Materializada com o passar dos anos no Muro de Berlim, nas cercas da fronteira ocidental da Tchecoslováquia e na corrida armamentista, a divisão do mundo em dois lados rivais durante metade do século 20 foi sendo percebida aos poucos pelo público em geral, enquanto a recém-encerrada Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e suas consequências imediatas ainda concentravam muitas das atenções.
Mas alguns enxergaram logo que os aliados que se uniram para derrotar a Alemanha nazista inevitavelmente começariam a disputar o domínio do mundo que emergira do conflito. E essa visão, com as ações que demandava, também alimentou o distanciamento.
Winston Churchill, o então ex-primeiro-ministro que assumira o poder no início dos anos 40 com a determinação de enfrentar Adolf Hitler, depois de anos de política pacifista de Neville Chamberlain, foi o mais explícito em mais uma vez apontar o dedo para o inimigo. Em um discurso nos Estados Unidos em 1946, ele tentou despertar os aliados americanos para a realidade que enxergava: um mundo partido ao meio.
Governo Americano
Churchill, Roosevelt e Stálin discutem o futuro da Europa na Conferência de Ialta, meses antes do fim da Segunda Guerra
"De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente. Atrás dessa linha estão todas as capitais dos antigos estados da Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia, todas estas cidades famosas e as populações em torno delas se encontram no que devo chamar a esfera soviética, e todas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não só à influência soviética, mas a um muito elevado e, em muitos casos, crescente controle de Moscou", discursou Churchill.
As declarações foram uma das seguidas tentativas de Churchill de chamar a atenção do parceiro transatlântico, que planejara desmobilizar em dois anos as tropas enviadas à Europa, ceder à ex-União soviética a primazia política sobre o Leste Europeu e se desvencilhar rapidamente de um conflito para o qual fora arrastado a milhares de quilômetros de seu território.
EUA
Ainda durante a guerra, quando a derrota dos nazistas era vista como cada vez mais provável, o presidente americano resumira sua posição nas conferências dos aliados para decidir o que fazer após o conflito de uma forma que desesperava o primeiro-ministro britânico, para quem a ameaça soviética chegava cada vez mais perto do seu país.
"Eu acho que se eu lhe der [ao ditador soviético Joseph Stálin] tudo o que possa sem pedir nada em troca, 'noblesse oblige', ele não tentará anexar nenhum território e trabalhará comigo em favor de um mundo de democracia e paz", disse Franklin Delano Roosevelt, sobre as futuras negociações para definir o mapa da Europa.
O presidente dos EUA via muito da tradição imperial britânica nas tentativas de Churchill de manter a guerra latente, mas a inflexibilidade soviética nas negociações e a recusa soviética em realizar eleições de modo ocidental --"livres", para os americanos, "burguesas para Stálin-- na Polônia fizeram-no mudar seu entendimento poucos dias antes de morrer, em 1945: "Ele [Stálin] quebrou todas as promessas feitas em Ialta".
Para Stálin, as negociações definiam muito da sobrevivência da ex-União Soviética. O país fora o que mais sofrera baixas durante a guerra --cerca de 20 milhões de mortos-- e a presença de um cinturão de contenção entre seu país e a Europa ocidental era considerada vital desde o czarismo. Havia pouco mais de um século, Napoleão tentara o mesmo que Hitler e avançara contra a Rússia imperial.
Stálin e Churchill também perceberam com antecedência que as formas de organização social e econômica dos aliados de leste e oeste eram, por natureza, antagônicas, e que a mensagem de universalismo que o capitalismo liberal e o comunismo de Estado incorporavam não seria contida em um acordo de cavalheiros.
Ameaça comunista
No curso das negociações, a posição dos aliados ocidentais acabou se invertendo, enquanto a soviética permanecia firme. Churchill foi derrotado nas eleições de 1945 pelos trabalhistas, ansiosos pela paz e convencidos de que as dívidas do país tornavam necessário um trabalho de reconstrução, sem preocupações bélicas como prioridade. Enquanto isso, a morte de Roosevelt levou à Presidência americana seu vice, Harry Truman, que foi sendo convencido da ameaça comunista e partiu para a ação.
Um dos pontos seminais da inflexão americana foi o que ficou conhecido como "longo telegrama", escrito pelo embaixador dos EUA na União Soviética. Ele via uma "preocupação neurótica" do Kremlin com a segurança e uma perseverança em expandir o comunismo e o controle do país para além do Leste Europeu, aproveitando o processo de descolonização que se divisava.
8.jan.1951/AP
"Em direção às áreas coloniais e aos povos dependentes, a política soviética, mesmo no plano oficial, será direcionada para o enfraquecimento do poder e da influência e contatos dos países ocidentais avançados, e, na suposição de que essa política seja bem sucedida, será criado um vácuo, que vai favorecer a penetração comunista soviética", escreveu o diplomata americano George Frost Kennan, em 22 de fevereiro de 1946. "Elementos 'democratas progressistas' no exterior serão utilizados ao máximo para fazer pressão sobre os governos capitalistas em linhas agradáveis aos interesses soviéticos."
À medida que a influência soviética sobre os países ocupados pelo Exército Vermelho se mostrava não de hegemonia, mas de controle estrito, com eliminação de adversários e constituição de regimes-títeres, os EUA começaram a agir tendo em vista um rival poderoso e potencialmente beligerante.
Reconstrução
Truman lançou uma estratégia de reconstrução da Europa por meio de financiamentos americanos --o Plano Marshall--, que foi rejeitado pelos países do leste sob pressão soviética, ordenou a aceleração do programa nuclear, em uma época em que só os EUA possuíam bombas atômicas e manteve tropas e bases nos países da Europa ocidental. Ao mesmo tempo, os americanos começaram a pressão contra elementos vistos como potenciais agentes do poder soviético, como o Partido Comunista da Itália.
Em março de 1947, o presidente enviou ao Congresso uma mensagem que ficaria conhecida como "doutrina Truman", vista por muitos como uma declaração formal de um novo conflito, uma guerra mundial de baixa intensidade que logo ganhou o nome de Guerra Fria.
"Eu acredito que deva constituir a política dos Estados Unidos apoiar os povos livres que estejam resistindo às tentativas de sujeição por minorias armadas ou pressão externa", escreveu o presidente. "Nós devemos ajudar os povos livres a seguir seus próprios destinos da maneira que escolherem."
Implícita na mensagem estava a ideia de que a escolha pelo comunismo estava vetada por constituir, em si, uma pressão dos grupos identificados como ilegítimos.
Seja pelo cansaço da guerra, pela falta de recursos humanos e materiais na Europa ou pela detenção nuclear -os soviéticos conseguiram sua própria bomba atômica em 1949-- as divisas da Segunda Guerra foram respeitadas, e a "cortina de ferro", separou as fronteiras dos países sob cada lado e a Alemanha ao meio.
Guerras
Governo dos EUA/Paul Halverson
Soldados americanos carregam colega ferido na Guerra do Vietnã; EUA falharam em impedir que comunistas vencessem o conflito
Apesar de toda a retórica dos presidentes americanos que se seguiram a Truman, a divisão europeia era vista como um fato consumado, como revelaram a falta de apoio ocidental expressivo às tentativas de liberalização na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968), reprimidas violentamente pela União Soviética. Enquanto isso, as duas potências aumentavam seus arsenais militares, convencionais e atômicos, tornando uma guerra um potencial suicídio coletivo, e se engajavam em uma corrida espacial, cuja principal razão de ser era exibir superioridade tecnológica.
Mas, como divisara o "longo telegrama", os impérios coloniais europeus e a própria hegemonia ocidental sobre a Ásia e a África começaram a desabar, e a disputa passou a se dar em campos ao longo do planeta.
Os conflitos significativos envolvendo diretamente um dos dois líderes da nova ordem bipolar --EUA e União Soviética - e países apoiados pelo outro lado foram apenas três em 50 anos: as guerras da Coreia (1950-53 - empate); Vietnã (anos 60 e 70 - derrota americana) e Afeganistão (1979-89 - derrota soviética).
Mas inúmeras "guerras por procuração", travadas entre grupos apoiados por um lado e o outro, aumentaram a partir de meados da década de 60 toda a década de 70 a temperatura do confronto na África, a exemplo da Guerra Civil de Angola, na Ásia, como no Cambodja, e as disputas pelo controle dos países latino-americanos, expressas por meio de ameaças de revoluções comunistas ou a eleição de líderes socialistas que acabaram contidas por golpes militares que deixaram quase todos os países ao sul do México sob governos autoritários apoiados pelos EUA.
Cuba
A exceção nessa região foi Cuba, a ilha caribenha que funcionara desde o fim do século 19 como uma semicolônia americana e sucumbiu a uma revolução armada no fim dos anos 50. A natureza comunista do novo regime foi se revelando claramente após a tomada do poder por Fidel Castro, com desapropriação de propriedades privadas e aproximação com a União Soviética. A ilha permaneceria como um vizinho incômodo, apesar da frustrada tentativa de invasão da baía dos Porcos por cubanos apoiados pelos EUA (1961).
Cuba foi também o palco da Crise dos Mísseis, o momento mais tenso de perigo nuclear durante a Guerra Fria, quando os soviéticos tentaram instalar mísseis balísticos na ilha, iniciativa abandonada em meio a negociações confusas que resultaram também na retirada de mísseis americanos da Turquia.
17.abril.1961/AP
Fidel Castro em um tanque militar na praia Girón, durante a invasão da baía dos Porcos por cubanos apoiados pelos EUA, em 1961
Em meio às perturbações no Terceiro Mundo, uma política ocidental de "détente" (contenção) ajudou a melhorar a relação entre o fim dos anos 60 e o final dos 70. Acordos de redução de armas nucleares, uma missão espacial conjunta, e a ajuda econômica dos EUA e seus aliados europeus a países do bloco soviético, constituíram uma espécie de trégua nas áreas centrais dos dois domínios.
Essa iniciativa foi abandonada com a invasão do Afeganistão pela ex-União Soviética em 1979, e um novo período de tensões. O governo de Ronald Reagan apoiou com armas e dinheiro os rivais islâmicos dos soviéticos no Afeganistão e expandiu os gastos militares, arrastando a União Soviética para uma corrida armamentista para a qual o regime comunista já não tinha fôlego.
A estagnação econômica das economias planificadas, disfarçada em parte pela abundância de petróleo russo enquanto o Ocidente sofria com a crise do petróleo dos anos 70, tornou-se insustentável. O bloco europeu comunista transformou-se em um fardo para Moscou, e um novo líder soviético, Mikhail Gorbatchov, começou um trabalho de reformas liberalizantes que fugiu ao seu controle e significou a capitulação pacífica do bloco comunista, simbolizada na queda do Muro de Berlim, mas também na falta de reação da União Soviética à defecção de um satélite fundamental.
Dois anos depois, a própria União Soviética deixou de existir, exaurida sob o próprio peso.
Folha de São Paulo
Um comentário:
Tenho lido todos os textos postados.
Parabéns pelo excelente trabalho!
=)
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