O príncipe e os estados do reino
Um estudo sobre a idéia de príncipe e sua infiltração social
Alexandre Pierezan
O autor é mestrando no Programa Interinstitucional UFF/UNIOESTE e Professor Colaborador da UNIOESTE. O presente artigo é parte dos resultados obtidos na pesquisa de mestrado, que tem como propósito estudar A idéia do príncipe no Testament politique do Cardeal de Richelieu.
RESUMO: O presente artigo demonstra
como as idéias inerentes ao Testament
Politique do Cardeal de Richelieu criam
funções específicas para cada ordem no
interior do reino, proporcionando idéia
ordenada do conjunto da sociedade francesa.
Apresenta as máximas políticas de Richelieu
e os códigos a que se conectavam. Explicita
as estratégias políticas, o pragmatismo e sua
relação com a idéia de ordem social. O
príncipe e os estados do reino analisa a
relação entre o sentimento de pertença ao
mundo francês e as formas de pensar o
príncipe como elemento de ligação.
O sentimento de defesa das coisas da terra, a exaltação de tudo que estivesse relacionado ao mundo francês era uma tendência que parecia estar crescendo dia após dia. Os povos que viviam na Europa da primeira metade do século XVII, mais detidamente os franceses, possuíam experiência baseada na tradição, que remonta à Idade Média, que lhes permitia conhecer a presença marcante de um universalismo ao mesmo tempo patriótico e cosmopolita, resultado da
mescla entre a linha religiosa-cristã e a moral-estóica. Para Emmanuel Le Roy Ladurie, "(...) a monarquia clássica aparece, enquanto poder e soberania, como uma imagem hiperbólica da sociedade global..." 1
Desde o medievo, o homem insere-se num conjunto de elementos que lhe permite produzir uma visão cosmopolita, herdeira da cultura antiga dos gregos, de romanos e dos profetas do Antigo Testamento, que levaram para além de sua cidade de origem uma vaga noção de universalidade. Para compreendermos melhor, os cristãos apropriavam-se e reliam, de forma deliberada, as idéias greco-romanas e dos hebreus. Aliado à reunião de culturas e de idéias, promoviam a busca pela universalização, como se a habitação, aqui na terra, fosse universal. Tal ensejo visualizava Roma como centro e pátria comuns para cristãos e pagãos, pois o mundo era entendido como uma grande habitação. Apesar de tudo, os cristãos ultrapassam estes objetivos, ampliando seu entendimento do mundo para um plano escatológico, cuja finalidade seria a pátria celestial.
É nesta direção que o sentimento patriótico passou a assumir um caráter dual, respectivamente, a função de fortalecer os laços de uma comunidade humana particular e, de certo modo, conservar uma relação com elas, numa última referência comum que as mantinha unidas. Neste sentido, o desenrolar de um sentimento particular de comunidade, a noção escatológica do mundo, o sentimento de pertencimento, de parentesco, identificação lingüística, costume, e uma série de inumeráveis aspectos, pareciam atuar conjuntamente na constatação dos Estados modernos europeus. Como diria Emmanuel Le Roy Ladurie, "nada de Estado, contudo, sem sociedade civil, território, facções, camarilhas"2. Estes exemplos, por sua vez, surgem em meio a uma complicada trama social e política, cujas especificidades não podem deixar de figurar nas análises de qualquer que seja o documento da época.
O Testament Politique do cardeal de Richelieu revela, justamente, a ligação entre o tempo que se vive e a tradição preocupada em deixar marcas nas gerações que a sucedem. Apesar da obra apontar para a importância da religião como elemento estabilizador, mantinha estreita relação com a fé católica, uma vez que Richelieu era católico de convicção, nasceu e viveu intensamente a tradição religiosa, mas, sempre deixou clara a importância dela para ascender a postos mais elevados na sociedade. No entanto, sempre atuou no sentido de ser devidamente aceito no seio da religião católica.
Nutrido pelo sentimento de agregação em torno dos ideais pela terra natal, Richelieu demonstra a importância e, ao mesmo tempo, fornece os exemplos, reitera o compromisso de que não iria tolerar qualquer insubmissão ao rei enquanto estivesse à frente das coisas do Estado. Em seu Testament Politique esclarece sobre a impossibilidade de aceitar, no interior de um reino, uma dada situação que possa ofuscar o brilhantismo da monarquia e do rei, e faz tudo para submeter os movimentos centrífugos ao jugo da monarquia. Parece, entretanto, que o mesmo movimento, no sentido de afirmação dos valores nacionais, começava a se desenvolver e intensificar em grande parte dos estados europeus, mesmo porque Maquiavel já havia atentado para o aspecto pátria, já com uma conotação de reino. Richelieu, contudo, sempre travou disputas para garantir a presença da língua francesa, sempre preocupado em propagandear e manter o sentimento da terra. Um caso esclarecedor ocorreu em 10 de julho de 1637, quando o então primeiro-ministro tentou impor, ajudado pelo rei, o uso da língua materna na academia francesa.
Deste fato decorrem sérias disputas entre Richelieu e os parlamentares, que acabam por obtemperar, lançando outra cláusula ainda mais taxativa: "que a academia somente poderá conhecer a língua francesa em livros que tiver feito ou que forem expostos a seu julgamento"3. Escrever um testamento político usando a língua materna significa, acima de tudo, reforçar um sentimento de afeto a tudo que esteja relacionado ao lugar de nascimento, à língua que se aprendeu desde criança ou, ainda, a um sentimento de amor à língua "que nos é natural e que mamamos nos seios de nossas mães" 4. Sem dúvida, não se pode ocultar as intenções de Richelieu em propagandear a condição que lhe é concedida. A busca pela identificação da língua, das relações primárias vividas na comunidade de nascimento e um sentimento extremamente regional contribuíram para afirmação de idéias que fortaleceram as intenções do peuple5 no caminho da centralização monárquica.
No interior de uma série de transformações sociais e políticas, o período em questão pôde expressar modificações profundas no interior de grupos. Como exemplo temos a ascendência de membros laicos que passaram a ocupar funções eclesiásticas, bem como a entrada de burgueses nas ordens aristocráticas e nobres. O que acelera a busca pela distinção social pode muito bem caracterizar um estímulo a mais no investimento pessoal diante das adversidades cotidianas. O que num passado não muito distante era visto apenas como obra da providência, neste período a destreza e a astúcia parecem assumir valor ainda maior. Os homens pensam e agem mentalizando, com avanços e recuos, um sentimento de promoção pessoal e dos seus
parentes próximos.
A partir da análise de Renato Janine Ribeiro pode-se refletir sobre um duelo. Logo no princípio da obra Os Três Mosqueteiros, o filósofo sugere que "o nobre está sujeito a uma responsabilidade maior, mais ampla do que a nossa. Não responde apenas pelo que praticou consciente e livremente, mas também pelo que recaiu sobre ele. Não se distingue o plano em que foi ativo - sujeito ou cidadão, hoje, diríamos - daquele em que foi passivo" 6. Além do mais, parece-nos que os laços afetivos entre os membros da família tomaram rumos nítidos no sentido da unidade, pois, entendemos ser prematuro pensar em células familiares, característica visível nas sociedades burguesas.
Ao mesmo tempo em que Armand-Jean du Plessis, o futuro cardeal de Richelieu pôde contar com educação não muito distante da família, as condições da nobreza de sua época ainda continuavam a influenciar e a marcar profundamente sua formação. Enquanto nas camadas menos abastadas da população os vínculos familiares começavam a demonstrar sinais visíveis de
um sentimento de célula familiar entrincheirada, não da forma como a conhecemos atualmente.
De modo significativamente rústico, entre os nobres parece haver maior resistência com relação ao fechamento em torno de apenas alguns dos familiares. É o caso que Richelieu pôde presenciar
em relação ao seu próprio pai, que vivia se afastando freqüentemente dos filhos e da mulher, em
função de sua condição de nobre, justamente, porque, de acordo com Philippe Ariès, "o sucesso
só podia ser obtido graças ao favor dos grandes e a amizade dos pares"7, de que Richelieu nunca
esqueceu e a quem sempre esteve atento.
Pensar sobre tais assuntos nos reporta às idéias que dizem respeito à intensa procura pelo centralismo régio e como ele teve avanços e retrocessos. A riqueza dos detalhes, a importância velada de se manter diante de qualquer um, a dissimulação e a arte de agradar mesmo nas piores circunstâncias, são atitudes reveladas por Richelieu em seu Testament Politique. Em meio a muitas artimanhas, hábito comum em sua época, "(...) em que o fingimento, admitido como rotineiro era menos culpado..." e que a dissimulação era "vista com alguma inocência" 8, o testamento surge como instrumento educativo, espécie de catecismo para adolescentes9. Mesmo
que lhe falte "o acabamento de estilo das máximas que fizeram famosos os salões da França" 10,
tentou adaptar o príncipe aos jogos do poder para conseguir centralizá-lo em suas mãos. De modo geral, Philippe Ariès opina contrariando uma suposta idéia de centralidade:
"Os historiadores já insistiram na manutenção até muito tarde no século XVII de relações de dependência que antes haviam sido negligenciadas. A centralização monárquica de Richelieu e de Luís XIV foi mais política do que social. Se ela conseguiu reduzir os poderes políticos rivais da coroa, deixou intactas as influências sociais. A sociedade do século XVII na França era uma sociedade de clientelas hierarquizadas, em que os pequenos, os 'particuliers' se uniam aos maiores. A formação desses grupos implicava toda uma rede de contatos quotidianos, sensoriais"11.
É notável a maneira pela qual se desenvolvem as teias sociais. As ligações proporcionadas possuem vínculos, cujos códigos e símbolos são internalizados pelos membros diretamente ligados ao conjunto dos indivíduos. Cada indivíduo internaliza os códigos e símbolos para estabelecer uma relação de reciprocidade, sendo que a não-internalização pode ocasionar o estranhamento diante da realidade que se apresenta. Por isto, quem nunca entrou em contato com tais jogos, acredita estar presenciando uma realidade que não é a do seu mundo12. Devido à série de elementos que precisam de inúmeros códigos para conseguir penetrar em suas tramas sociais, torna-se evidente que a centralidade de um poder que se deseja único, falha em suas mais diferentes áreas de atuação. No tocante à infiltração social, os costumes e a ideologia monárquica mantêm distantes, por exemplo, do sonho camponês, com seus desejos e preocupações; com as intempéries e a luta pela obtenção de maior quantidade de produtos de subsistência. O desejo do comerciante, que negocia as mercadorias adquiridas no campo, nas oficinas ou no comércio com outras regiões da Europa, não consegue manter uma ligação direta com muitos dos símbolos corteses dos palácios reais. De forma clara e objetiva, Jean-Marie Apostolidès esclarece que, mesmo abordando o povo e a nação à época de Luís XIV, as cerimônias e os seus respectivos símbolos definem a condição de participante e de espectador:
"A nação é constituída pelos indivíduos das três ordens que possuem a maior quantidade de bens. Forma o embrião da burguesia, na acepção da palavra no século XIX. No momento da entrada, somente uma minoria vinda das três ordens é chamada a desfilar com o príncipe, a fazer
parte do espetáculo diante do povo que ela representa. O cerimonial monárquico acentua assim uma polarização social que ele traduz concretamente. A sociedade francesa cristaliza-se através de um ritual festivo cujas imagens servirão de suporte à nova consciência: conforme se desfila ou não, pertence-se à nação ou ao povo. Não se trata de negar a diversidade dos subgrupos que constituem o povo e a nação, mas a separação em dois blocos, latente na vida diária, tornou-se manifesta à época da entrada. A festa vem a ser uma ocasião para exprimirem-se as novas divisões sociais. Fornece-lhes um brilho que as sanciona à vista de todos. O visual precede o escrito, servindo-lhe de esboço: a imagem permite a tomada de consciência de uma dicotomia que a lei mais tarde reforçará. De um lado, aqueles que tomam parte da procissão, o alto clero, a
nobreza da corte, a minoria poderosa do terceiro estado; na frente, os espectadores comprimidos
ao longo da passagem do cortejo. A milícia burguesa, formando uma ala de honra nas ruas, enfatiza a separação entre os que estão associados à cerimônia e os que são apenas espectadores.
Estes, nos jornais, são genericamente designados como povo, ou um de seus derivados de
conotação pejorativa"13
Para ler a matéria completa clique no endereço http://www.historia.uff.br/cantareira/novacantareira/artigos/edicao1/oprincipeeosestadosdoreino.pdf
Revista Cantareira - UFF
Nenhum comentário:
Postar um comentário