole e do nascimento dos Estados Nacionais. Tema, ainda, atravessado por paixões político-ideológicas, tanto da parte daqueles que defendiam uma perspectiva oficialista e ufanista, que no século XIX elegeram os heróis que comporiam os panteões nacionais, como da parte de uma historiografia crítica, que em particular nos anos 1960 e 1970 entendeu a independência como um movimento destituído de significativa relevância, pois não teria propiciado a ruptura das grandes estruturas que continuariam a manter a dependência do continente.
Nas décadas de 1960 e 1970, também se delineava outro embate com relação às interpretações sobre o tema. De um lado, a crítica àqueles que conferiam às idéias um lugar e um papel centrais como desencadeadoras do movimento da independência. Em oposição, os que privilegiavam as determinações estruturais - econômicas e sociais - como a base para a compreensão do movimento. A primeira perspectiva, que via particularmente nas idéias francesas uma das principais "causas" da emancipação, já foi amplamente criticada. Pensando na produção mais recente, é possível notar que revisões historiográficas distanciaram-se de uma aproximação exclusivamente estrutural de análise do processo de independência. O historiador peruano Alberto Flores Galindo, num texto do final da década de 1980, aponta para uma abordagem interessante e apresenta como que uma síntese desses debates:
Deixando de lado os determinismos, sentimo-nos inclinados a pensar que no passado, assim como no presente, sempre há mais de uma alternativa e que os desenlaces são o resultado de combinações, sempre específicas, entre determinações estruturais e as vontades tanto individuais como coletivas. Na história estão em jogo as aspirações e os projetos dos homens. Os períodos de crise rompem os velhos ordenamentos, ampliam os horizontes, fazem possível a criatividade e nunca é mais real que então afirmar que os indivíduos constroem seu destino.2
Este artigo é tanto devedor desses debates historiográficos sobre a independência, quanto das discussões teóricas mais recentes no campo da história política e da história social das idéias. Nessa trilha, elegi trabalhar privilegiando os encontros entre cultura e política, com textos de José Bernardo Monteagudo, cuja trajetória foi, ao mesmo tempo, singular em suas particularidades, e também emblemática daquele turbulento período. Penso que os protagonistas do movimento de independência tiveram que tomar decisões e propor soluções com um campo aberto à sua frente, pleno de probabilidades e imponderáveis diversos. Construíram seus destinos, trabalharam com sua criatividade e inventividade e estiveram limitados por imposições estruturais próprias de seu tempo e espaço.
Com essas questões em mente, quero refletir sobre dois escritos de Monteagudo, pois creio que esses textos espelham, de forma exemplar, certas contradições do período, anunciando soluções para problemas políticos centrais para os Estados Nacionais que se organizavam. Refiro-me, em especial, à determinante questão da democracia que envolvia as relações de poder entre as elites chamadas, à época, de criollas, e o mundo indígena. Pretendo iniciar com a análise de um panfleto de Monteagudo, de 1809 quando este, principiava sua vida pública e que leva por título: Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Num segundo momento, estabeleço um contraponto com outro texto que Monteagudo escreveu em 1823, chamado: Memória sobre os princípios que segui na administração do Peru e acontecimentos posteriores à minha saída.3
Em primeiro lugar, ainda que muito brevemente, uma apresentação de Bernardo Monteagudo.4 Figura menor no panteão dos heróis da independência, seus poucos biógrafos - mesmo os mais simpáticos a ele, como Mariano de Vedia y Mitre - enfrentaram algumas dificuldades para construir sua imagem como grande herói impoluto, pois foi protagonista de alguns episódios obscuros ou pouco edificantes. Nosso personagem nasceu em Tucumán, em 1789, filho de um capitão de milícias espanhol que viera para a Colônia do Sacramento no início da década de 1780. Mas viveu boa parte de sua infância e juventude em Chuquisaca, hoje Sucre, na atual Bolívia.
Estudou na Universidade de Córdoba e depois na importante Universidade de São Francisco Xavier em Chuquisaca, onde obteve o grau de doutor em Teologia. Logo em seguida, já graduado, foi nomeado Advogado da Real Audiência de Charcas e Defensor dos Pobres. Participou da precoce rebelião de Charcas pela independência, em 1809, que foi rapidamente reprimida. Nesse período defendia idéias republicanas e democráticas. Monteagudo foi preso e condenado à morte, mas conseguiu fugir. Daí por diante, vamos encontrá-lo em diversas partes da América. Participou da guerra pela independência na Argentina, atravessou os Andes, lutou no Chile e chegou ao Peru; esteve na América Central, numa missão especial. Foi à Europa e, nessa viagem, passou pelo Rio de Janeiro. Escreveu alguns textos políticos publicados em jornais e fundou, em 1812, em Buenos Aires, seu próprio e efêmero periódico, Mártir o Libre. Manteve contato próximo com quase todos os líderes da independência - desde Simón Bolívar, passando pelo venezuelano Francisco de Miranda (que encontrou em Londres), pelo guatemalteco José Cecilio del Valle, pelo chileno Bernardo OHiggins, até o argentino San Martin, com quem conviveu mais longamente e de quem foi secretário. Teve efetivo poder político em diversos momentos, como aquele em que decidiu o destino dos irmãos Carrera, líderes do movimento chileno que, por desentendimento com OHiggins, estavam exilados na Argentina. Foi Monteagudo, pretendendo maior aproximação política com OHiggins, quem determinou o fuzilamento dos irmãos, atitude de força criticada pelos próprios contemporâneos.
Como secretário de San Martin, instalou-se em Lima. Havia mudado suas concepções políticas e se transformado em monarquista convicto. No Peru, ocupou cargos políticos importantes, como o de Ministro da Guerra. Não se pode esquecer que Lima foi o bastião realista por excelência durante as lutas pela independência da América do Sul. Lá, as elites haviam permanecido ligadas ao antigo sistema colonial convencidas de que, a longo prazo, seu futuro dependia da solidez dos seus laços com a Espanha. O grande comércio limenho se sustentava pelos intercâmbios com a Península Ibérica e pelo controle sobre os espaços coloniais vizinhos - Quito e Valparaíso. Se o Peru foi um dos focos da resistência realista, isso não se deveu exclusivamente à personalidade do vice-rei Fernando de Abascal, como insiste a historiografia tradicional, mas à presença, em Lima, da aristocracia colonial mais numerosa de toda a América Hispânica. Além disso, a memória sobre a rebelião de 1780, liderada pelo cacique Tupac Amaru II (sobre a qual falaremos mais adiante), inibia qualquer possível adesão das elites a levantes armados.
As posições políticas de Monteagudo em defesa do regime monárquico e seu distanciamento das elites limenhas angariaram-lhe poderosos inimigos, a ponto de ter que se exilar novamente. Foi enviado à América Central, numa missão diplomática a mando de Bolívar. Voltou para a América do Sul, esteve em Guayaquil, depois em Quito, e finalmente voltou ao Peru, desta vez sob a proteção de Bolívar, que fazia os preparativos para a última fase da guerra pela independência na serra peruana e no Alto Peru. Assim, a trajetória de Monteagudo indicava a ausência de limites geopolíticos separando toda essa vasta região e mostrava como o movimento pela independência não cabia nas fronteiras que posteriormente se construíram.
No entanto, depois de escapar ileso de tantos perigos, Bernardo Monteagudo morria assassinado, com uma faca cravada no peito, às 7 horas da noite do dia 28 de janeiro de 1825, na Rua de Belém, em Lima. Tinha 35 anos de idade. Seu assassino confesso, o negro Candelario Espinosa, e seu cúmplice, o zambo Ramón Moreira, foram imediatamente presos.
Candelario assumiu a autoria do crime, porém foi torturado para confessar o nome do mandante, pois desde o início as autoridades trabalharam com a hipótese de crime político. A prova mais contundente seria o fato de os pertences valiosos de Monteagudo não terem sido roubados - um anel de ouro, um relógio de ouro com corrente, um alfinete de gravata de safira e diamantes e seis onças de ouro. Depois de torturado por vários dias, Espinosa acusou três homens que foram presos, sem que, entretanto, nada se provasse. Numa suposta audiência com Simón Bolívar, o negro teria finalmente confessado que José Faustino Sánchez Carrión, ardente republicano e inimigo contumaz de Monteagudo, havia sido o mandante do assassinato. Para dramatizar ainda mais esta história, Sánchez Carrión morria 40 dias depois de Monteagudo. As versões sobre sua morte variaram entre uma doença de causa natural e um envenenamento provocado por vingança política.
Fugindo das disputas sobre o crime ter sido ou não de caráter político, importa assinalar que as questões de ordem política, naqueles momentos, ocupavam lugar central na sociedade limenha. Desse modo, não se podia imaginar o assassinato de uma figura poderosa como Monteagudo sem que a idéia de conspiração ganhasse força. O biógrafo de Monteagudo, Mariano de Vedia y Mitre, carrega nas cores da conspiração afirmando, por exemplo, que logo após o assassinato "corriam pela sociedade limenha boatos de que Sánchez Carrión havia sido o mandante do crime". 5 A principal disputa entre Monteagudo e Sánchez Carrión passava pela definição do regime político que deveria ser adotado no Peru independente. O primeiro, monarquista, e o segundo, republicano. A questão das definições sobre o regime político pode parecer, a posteriori, problema menor. Entretanto, à época, nada estava definido e as disputas em torno da questão foram fundamentais e apaixonadas.
Mas voltemos à juventude de Monteagudo, quando este escreveu seu primeiro texto político de impacto: o Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Na forma de panfleto, circulou anonimamente, de mãos em mãos, nos meios universitários e políticos de Charcas, nos primeiros meses de 1809. Ainda que anônimo, rapidamente sua autoria foi atribuída a Monteagudo, pois como o texto era manuscrito, sua caligrafia acabou sendo reconhecida.
Este era um entre muitos panfletos que invadiram a Hispano América na primeira década do século XIX, espalhando as idéias iluministas e contribuindo com seus argumentos para justificar a ação daqueles que começavam a lutar pela independência das colônias na América. Estes textos "subversivos" produzidos pelos criollos nasceram do encontro entre as leituras vindas da Europa e a reflexão original pensada a partir da situação colonial.
Como bem mostra Elias Pino Iturrieta em sua pesquisa sobre a Venezuela, desde o final do século XVIII se ampliara o comércio ilegal de livros censurados que chegavam nos navios, misturados às mercadorias comuns, alimentando as imaginações dos descontentes com a situação colonial. A burocracia civil e religiosa espanhola manifestara reiteradamente sua preocupação com relação a esses "abusos", criticando ora a "negligência dos funcionários reais", ora os comerciantes que visavam apenas ao "torpe lucro". As autoridades coloniais denunciavam essa prática, perseguida com rigor, mas sem alcançar os efeitos esperados. Para elas, as colônias estavam "inundadas por uma variedade de gazetas, diários e suplementos repletos de absurdas proposições, muito parecidas com as idéias diabólicas que os revolucionários de Paris apregoavam". 6
Todavia, o documento de Monteagudo desperta, de imediato, grande interesse pela originalidade e pelo radicalismo da proposição. Em primeiro lugar, o autor, já em 1809, defendia claramente a separação entre as colônias e sua metrópole. Além disso, chama a atenção a criatividade do mesmo, pois se trata de um diálogo imaginário, no campo dos mortos, entre o último imperador inca e o rei espanhol vivo que, naquele momento, se encontrava prisioneiro de Napoleão em Bayone. Como questão aberta, fica a pergunta: teria Monteagudo, por acaso, lido os Diálogos dos mortos, de 1712, de Fenelon? 7
Creio que a forma de diálogo escolhida por Monteagudo está diretamente relacionada às finalidades do panfleto. De acordo com os costumes da época, o autor sabia que o texto não seria apenas lido individual e silenciosamente. Foi pensado também para ser ouvido por um grupo de pessoas atentas à leitura em voz alta. Como os historiadores do livro e da leitura já indicaram, a leitura individual e silenciosa ainda não era uma prática comum e habitual, nem na Europa nem na América, nesse período. Lia-se em voz alta a um grupo acostumado a "saber ouvir", potencialmente multiplicando os "efeitos perigosos" de um texto.8
Desde Platão, foi constante a utilização do diálogo. Os oradores - lembremos dos diálogos de Cícero - atentos às virtudes e vícios da elocução, se serviram do diálogo para alcançar maior eficácia diante do público. O estilo caracterizado por interrogações e respostas foi considerado superior ao contínuo, quando se desejava expressar o ímpeto da paixão. O leitor ou ouvinte era então levado a aceitar os argumentos não como uma imposição, mas como uma conseqüência lógica dos acontecimentos. Ao acompanhar a alternância de perguntas e respostas, se envolvia no processo. Essa técnica discursiva - a mesma empregada por Monteagudo - tendia a provocar a adesão dos espíritos às teses apresentadas e podia ser definida como um ato de persuasão. 9
Monteagudo, no diálogo, assume dois papéis, expondo seus argumentos por intermédio do personagem principal, o imperador inca Atahualpa. Tal decisão de conferir a Atahualpa a primazia no texto se configura como um ato de ousada rebeldia. As perguntas "adequadas" são feitas por Fernando VII, cujo lugar se confunde com o do público ouvinte/leitor, isto é, daquele que deve ser convencido da justeza das novas idéias, no caso, da necessidade da separação das colônias espanholas de sua metrópole.
A escolha da figura de Atahualpa estava carregada de simbolismo e se coadunava com os objetivos de Monteagudo que desejava denunciar a conquista espanhola. O aprisionamento do imperador e sua posterior execução a mando de Francisco Pizarro, em Cajamarca, foram posteriormente condenados por muitos cronistas, que viram nesse episódio um ato de traição no qual os conquistadores demonstraram sua ambição, crueldade e violência. Os espanhóis haviam chegado a Cajamarca, onde estava Atahualpa, sem encontrar resistência por parte dos indígenas. Instalaram-se numa espaçosa mansão oferecida pelos nativos. Mas logo o imperador se transformou em prisioneiro. Tentando conseguir sua liberdade, entregou aos espanhóis inúmeras riquezas. Finalmente, acusado injustamente de traição, foi condenado a ser queimado vivo. Perto da fogueira "converteu-se" ao cristianismo para beneficiar-se do "privilégio" da morte por estrangulamento.
E o que diz o Diálogo? O primeiro passo da montagem discursiva é inesperado: Atahualpa e Fernando VII aparecem como iguais. Os dois se declaram "descendentes de infinitos reis" que governavam seus súditos até que tiveram suas coroas usurpadas, e se transformaram em cativos de invasores. Se o espanhol foi obrigado a entregar o trono a Bonaparte, que lhe imputou "delitos falsos e fictícios", o mesmo aconteceu com Atahualpa, cujo cetro foi usurpado pelos espanhóis, apoiado também em mentiras. A partir dessa primeira constatação, dirigir-se-ão, um ao outro, como iguais. O Inca, ao mesmo tempo em que pede a Fernando que compare sua sorte à dele, emprega uma linguagem forte e agressiva, atacando a conquista e os "estúpidos espanhóis", cujo "coração avarento" só se voltou à "cobiça". Esses "usurpadores cruéis", que se "entronizaram na América contra a vontade dos povos", só espalharam a morte e o terror.
Assim se constrói o grande tema do Diálogo, qual seja, o da ilegitimidade da conquista (chegando à crítica da bula de Alexandre VI, que dividiu as terras da América cedendo grande parte aos espanhóis) e da usurpação dos direitos dos americanos sobre essas terras. Atahualpa fecha seu argumento com a afirmação de que nem o juramento de "vassalagem que os americanos prestaram ao espanhol, nem a possessão de trezentos anos que foi conseguida [pelos espanhóis] na América são título suficiente para dominar essas terras". 10
Monteagudo investe Atahualpa de duas principais identidades. No texto, o imperador inca se refere ora a um "nós/americanos", ora a um "nós/indígenas". Quando assume a voz dos indígenas, critica a mita como uma instituição violenta e destruidora de vidas. Por culpa dos espanhóis, "sacrílegos transgressores dos sagrados e invioláveis direitos da vida e da liberdade do homem", os índios só sofreram infelicidades e calamidades.
Mas os criollos também apresentam suas reivindicações pela voz de Atahualpa. Ironicamente, afirma que a felicidade dos americanos está na "ignorância que os espanhóis fomentaram", no tratamento despótico a que os espanhóis mais grosseiros lhes submeteram, na privação do comércio e no impedimento das manufaturas.
O texto termina com a vitória dos argumentos de Atahualpa sobre Fernando. Este admite e "confessa" que se ainda fosse vivo, "moveria" ele mesmo os americanos à "liberdade e à independência". No ponto culminante do texto, Atahualpa avisa que se pudesse voltar ao Reino do Peru, conclamaria seus habitantes à luta com uma exortação, que termina assim: "... desapareça a penosa e funesta noite da usurpação e amanheça o claro e luminoso dia da liberdade. Quebrai os terríveis grilhões da escravidão e começai a desfrutar dos deliciosos encantos da independência". 11 Os dois se despedem, dirigindo-se cada um a seus pares - Fernando a seus iguais "mayores" e Atahualpa a Montezuma e outros reis da América - para levar as boas novas da independência e da liberdade.
O panfleto surpreende especialmente pela amálgama produzida por Monteagudo, isto é, pela apropriação de uma identidade incaica pelo discurso de um criollo. Entretanto, se olharmos para o passado do Peru ou do México, regiões com populações majoritariamente indígenas, com uma extraordinária riqueza cultural, defrontar-nos-emos com uma linhagem de outros textos, também escritos por criollos, que trabalharam essa aproximação.
O primeiro notável exemplo, do final do século XVII, é o de Carlos de Siguënza y Gongora, poeta, matemático e astrônomo, catedrático da Real e Pontifícia Universidade do México. Em seu Teatro de virtudes políticas que contituyen a un Príncipe, escreveu poemas para os arcos triunfais que enfeitaram as ruas da Cidade do México, quando da chegada do vice-rei, conde de Paredes e marquês de Laguna, em 1680. No texto, em que se acumulam citações de Homero, Platão, Catão, Plínio, Sêneca, assim como dos padres da Igreja, como Santo Agostinho ou São Ambrósio, o mexicano oferece ao vice-rei um teatro de virtudes atribuídas aos imperadores astecas para servir como um espelho ao espanhol. Os criollos podiam, dizia Sigüenza, compartilhar os valores cívicos com aqueles do antigo "Império Mexicano", porque, antes de tudo, todos haviam nascido em terra mexicana. As virtudes de cada um dos imperadores astecas foram escolhidas de acordo com a escala de valores da cultura espanhola: prudência, piedade, clemência, generosidade, coragem. Estabelecendo relações entre os dois mundos, vistos como continuidades, escreve, por exemplo, um soneto que termina assim:
Goza, príncipe excelso, esse eminente
compendio de virtudes soberanas,
pues las regias divisas de Occidente,
que a tanto rey sirvieron mexicano
de dilatados triunfos en la frente,
son abreviadas glorias de tu mano.12
Este texto extraordinário mostra que Sigüenza y Gongora, a despeito de fazer parte da burocracia colonial e de ter seu trabalho como poeta e catedrático reconhecido pelas autoridades espanholas na Nova Espanha, não ficou imune ao peso do passado asteca, criando uma identificação entre a aristocracia indígena e o mundo dos espanhóis/americanos.13
Um século depois, ainda no México, há outro texto de retumbante repercussão. Refiro-me ao livro monumental escrito pelo jesuíta mexicano exilado na Itália, Francisco Xavier Clavigero, Storia antica del Messico, impresso em 1780-1781. Esse livro estabeleceu um novo olhar sobre a cultura e a história dos antigos astecas. Como indica Anthony Pagden, Clavigero defende com mais argumentos e mais entusiasmo a perspectiva anunciada por Sigüenza y Gongora. Para Clavigero, a população criolla deveria olhar com orgulho para a cultura indígena, "as nossas antiguidades", e ver nela sua pré-história. Acusando os espanhóis de avareza e ambição, afirmava que os astecas nunca foram movidos pela necessidade de usurpar os Estados legitimamente possuídos por outras nações nem transportar de distantes países metais preciosos dos quais não precisavam. 14
Depreende-se daí uma hierarquia de valoração, na qual os antigos astecas eram colocados numa posição superior à dos rapaces espanhóis. O texto de Clavigero, rico em simbolismo político, atribuía, malgré lui, uma identidade cultural particular aos mexicanos, uma continuidade entre o mundo indígena e o espanhol que ultrapassava os limites impostos pela dominação colonial. A historiografia já apontou a relevância e a repercussão do texto de Clavigero sobre as lideranças criollas no período da independência.
Voltando ao Peru no final do século XVIII, interessa-nos particularmente a leitura realizada pelo jesuíta peruano, Juan Pablo Viscardo y Guzmán, do texto de Clavigero. Exilado na Itália desde 1767, Viscardo deixou a Ordem, indo posteriormente para a Inglaterra, onde morreu em 1798. Em 1791-1792 escreveu a importante Carta dirigida aos espanhóis-americanos, que foi editada por Francisco de Miranda em Londres, em 1801, na sua tradução francesa. Pela primeira vez, sem metáforas ou subterfúgios, um criollo propunha a independência das colônias espanholas da sua metrópole. No texto, fazia uma crítica arrasadora da Espanha, empregando adjetivos virulentos quando se referia à Coroa ou a figuras da burocracia colonial, como o vice-rei Francisco de Toledo, apresentado como "monstro sanguinário" no trato com os incas. Estabelecendo comparações entre o período da Conquista e o momento em que escreve, construiu uma linha de continuidade em que se sucediam acusações aos espanhóis de opressão, despotismo, violência e rapacidade. Uma frase dessa carta tornou-se famosa e ecoou mais tarde entre os rebeldes independentistas. Referindo-se ao domínio da Coroa espanhola, dizia: "Nossa história pode ser expressa em quatro palavras: ingratidão, injustiça, servidão e desolação"15.
Leitor de Clavigero, Viscardo y Guzmán também fazia referências ao passado indígena do Peru. Em outubro de 1782, escreveu ao governo britânico defendendo a idéia do envio de uma expedição à América do Sul, com a finalidade, entre outras, de restabelecer "o trono dos Incas". Com relação à grande rebelião de 1780, liderada por Tupac Amaru II, Viscardo condenou a brutalidade da execução do líder indígena e, ousadamente, defendeu a idéia de que os únicos a terem a "verdadeira" e legítima posse das terras na América, como direitos naturais, eram os incas. 16
É muito provável que Bernardo Monteagudo tenha lido a posteriormente famosa carta de Viscardo y Guzmán na Universidade de Chuquisaca, pois Mariano Moreno, figura fundamental no processo de independência das Províncias Unidas do Rio da Prata, quando estudante da mesma universidade - graduou-se em 1804, um pouco antes de Monteagudo - havia traduzido a carta do francês para o espanhol.
Desse modo, é possível reconstruir uma linhagem de textos nos quais os criollos procuraram aproximar os dois mundos, o espanhol e o indígena, marcando a originalidade da América e seu distanciamento da Espanha, "que a natureza havia separado por imensos mares", nas palavras de Viscardo y Guzmán. 17 Monteagudo apropriou-se dessa tradição já estabelecida; entretanto, deu ao encontro entre Atahualpa e Fernando VII um novo sentido, que culminava com o convencimento de Fernando VII por Atahualpa da necessidade da libertação de suas colônias.
Se na esfera da produção letrada encontram-se tantos vestígios que explicam as escolhas de Monteagudo em seu panfleto, também é imprescindível buscar referências nos campos sociais e políticos. Durante o século XVIII, a sociedade colonial no vice-reinado do Peru experimentou um fenômeno cultural que John Rowe chamou de "movimento nacional inca". 18 Esse movimento, liderado pela nobreza incaica, envolveu o ressurgimento e a reelaboração de várias tradições incas e tomou forma no teatro, na pintura, nos desenhos e em outras representações artísticas. O desenlace desse processo aconteceu com a grande rebelião de Tupac Amaru, que se iniciou em novembro de 1780 e terminou em abril do ano seguinte, com o suplício de seu líder. Depois de sua morte, entretanto, a rebelião renasceu, espalhou-se pelo Alto Peru e aproximou-se de La Paz sob a liderança de Tupac Catari. Os espaços quéchua e aymara estiveram convulsionados até 1782.
Diante do colonialismo espanhol e da aristocracia branca limenha, Tupac Amaru propôs um programa que se pode resumir em três pontos centrais: 1) a expulsão dos espanhóis, com a abolição de toda a sua organização administrativa; 2) a restituição do Império Incaico, que deveria ser restaurado tendo à frente os descendentes da aristocracia inca; 3) a introdução de transformações substantivas na estrutura econômica; entre elas, a supressão da mita indígena e a liberdade de comércio. 19
Mas a revolução indígena ultrapassou os objetivos inicialmente propostos por seu líder. Ao lado da proclamação de Tupac Amaru como rei, as massas camponesas destruíram, com violência inédita, as propriedades espanholas e todos os símbolos da dominação. Não fizeram distinções entre peninsulares e criollos. Desejavam a volta do Tawantinsuyo, o império incaico. A derrota da rebelião deixou marcas profundas. De um lado, entre os criollos, um verdadeiro terror diante da possibilidade de novas rebeliões. Da parte dos índios, os resultados foram devastadores: desde 1782 se suprimiram os títulos de nobreza incaica e determinou-se a explícita proibição entre as populações indígenas de qualquer tipo de manifestação que pudesse servir para reviver as tradições incas. Os indígenas foram até mesmo proibidos de se auto-identificarem como incas quando falavam os seus nomes. Os nobres incaicos terminaram política e economicamente derrotados. Restou apenas a esperança messiânica indígena, com sentimentos populares que persistiram mesmo que de maneira subterrânea.
Como afirma Cecília Méndez, daí em diante seriam os criollos que assumiriam a tarefa de exaltar o passado imperial inca, reproduzindo suas tradições e seu sistema de símbolos. O recurso ao simbolismo inca efetivado pelos criollos carregava uma retórica que exaltava o passado e que tomou forma durante o período da independência. 20 Vale a pena indicar que dois dos próceres da independência - o argentino Manuel Belgrano e o venezuelano Francisco de Miranda - propuseram, ainda que sem repercussão, a constituição de um regime monárquico com um imperador inca, depois de alcançada a independência.
Assumindo essa interpretação, é possível encaminhar algumas conclusões sobre o texto de Monteagudo e pensar que ele foi produzido e sustentado por uma trama de vicissitudes que estavam também diretamente relacionadas à rebelião de Tupac Amaru e à sua repressão.
No texto de Monteagudo, as elites criollas vestidas com a roupagem do imperador inca falam por intermédio de Atahualpa. O autor se apropria da identidade indígena que se confunde com a criolla. Nas falas de Atahualpa, as idéias, os conceitos e os argumentos provêm do universo das idéias iluministas. Irônico é relembrar que, na teoria social européia do século XVIII, que opunha "civilizados" e "selvagens", estes últimos eram acusados, como sinal de sua inferioridade, de possuírem uma linguagem limitada a referências sobre os fenômenos observáveis e de serem incapazes de pensar em termos de abstração. 21
Ao mesmo tempo, Monteagudo /Atahulpa também critica a instituição da mita e a decorrente exploração dos indígenas. Mas relaciona o sofrimento dos índios à opressão dos espanhóis e ao poder metropolitano. Nessa lógica, alcançada a independência, o problema desapareceria.
Assim, entendo que o panfleto de Monteagudo está atravessado por uma contradição inelutável. Se, de um lado, põe em cena a figura do habitante nativo da América, apresentando-o como parte do processo de independência, por outro, rouba-lhe a voz e passa a falar por ele. Creio que também é um texto premonitório. Anuncia que a guerra de independência não poderá prescindir da participação popular, dos indígenas e dos mestiços. E, efetivamente, eles integraram os exércitos populares que pegaram em armas, desde o pequeno povoado de Dolores no México, até a cidade de Santa Fé na Argentina. Mas o texto implicitamente evidencia a tentativa de anulação da identidade indígena e de sua submissão às diretrizes das elites brancas. Tal situação permaneceria intocada por muitas décadas. No século XIX, os índios aparecerão nas interpretações oficiais da situação política nacional como estorvos ou entraves à civilização e à democracia. 22
Nesse sentido, Monteagudo produziu, depois da independência e já no fim de sua vida, quando assumira o papel de organizador da nova ordem institucional, abandonando a defesa do republicanismo e se voltando à proposição da monarquia, um outro texto que considero fundador de uma certa interpretação sobre o mundo da política na América Latina. O texto a que me refiro é Memória sobre os princípios que segui na administração do Peru e acontecimentos posteriores à minha saída, de 1823. Monteagudo escreveu-o com o objetivo de responder aos ataques dos seus inimigos políticos, explicando a mudança de suas perspectivas e atitudes. Ali, afirma a impossibilidade da democracia no Peru, baseado em dois pontos: a colonização espanhola e o mundo indígena.
Monteagudo parte do suposto de que tanto o domínio das idéias quanto das práticas políticas está restrito a poucos. Diz que as noções gerais acerca dos direitos dos homens, que começaram a ser difundidas depois da independência, faziam parte de uma linguagem que poucos entendiam, ou então compreendiam equivocadamente: "A ciência que ensina os direitos e as obrigações sociais é vasta e complicada. Ela exige um longo aprendizado, e a história de todos os povos, sem nenhuma exceção, demonstra que em nada é tão lenta a marcha do gênero humano, como no conhecimento prático dos termos das relações que unem os governos a seus súditos". Referindo-se ao povo, afirma que "ao ouvirem proclamar a liberdade e a igualdade, [pensam] que a obediência já deixou de ser um dever; que o respeito aos magistrados é um favor que se lhes dispensa; que todas as condições são iguais, não só perante a lei, porque esta é uma restrição que não compreendem". 23
A partir dessas premissas, procura explicar a impossibilidade da instalação de um regime democrático no Peru e, por extensão, nos países que foram colonizados pelos espanhóis. Afirma nosso autor que as refregas políticas por ele enfrentadas, ao lado da experiência da guerra e da paz, levaram-no a mudar completamente a visão política da sua juventude. Se um dia havia afirmado que "ser patriota, sem ser frenético pela democracia, era uma contradição", a realidade fizera-o mudar de posição. Quando desempenhou cargos políticos no Peru, tomou como princípio de sua administração "restringir as idéias democráticas", mesmo sabendo que tal posição atrairia a "ira popular". Entendia que "as idéias democráticas não eram adaptáveis ao Peru" por três razões principais, uma de ordem moral, outra de cunho econômico e a terceira de caráter social. No que concerne "à moral dos habitantes do Peru", estes não possuíam as virtudes necessárias para a democracia, pois constituíam um povo que havia sido "escravo" até aquele momento. Diz que um povo destinado à "obediência passiva por 300 anos" não poderia ter alcançado "o estado de civilização" necessário para viver sob o regime democrático. Quanto à distribuição da riqueza nacional, "que era a soma das fortunas particulares", esta também conspirava contra a democracia, pois "a distribuição de capitais de indústria no Peru não assegura a independência individual de seus habitantes de um modo adequado ao espírito das instituições democráticas". E, finalmente, no campo social, afirma que
...as mútuas relações que existem entre as várias classes que formam a sociedade do Peru tocam no máximo da contradição com os princípios democráticos. A diversidade de condições e variedade de castas, a forte aversão que umas professam pelas outras, o caráter diametralmente oposto de cada uma delas, enfim, a diferença nas idéias, nos usos, nos costumes, nas necessidades e nos meios de satisfazê-las apresentam um quadro de antipatias que ameaçam a existência social, se um governo sábio e vigoroso não for capaz de prever seu influxo24.
E termina de forma enfática:
É necessário concluir de tudo, que as relações que existem entre amos e escravos, entre raças que se detestam e entre homens que formam tantas subdivisões sociais quantas modificações há em sua cor, são inteiramente incompatíveis com as idéias democráticas.25
Desse modo, Monteagudo encaminhava uma solução para a questão da democracia, um dos grandes desafios do processo de independência. Derrotado o inimigo comum - a dominação espanhola - forjava-se, no bojo das lutas independentistas, a justificativa da exclusão da esfera política institucional daqueles considerados "sem virtude" ou "sem dinheiro". Além disso, os que não tinham a pele branca passaram a ser responsabilizados pela necessidade da imposição de um governo autoritário. Fundava-se, assim, uma interpretação sobre a impossibilidade da democracia, na América Latina, que seria repetida ou reelaborada até os dias atuais.
Assim como Monteagudo, as elites políticas hispano-americanas escreveram intensamente sobre a questão, demonstrando conhecimento e familiaridades com a produção textual européia e, ao mesmo tempo, indicando sua atenção aos problemas sociais particulares de cada uma das sociedades. Em geral, justificavam suas posições criticando "os excessos" dos regimes democráticos. Muitos de seus argumentos apontavam os perigos da democracia por ser o regime das maiorias ignorantes. Não havia, segundo eles, na América Espanhola, condições sociais e políticas adequadas ao funcionamento da democracia. Da mesma forma que na Europa, no mesmo período, pensavam que era necessário esperar e educar o povo para que as instituições democráticas paulatinamente pudessem entrar em vigência. 26
Para concluir, penso que o movimento de independência abriu possibilidades diversas para os que viveram naquele período. Tempos de sonhos, tempos de escolha. Sonharam os letrados ilustrados que expressaram suas utopias em escritos como aquele que leva por título: "Soñava el Abad de San Pedro y yo también se soñar", do guatemalteco José Cecílio Del Valle que, em 1822, propunha a unidade americana. A mesma unidade idealizada por Simón Bolívar, que acreditara que a liberdade faria a América Meridional desabrochar e florescer. Sonharam os mais pobres, que alimentaram expectativas de mudança da ordem existente, de uma inversão da realidade. Ao começar o século XIX, vários murais limenhos, um deles atribuído ao pintor popular Pancho Fierro, retratava a imagem do "mundo ao contrário": o réu aparecia aguardando o juiz, o usurário exercendo a caridade, os touros provocando o toureiro. 27
Sonhou Monteagudo. Na juventude, um sonho jacobino democrático radical. No final da vida se desiludiu, do mesmo modo que Bolívar que, 15 dias antes de morrer, escrevera que fazer a revolução na América do Sul era arar no mar. Monteagudo acreditou que apenas as restrições dos direitos políticos, a repressão e a hierarquia seriam a solução para a manutenção da ordem. Passou de revolucionário a conservador. Sua trajetória política seria, desafortunadamente, um modelo precursor de tantos outros revolucionários latino-americanos, nos séculos XIX e XX, que deixaram de sonhar e de ter esperança.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742003000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Revista Historia - UNESP
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