sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A absolvição do Padim



A absolvição do Padim
Por determinação do papa Bento XVI, o Vaticano reavalia a condenação de Cícero Romão Batista, o adorado e polêmico padre cearense que chegou a ser excomungado

por Lira Neto
Uma reviravolta está em andamento nos bastidores da Igreja Católica. Um padre polêmico, que viveu sob o signo da controvérsia e morreu proscrito, condenado pelo Santo Ofício, pode vir a ser declarado santo. O sacerdote brasileiro Cícero Romão Batista, acusado no fim do século 19 de proclamar falsos milagres, de incentivar o fanatismo popular e de se beneficiar financeiramente da devoção extremada de seus milhões de seguidores, está sendo objeto de novos estudos e investigações na Santa Sé. As longas cartas e as pilhas de documentos oficiais trocados na última década entre o Vaticano e o Brasil indicam que, talvez bem mais cedo do que inicialmente se pudesse imaginar, o célebre padre Cícero - o "Padim Ciço", como é chamado pela legião de romeiros que o venera - deverá ser absolvido de todas as incriminações que recaem sobre sua figura histórica. Entre bispos e cardeais, aqui ou em Roma, uma palavra é repetida sempre que ele é o assunto: "reabilitação".

Reabilitar padre Cícero significaria anistiá-lo, post-mortem, das penas que lhe foram impostas, em vida, pelo Santo Ofício. Em decorrência das acusações de que era um rebelde, um desobediente à hierarquia católica e um semeador de fanatismos, ele foi alvo de um inquérito eclesiástico que terminou por proibi-lo de rezar missas, de confessar fiéis e de ministrar sacramentos como o batismo e o matrimônio. Tornou-se, então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca de 2,5 milhões de peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de Juazeiro do Norte para reverenciar sua memória, Cícero continuou sendo oficialmente considerado um padre maldito, renegado pela Igreja Católica.

Agora, a chamada reabilitação seria o primeiro passo para uma posterior beatificação, ou seja, o reconhecimento canônico de que o homem Cícero Romão Batista teria vivido na plenitude das virtudes cristãs, sendo um "bem-aventurado", o que resultaria na consequente autorização para o culto público a seu nome. Contudo, há os que apostem mais longe e acreditem que, devido às milhares de graças que os romeiros dizem ter alcançado por intercessão do padre Cícero - cegos que teriam voltado a ver, aleijados que andaram novamente, loucos que teriam recuperado o juízo -, o caso, a médio prazo, deverá evoluir da simples beatificação para a efetiva canonização, quando então ele seria elevado à honra dos altares de toda a Igreja. Esse processo burocrático, como ocorreu com Frei Galvão (1739-1822), o primeiro santo nascido no Brasil, é complexo e pode levar vários anos. Entre os religiosos simpáticos à reabilitação do Padim, um nome se destaca: o de Joseph Ratzinger. Ele mesmo. O cardeal alemão que em 2005 se tornou papa e hoje atende pelo nome de Bento XVI.

Ordem papal

Foi o próprio Ratzinger que, em 2001, encaminhou uma carta à Nunciatura Apostólica no Brasil - a "embaixada" do Vaticano no país - tratando abertamente da possível anistia póstuma do padre Cícero. O cardeal era o então prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (como desde 1967 passou a ser conhecido o antigo Santo Ofício, antes denominado Inquisição Romana, a mesma instituição que, um dia, julgou e condenou Cícero). Outro decisivo apoio à causa da reabilitação é manifestado pelo cardeal italiano Tarcísio Bertone, atual secretário de Estado do Vaticano, que já esteve pessoalmente em Juazeiro e testemunhou as gigantescas romarias que fazem daquela cidade o maior centro de peregrinação cristã no Brasil, abaixo apenas de Aparecida (SP), onde se reverencia a santa padroeira do país.

Uma circunstância histórica motivou a carta de Ratzinger e tem feito o processo de reabilitação caminhar com maior celeridade: a Igreja Católica não pretende mais assistir de braços cruzados à verdadeira sangria de fiéis que vem sofrendo nos últimos anos. A ofensiva e o crescimento vertiginoso das concorrentes evangélicas, especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, têm sido motivo de aguda preocupação para o clero. "Maior nação católica do planeta", o Brasil é também o país em que o catolicismo mais perde fiéis para os apelos dos pastores neopentecostais.

Em uma correspondência oficial a Bento XVI, escrita em 30 de maio de 2006, dom Fernando Panico, bispo do Crato (a diocese à qual está subordinada Juazeiro do Norte), explicitou a questão, com todas as letras: "Posso testemunhar, Santidade, que as nossas romarias são um baluarte da fé dos pobres, filhos queridos da Igreja Católica, cuja devoção contém e freia, por assim dizer, o avanço das seitas evangélicas na nossa região".

Para a Igreja, absolver Cícero seria uma forma de não deixar os milhões de devotos e romeiros nordestinos à margem da liturgia. Em entrevista ao jornal The New York Times, publicada em março de 2005, o mesmo dom Fernando foi taxativo: "O padre Cícero é um antivírus contra os evangélicos".

Fazedor de milagres

Toda a história pessoal de Cícero Romão Batista está permeada de mistérios, ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual medida por seus contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir daí - ele continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.

Nascido na cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre em 1870, Cícero viveu e cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o universo mágico do misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens, almas penadas e mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos padroeiros e com as advertências apocalípticas dos profetas populares, que pregavam o fim dos tempos. Do outro lado, o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da submissão cristã com a qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé no maravilhoso, outro na ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada, recheada de episódios mirabolantes que mais parecem beirar a ficção (veja a linha do tempo).

Entretanto, até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de extraordinária. Em 1889, Cícero era um simples padre de aldeia, rezando missa numa minúscula capelinha do então povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de Fortaleza, quando um fenômeno misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da Igreja e da imprensa. Ao ministrar a comunhão a uma beata - a humilde costureira e doceira Maria de Araújo -, a hóstia consagrada teria se transformado em sangue. "Não posso duvidar, porque vi muitas vezes", escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará.

Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos caíram de joelhos diante do proclamado milagre. A Igreja, porém, acusou Cícero e a beata de fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente provas do céu, que as vá gozando só, sem perturbar a boa ordem da diocese", desdenhou o bispo Vieira.

Fato ou embuste, o caso é que o padre e seus adeptos evocaram em sua defesa - e até hoje evocam - uma série de fenômenos mais ou menos semelhantes, devidamente chancelados pelo Vaticano sob a classificação genérica de "milagres eucarísticos". Mas uma frase atribuída ao então reitor do Seminário da Prainha, o padre Pierre-Auguste Chevalier, revelaria a dificuldade do clero tradicional em aceitar as manifestações da fé popular: "Jesus Cristo não iria sair da Europa para fazer milagres no sertão do Brasil", teria tripudiado o francês.

Chefe político

O episódio da hóstia que diziam se transformar em sangue rendeu a Cícero a admiração dos milhares de peregrinos, que desde então não mais pararam de chegar a Juazeiro para testemunhar a suposta maravilha. Mas também significou para o padre uma longa via-crúcis de indisposições perante as autoridades eclesiásticas da época (veja as páginas 32 e 33).

Banido pelo clero, Cícero passou a ocupar a posição de mártir no imaginário coletivo, ao mesmo tempo que começou a desfrutar de uma enorme notoriedade e de um imenso poder junto ao povo mais simples do sertão, vítimas históricas da seca e do descaso governamental. Aquela gente, sem perspectivas, sem dinheiro e sem chão, cada vez mais se identificava com o sacerdote que nunca foi propriamente um grande orador, mas em compensação sabia falar a mesma língua deles, chamando-os de "amiguinhos", ouvindo-lhes as queixas, distribuindo prédicas e conselhos.

Moralista severo, Cícero pregava contra os amancebados, os festejos pagãos e o desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao arrependimento: "Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais, quem matou não mate mais", costumava dizer.

Quando não pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou apadrinhar inúmeras crianças, vindo daí o título de "padrinho padre Cícero", que na corruptela da linguagem popular resultou Padim Pade Ciço.

"Em cada casa um oratório, em cada quintal uma oficina", pregava ele, atraindo trabalhadores, agricultores e artesãos de todo o Nordeste, que passaram a se fixar e aos poucos transformaram o arrabalde em um importante centro manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em 1911, Cícero foi nomeado o primeiro prefeito de Juazeiro. Líder religioso, tornou-se também chefe político, igualmente polêmico e contraditório. Ao mesmo tempo que pregava aos "náufragos da vida", como se referia aos menos favorecidos, estabeleceu alianças com as elites poderosas.

A Santa Sé delibera

Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar de estudos se debruçou sobre a vasta documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil e do Vaticano. Coordenada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal comissão foi composta por especialistas de várias áreas do conhecimento: antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia e teologia. A finalidade era trazer à luz novos documentos que servissem para tentar responder a uma questão que sempre acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi esse homem, acusado de espertalhão por muitos, aclamado como visionário por outros tantos?

O relatório final da comissão foi entregue em maio de 2006 na Santa Sé. Junto, uma coleção de 11 volumes reunia as transcrições das centenas de cartas trocadas entre os principais personagens da história do padre. Um volume à parte levava cerca de 150 mil assinaturas de populares em prol da reabilitação, às quais se somava um abaixo-assinado no qual se lia o nome de 253 bispos brasileiros favoráveis à causa. Em complemento à papelada, a carta de dom Fernando ao papa: "Venho com toda esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas",

É sobre esse vasto material que ora se debruçam os cardeais da Congregação para a Doutrina da Fé, a quem caberá decidir pela pertinência ou não da tese da reabilitação. A última palavra estará reservada ao próprio Bento XVI. Mas, enquanto a Santa Sé delibera, há indícios que ajudam a antecipar a possível resposta.

Em setembro de 2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o templo que Cícero construiu em Juazeiro e no qual depois se viu impedido de rezar missa - foi elevado pelo Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o brasão de Bento XVI foi sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à vista dos romeiros que chegam para louvar o Padim. No templo em que o padre está enterrado, a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em Juazeiro, foi autorizada a instalação de um vitral multicolorido em que se destaca a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais. Setenta e cinco anos após a morte do sacerdote, a Igreja se prepara para absolver Cícero Romão Batista.

Santo sertanejo
A polêmica trajetória de Padre Cícero

1844

Cícero Romão Batista nasce na cidade do Crato (CE).

1870

Cícero é ordenado padre, apesar das reservas do reitor do seminário, que o julgava um aluno "teimoso" e "dono de ideias confusas".

1872

Sem ter recebido nenhuma paróquia, o jovem padre aceita o convite de moradores para rezar a missa de Natal no pequeno povoado de Juazeiro, vizinho ao Crato. Segundo ele, um sonho faz com que continue a morar ali para sempre. Jesus teria pedido a Cícero que "tomasse conta" dos pobres do local.

1889

Acontece o chamado "milagre do Juazeiro".

1908

Atraído por notícias da existência de uma valiosa mina de cobre na região, chega a Juazeiro um baiano misterioso: Floro Bartolomeu. Médico, rábula e garimpeiro, ele passa a ser o principal braço político de Cícero.

1909

Começa a circular O Rebate, primeiro jornal de Juazeiro, fundado para defender a tese da emancipação do povoado em relação ao Crato. Floro Bartolomeu é um dos editores.

1910

Morre misteriosamente o professor José Marrocos, um ex-seminarista que exerce grande influência sobre Cícero. Floro é acusado de tê-lo envenenado, mas nunca se prova nada a esse respeito.

1911

Juazeiro se emancipa. Cícero, filiado ao Partido Republicano Conservador, é nomeado primeiro prefeito do novo município. Permanecerá quase duas décadas no cargo, sendo reeleito seguidamente. Na data da posse, sela um pacto de paz com os principais coronéis da região, no qual todos prometem parar as animosidades mútuas.

1913

Em acordo com o governo federal e com o aval de Cícero, Floro viaja ao Rio de Janeiro para tramar a queda do então presidente (cargo igual ao de governador) do Ceará, Franco Rabelo. De volta, Floro depõe as autoridades municipais e instala uma Assembleia estadual paralela para caracterizar a duplicidade de poderes e provocar uma intervenção federal.

1914

O governo estadual reage. Manda tropas para atacar Juazeiro. Cícero segue o conselho de um sobrevivente de Canudos e pede aos moradores que cavem um fosso gigantesco em torno da cidade: o "Círculo da Mãe de Deus". Com isso, o ataque fracassa. Juazeiro parte para a ofensiva. Comandado por Floro, um exército de jagunços e cangaceiros toma o Crato e várias outras cidades cearenses, cercando Fortaleza. O governo federal decreta a intervenção no Ceará. Cícero é nomeado vice-presidente do estado.

1926

A Coluna Prestes entra no Ceará. Cícero escreve carta aberta a Prestes, conclamando-o à rendição. Floro tem a ideia de convocar Lampião para integrar o chamado "Batalhão Patriótico", organizado para dar combate à Coluna. É quando o cangaceiro recebe a patente de capitão e passa a assinar "Capitão Virgulino". No mesmo ano, Cícero é eleito deputado federal, mas não assume o cargo, por causa da idade avançada.

1930

Vitória da revolução que leva Getúlio Vargas à Presidência da República. Cícero escreve uma carta aberta ao povo, classificando os revolucionários de "mensageiros de Satanás".

1934
Cícero faz uma grande doação ao bispado do Crato, tornando-o o principal beneficiário de sua herança. Em 20 de julho, o padre morre aos 90 anos.


A via-crúcis do padre Cícero
A hóstia transformada em sangue fez sua glória e desgraça


I

Em 1 de março de 1889, sexta-feira da Quaresma, o padre Cícero oferece a comunhão à beata Maria de Araújo e a hóstia se transforma em sangue. O fenômeno teria ocorrido por semanas seguidas, até 15 de agosto, dia da Ascensão de Nossa Senhora. Os paninhos manchados de sangue são adorados como relíquias sagradas.

II

A primeira grande romaria a Juazeiro ocorre em 7 de julho de 1889, organizada pelo reitor do seminário do Crato, Francisco Monteiro. Três mil peregrinos chegam ao povoado, que tinha pouco mais de 400 moradores. Segundo o reitor, era o sangue de Jesus que jorrava nas comunhões da beata. O milagre vira notícia na imprensa de todo o país.

III

O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, censura Cícero e o monsenhor Monteiro por proclamarem milagres ainda não investigados pela Santa Sé. Em julho de 1891, o bispo cria uma comissão de inquérito eclesiástico, formada pelos padres Francisco Antero e Clycério da Costa Lobo. A ordem é desmascarar um possível embuste.

IV

Em setembro de 1891, os padres Clycério e Antero vão a Juazeiro investigar o fenômeno. Segundo relatório levado ao bispo, por várias vezes eles dizem ter testemunhado a transformação da hóstia em sangue e negam que se trate de uma farsa. Em interrogatório, a beata Maria de Araújo jura que fala com Jesus e que viaja, em espírito, ao Céu e ao Inferno.

V

Em abril de 1892, inconformado, o bispo envia uma nova comissão a Juazeiro, coordenada pelo padre Alexandrino de Alencar. Ordena-se que a beata não feche a boca durante a comunhão e a suposta transformação não ocorre. Cícero é acusado oficialmente de embuste e a beata, de mentirosa. Ela é enclausurada e punida com bolos de palmatória.

VI

Em julho de 1892, o padre Antero viaja ao Vaticano em defesa de Cícero. O Santo Ofício examina o caso. Em agosto, o bispo cearense proíbe Cícero de rezar missas, pregar aos fiéis, confessar e ministrar sacramentos. Em 1894, o Santo Ofício condena os fatos como "prodígios vãos e supersticiosos. Os padres adeptos do milagre se retratam. Menos Cícero.

VII

Em 1898, Cícero vai ao Vaticano se defender. É interrogado e depois recebido pelo papa Leão XIII. O Santo Ofício absolve Cícero das censuras, desde que ele guarde silêncio sobre o caso. O padre jura submissão, mas segue suspenso das ordens sacerdotais. Os paninhos sujos de sangue são roubados da matriz do Crato e desaparecem por vários anos.

VIII

Proscrito pela Igreja, o padre Cícero gradualmente faz da política seu novo sacerdócio. A beata cai no ostracismo. Não há notícia de que os milagres continuem a ocorrer, mas as romarias a Juazeiro prosseguem, cada vez maiores. Com as esmolas dos peregrinos, Cícero acumula vasto patrimônio. Torna-se prefeito e vice-governador do Ceará.

IX

Em 1916, a Santa Sé declara que Cícero, aos 72 anos, por ainda alimentar o "fanatismo", está excomungado. Mas ele jamais saberia disso. Temendo pela saúde do velho padre, o bispo do Crato, Quintino Rodrigues, evita aplicar a excomunhão e exige dele uma retratação pública. O Santo Ofício revê a pena, mas mantém suspensas as ordens sacerdotais.

X

Em 1930, sob os protestos de Cícero, o corpo da beata é retirado da sepultura, dentro da capela de Nossa Senhora do Socorro, em Juazeiro. A justificativa das autoridades religiosas era que o templo seria reformado. Mas, após a exumação (feita sem autorização legal), os restos de Maria de Araújo desaparecem. A intenção real era eliminar um dos locais de romaria.

XI

Em 1934, morre Cícero Romão Batista. No testamento, ele deixa a maior parte dos bens para a Igreja. Após o falecimento do padre, os paninhos manchados de sangue reaparecem em poder de uma beata. Por ordens do novo bispo do Crato, de acordo com o que determinara o Santo Ofício, eles são destruídos e queimados.

XII

Em 2001, o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reabre o processo que culminou na suspensão de Cícero. Em 2005, Ratzinger é eleito papa. No ano seguinte, recebe a documentação de uma comissão interdisciplinar de estudos que sugere a anistia, post-mortem, do padre. O caso segue em estudos no Vaticano.

Saiba mais

LIVROS

Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no sertão, Lira Neto, Companhia das Letras, 2009

Biografia do polêmico sacerdote, ilustrada com muitas fotos de época e fac-símiles de documentos raros e inéditos.

Milagre em Joaseiro, Ralph Della Cava, Paz e Terra, 1976

Um dos principais estudos acadêmicos sobre a figura de Cícero, escrita por um brasilianista que teve acesso a vasta documentação original.

Post-Scriptum

Altares e oficinas: a influência de padre Cícero sobre as artes em Juazeiro

Grande parte da vitalidade cultural de Juazeiro do Norte se deve ao papel catalisador desempenhado pelo padre Cícero Romão Batista, depois dos "fatos extraordinários" de 1889, quando a hóstia teria se transformado em sangue durante a comunhão da beata Maria de Araújo.

Certo é que o "milagre" repercutiu, se fixou no imaginário coletivo sertanejo e a transmissão oral fez o acontecimento ganhar dimensão mítica. O relato chegou, timidamente, ao cordel, talvez pela força repressora da Igreja Católica, que tentou apagar o fato. As romarias se iniciaram como uma manifestação de gratidão pelas graças alcançadas e pela expectativa de mudança de vida na Nova Jerusalém das profecias sertanejas.

O padre Cícero estava lá para abençoar os que chegavam e para autorizar a fixação dos adventícios no espaço da cidade que crescia depois da Semana Santa de 1889. É curioso ler os relatos que falam que os romeiros tomavam a bênção ao "Padim" e pediam para ficar na cidade. Alguns cobravam dele a definição de um ofício. Em uma de suas prédicas, feitas sob medida para a compreensão dos segmentos iletrados do sertão, padre Cícero teria dito que Juazeiro deveria ter, em cada casa, uma oficina e um altar. Era a máxima beneditina do "trabalho e oração" que ganhava uma enunciação mais fácil de ser assimilada e vivida pelos que migravam em busca de vida nova.

As elites apostavam no esvaziamento das peregrinações após a morte de Cícero, em 1934, mas ainda hoje as levas de romeiros continuam a chegar a Juazeiro. Vem gente de todos os estados do Nordeste. Isso faz com que a cidade se transforme num ponto de encontro e de caldeamento (ou de hibridações ou sincretismos ou bricolagens) de práticas culturais.

Toda essa rede de romeiros traz suas vivências e valores. O resultado não poderia ser outro: Juazeiro do Norte explode de tantas cores, formas, performances, narrativas e artefatos. Interessante retomar alguns testemunhos que evidenciam a importância da aprovação do líder religioso para a permanência dos romeiros. Mestre Noza (Inocêncio da Costa Nick), nascido em Taquaritinga do Norte (PE), em 1897, foi para Juazeiro quando tinha 15 anos. Um dia, esculpiu um padre Cícero em umburana e foi mostrar a ele: "Meu padrinho Cícero achou graça e perguntou: ‘Eu sou assim?’. Daí eu fiquei fazendo" (O Reinado da Lua, de Sílvia Coimbra, Flávia Martins e Maria Letícia Duarte).

O poeta paraibano João de Cristo Rei (João Quinto Sobrinho), nascido em 1900, afirmou: "Entendi de fazer uns versinhos. Cheguei aqui, fui ler pro meu padrinho Cícero, ele achou muito bonito e disse: ‘Você, de ora em diante, vai ser poeta’" (Antologia da Literatura de Cordel, organizada pela Secretaria de Cultura do Ceará).

Se essas autorizações se davam de fato ou se o pacto era uma aliança de força e de bênção, pouca diferença faz para quem se interessa pela escultura de Noza ou pelo cordel de Cristo Rei.

Mas a hipótese não se esgota nesses grandes nomes. O que se quer evidenciar é que artistas anônimos trouxeram para a cidade um saber que se manifesta na arte do couro, no trançado de palha, no entalhe da madeira, na modelagem do barro, na fabulação do cordel, na xilogravura e nas tantas modalidades que dão forma ao belo e ao útil. Juazeiro é ímpar e única. Ela nos surpreende pelo inusitado, pela permanente invenção e pela dinâmica que impulsiona sua cultura. Importante ressaltar que essas manifestações estão vivas, são negócios, meios de vida e instalam um clima de animação cultural. A cidade pulsa movida por esse élan criativo, de reaproveitar tudo e dar estatuto de arte ao que poderia estar no lixo.

Assim, sobras de sandálias feitas de borracha se transformam em imagens do "Padim" e latas de cerveja se tornam lamparinas. Nesse contexto de inevitável globalização, a China nos manda imagens de padre Cícero de resina com chip que toca um arrastado e incompreensível bendito.

Os altares continuam, mas as oficinas proliferam e dão o tom de uma cidade de pequenos negócios e grandes ideias, abençoada pelo padre Cícero, do alto da colina do Horto.

*Gilmar de Carvalho é jornalista e professor da Universidade Federal do Ceará

Revista Aventuras na História

Um comentário:

Valdecy Alves disse...

Veja documentário que fiz sobre Padre Cícero, após dois anos de filmagens. Intitulado: PADIM CIÇO, SANTOU OU CORONEL? Se gostar, comente, avalie e divulgue. Pode acessar através do meu blog:

www.valdecyalves.blogspot.com