sábado, 9 de abril de 2011

A desintegração do mundo europeu e seu reflexo no romance moderno

Franz Kafka
VOLTAIRE SCHILLING
A Grande Guerra Mundial de 1914-1918 fez por acelerar profundas mudanças na literatura e na arte do Ocidente. As várias tentativas de romper com a herança cultural que haviam sido feitas pelos primeiros modernistas provavelmente não se aprofundariam se não fossem os trágicos acontecimentos que tiveram início em Agosto de 1914, quando uma colisão generalizada entre as principais potências conduziu o mundo à triste matança que se seguiu e provocou a emergência de uma nova percepção estética.
A perplexidade de Franz Kafka e o labirinto lingüístico de James Joyce são melhor entendidos sob o pano de fundo das trincheiras ensangüentadas.
Os tempos da história e os tempos da arte
Um dos temas mais polêmicos em que se tem digladiado os intelectuais das mais variadas correntes ideológicas é o que diz respeito às relações da História com as artes em geral. Num dos extremos dessa interminável discussão, encontram-se aqueles que vêem os movimentos artísticos como uma espécie de subproduto das relações sociais, condicionadas pela História.
Certamente o marxista russo George Plekhanov é um dos representantes mais relevantes dessa tendência, que as correntes sociológicas mais ortodoxas do século XX de uma maneira geral procuram seguir. No outro, encontramos os esteticistas puros, aqueles que não admitem que a estética e as obras de arte em geral tenham algo em comum com a realidade social e histórica que as cercam. Estariam, por assim dizer, num estado de levitação que as tornaria imunes às impurezas emanadas do social.
Apenas para lembrar que esta polemica entre os "condicionalistas" e os defensores da "arte pela arte" não é recente basta lembrar-nos da carta de Ivan Turgueniev enviou a Tolstoi, onde afirmava que "não é chilrear lírico que os tempos estão exigindo, nem passarinho cantando nos galhos de arvore... o senhor detesta a política e esta, com efeito, é um negócio sujo e abjeto, mas acontece que há sujeira e poeira nas ruas e, afinal de contas, não podemos viver sem cidades" ( in Isaiah Berlin "Turgueniev: o gênio sereno", Estado de São Paulo, 8/4/84 )
Mesmo reconhecendo que a arte tem um roteiro e uma cronologia muito própria, um tempo subjetivo, é inquestionavelmente que a grande obra de arte responde aos desafios propostos pela História. Ela não fica imune aos grandes acontecimentos. Isto é um fato e não uma especulação. O tema que se segue ajusta-se perfeitamente à interrelação entre os fenômenos históricos e as formas de expressão artística.
O MUNDO EUROPEU ANTES DA CATÁSTROFE
Nada, aos olhos de qualquer observador, parecia mais seguro no mundo do que a civilização européia às vésperas de 1914. Não existia no horizonte nenhuma nuvem bárbara que pusesse em perigo as notáveis conquistas que a tecnologia, a indústria e a diligencia proverbial dos europeus haviam construído ao longo do século XIX.
A expansão econômica, comercial e militar da Europa haviam feito com que as quatro maiores potencias européias ( a Inglaterra, a Rússia, a França e a Alemanha) controlassem 62,1 milhões de km2 (46% das terras habitáveis do planeta) com uma população de quase 800 milhões de pessoas, o que correspondia, em 1914, a 47% da população existente. A Inglaterra destacava-se das demais por ser proprietária de 50 colônias que permitiam a espantosa relação de existir 10 "nativos" que mourejavam a serviço de um cidadão inglês.
Se a proporção da superfície da terra ocupada pelos europeus chegava a 35% em 1800, nas vésperas da guerra de 1914 havia saltado para 84%. Quer dizer, não havia mais espaço para a expansão imperialista que se acentuou extraordinariamente com a entrada do Reich alemão no fechado clube das metrópoles colonialistas, desde a sua unificação em 1871. este verdadeiro frenesi em busca de mais terras e mais riquezas é que fez um dos campeões do imperialismo inglês, Cecil Rodhes, lamentar estarem as estrelas demasiado afastadas da terra para poder anexá-las à Coroa britânica.
Praticamente não havia investimentos na infra-estrutura econômica internacional que dispensasse o capital europeu. Nenhuma mina, nenhum porto marítimo ou fluvial, nenhuma estrada de ferro ou rodagem, nenhuma iluminação publica dispensava a presença dos capitais ingleses, franceses ou alemães. Como também nenhuma fábrica no mundo era inaugurada se algum deles não manifestasse interesse nisto. A Europa era não só o cérebro do mundo, como também seu cofre, onde se armazenavam as riquezas extraídas de todos os cantos da terra.
EVOLUCIONISMO, POSITIVISMO, UTILITARISMO
Este mundo, aparentemente sólido, refletia-se numa crença quase que religiosa no Progresso. O pesquisador inglês Charles Darwin havia contribuído notavelmente para fornecer uma justificativa cientifica à idéia de que a humanidade, especialmente sua parte européia, era o resultado mais acabado de um longo processo evolutivo que havia depurado as espécies de suas partes mais negativas e inaptas graças a uma "seleção natural", que terminara por deixar os homens brancos como os herdeiros favoritos da Natureza e que colocava as demais raças em suas mais completa subordinação.
O francês Augusto Comte, com sua fé no progresso e na ordem, havia fornecido às elites cientificas e intelectuais um poderoso instrumento racional que sepultava definitivamente as crenças religiosas, fazendo com que os mecanismos religiosos só continuassem sendo estimulados como antídoto às idéias subversivas do socialismo e do anarquismo. E, finalmente, o inglês J. Bentham tranqüilizava essas mesmas elites em relação aos dilemas morais assegurando-lhes que todos os conceitos éticos deviam ser julgados à luz da sua utilidade: O Bom e o Justo é o que nos serve.
Enquanto isto, as massas engajavam-se no processo produtivo e recebiam parcelas moderadas de atenção. O direito ao voto foi rapidamente difundido mas não obedecia ao critério majoritário. Partidos socialistas enviavam pela primeira vez deputados aos Parlamentos europeus e um socialista francês, chamado Millerand, chegou a assumir um ministério na III Republica. A idéia de os operários constituírem um regime político e social exclusivamente com seus quadros não era defendida senão por pequenos grupos radicais sem expressão.
NIETZSCHE E FREUD, PENSADORES DA CULTURA
No entanto, algumas mentes sensíveis começaram a detectar com certa antecipação as dificuldades futuras que esta civilização colossal e aparentemente indestrutível passaria a apresentar. Inicialmente vamo-nos referir ao pensador alemão Friedrich Nietzsche e tentar esboçar de uma maneira um tanto simplificada suas coordenadas principais. Nietzsche foi o primeiro a perceber que as dificuldades futuras da civilização européia não adviriam do exterior e sim de suas próprias debilidades. Tratava-se de defender uma cultura, uma cultura de elite que ele pressentia ameaçada pelo movimento de massas que a moderna sociedade industrial havia posto em marcha.
Significativamente, confunde "democracia" com a palavra "socialismo" e aponta-as juntamente com a emergência do feminismo, como os elementos dissolventes da cultura. Para a defesa desta cultura ameaçada, medidas extraordinárias seriam necessárias, entre elas as elites deveriam se despir dos impedimentos éticos criados pela moral do bem e do mal do cristianismo com sua perigosa defesa dos mais fracos. Ao contrario, deveriam retornar aos valores do paganismo; com a subseqüente liberação dos instintos viris e cruéis, uma espécie de amoralismo sanguinário para defender a cultura (Nietzsche justificava a escravidão em Atenas por ela ter proporcionado o Pártenon).
Sofrendo grande influencia dele Freud também denuncia o "mal-estar na cultura" e chama a atenção para os efeitos que as forças instintivas possuem sobre o comportamento dos indivíduos. É o principal intelectual a atacar a crença na racionalidade absoluta que então caracterizava o pensamento cultural europeu, desde os tempos da filosofia das luzes no século XVIII. Mas significativamente suas idéias não obtêm a difusão pretendida. Necessitou-se do desabamento do cenário provocado pela Grande Guerra para que então a psicanálise passasse a ter publico.
AGOSTO DE 1914 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Foi então que, em agosto de 1914, aquela poderosa civilização começou a rachar. Um grave incidente ocorrido em Serajevo, na Bósnia-Herzegovina, envolvendo o Império Austro-hungaro e a pequena nação eslava da Sérvia jogou as potencias umas contra as outras. O II Reich alemão tratou de sair em socorro da Áustria, pois esta se viu ameaçada pelos Romanov da Rússia. Logo em seguida foi a vez dos franceses e ingleses ¿ nações integrantes da Entente Cordial - manifestarem-se contra as Potencias Centrais e seu aliado levantino, o Império Turco-Otomano.
A noticia de que seus países estavam em guerra levou as massas às ruas para incríveis manifestações patrióticas e de completo regozijo com a proximidade dos combates. Celebraram a chegada de Marte como se fosse um grande carnaval nas vésperas de um terrível jejum. Ninguém, entretanto, imaginava que a guerra duraria quatro sangrentos anos e que dizimaria toda uma geração de homens. Quatro anos depois, quando o inverno de 1918 se aproximava, a Europa estava exausta. Brutalizada pela sangria da guerra de trincheiras e pela profunda queda moral provocada por mais de dez milhões de mortos e feridos, ela nunca mais se recuperou.
A deposição das Dinastias
Politicamente, as revoluções começaram a decapitar os antigos dirigentes monárquicos. A dinastia Romanov sucumbiu a uma revolução espontânea em fevereiro de 1917, os Hohenzollers da Prússia escolheram o exílio depois da revolução berlinense de dezembro de 1918 e o mesmo aconteceu com os outrora poderosos Habsburgos do Império Austríaco.
Pelo voto ou pelas armas, as massas passaram a decidir cada vez mais seus destinos. A coligação de nobres e burgueses que governava a Europa nunca mais recuperou a confiança em si e só voltou ao limbo do poder na retaguarda dos movimentos fascistas que começaram a proliferar a partir de 1919.
A PERPLEXIDADE
A rapidez com que a civilizada Europa embarcou na sanguinária estrada da matança rotineira foi evidentemente um grande choque para a intelligentista burguesa que se considerava praticamente imune àquele tipo de ferocidade ( interessa conferir os comentário de Freud sobre os começos da guerra). No entanto, bastaram as primeiras declarações de guerra serem pronunciadas para se assistir ao lamentável espetáculo da adesão deles ao morticínio. O caso mais patético ocorreu com Thomas Mann e suas "Reflexões de um apolítico".
Talvez um bom exemplo desta perplexidade seja o parágrafo final de "A consciência de Zeno" de Ítalo Svevo quando o autor escreve: "Talvez por meio de uma catástrofe inaudita; provocada pelos artefatos, haveremos de retornar á saúde. Quando os gazes venenosos já não bastarem, um homem, feito como todos os outros, no segredo de uma câmara qualquer neste mundo, inventará mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pô-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitas".
KAFKA, PROUST E JOYCE
Essa perplexidade geral com a violência e o inaudito da guerra de trincheiras que fez do gás o soberano das batalhas, refletiu-se de forma diferenciada nos autores que selecionamos como exemplares e que são reconhecidos quase pela unanimidade da crítica como os paradigmas da literatura contemporânea: Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce.
Com Kafka esta perplexidade nos é revelada por seu extraordinário conto "A metamorfose", talvez o mais terrível e famoso conto da literatura ocidental moderna. Significativamente foi publicado em 1916 quando milhões de indivíduos já haviam perecido nas trincheiras, e a maioria dos sobreviventes de fato passava a se sentir um monstruoso inseto pronto a ser abatido a qualquer instante.
Nele se observa facilmente como a civilização européia passou a ser vista pelo olhar agudo de um extraordinário observador: de centro gerador do humanismo à transformação do homem em inseto. Toda a literatura que irá produzir desde então vai refletir o isolamento do individuo sujeito às forças irracionais e inesperadas que determinam seu destino e que lhe fixam a data da morte.
Com Marcel Prost será o "tempo" que atua como refúgio da memória, no qual ela procurará recompor as épocas perdidas, as coisas que não voltam mais e as relações sociais destituídas de sentido. A forma proustiana de redigir revela que sua preocupação com o tempo é completamente despida de pragmatismo com que ainda nos deparamos no romance oitocentista. Agora é um tempo intemporal, que não se regula mais pelas horas, pelos dias, meses e anos, mas sim pelos fluxos da memória que mergulha no passado estimulada por uma visão momentânea, por um aroma qualquer, e que sai em busca daquilo que se perdeu e que não mais se encontra.
Por fim nos encontramos com aquele que, no terreno do formalismo, melhor refletiu a dissolução da civilização européia no campo do romance, o irlandês James Joyce. Apesar de os críticos terem determinado a intima estrutura do "Ulysses" com seu homônimo grego, onde encontramos as três grandes partes (Telemaquia, Odisséia e Nostos), bem como seus dezoitos episódios, o conteúdo formal das palavras rompe completamente com os padrões frasais até então conhecidos.
Chamo especialmente a atenção, como demonstrativo e como maneira exemplar de assimilar o rompimento com os modelos até então conhecidos, para o monologo final de Molly Bloon, redigido numa forma alucinante onde Joyce dispensou completamente as regras gramaticais mais primarias como o ponto e a vírgula, como se a gramática fosse o ultimo elo do racionalismo a ser rompido para que o fluxo ininterrupto da voz do inconsciente se misturasse de maneira definitiva com o consciente.
Desaparece assim a distinção feita entre os elementos racionais (hegemônicos e dominantes) e os irracionais (eventuais e dominados) cuja síntese é o mais profundo ceticismo em relação aos destinos da humanidade. Desta forma a intelligentsia européia, ao retratar a crise da sua civilização e seu inapelável declínio, envolveu toda a humanidade nesta sua descida aos infernos. http://noticias.terra.com.br

Um comentário:

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Ontem, ouvi uma psicóloga dizer que, as crianças que estavam em choque, por terem presenciado a tragédia na escola do Realengo-RJ, sofreriam um efeito positivo, que as impulsionariam à atitudes nunca tidas antes, ou seja,passariam a conviver melhor, em meio às adversidades,aos dramas...Parece-me que é mesmo assim...
Até ocorrer, a hipotética explosão do centro da terra para fora, muitas águas vão rolar...e os reflexos hão de vir...

Excelente texto!