Em 5 de outubro, nossa Constituição da República completou 22 anos. Somos uma democracia jovem, com apenas três presidentes diretamente eleitos para o cargo desde então. A sucessão presidencial em 1º de janeiro de 2011 consolidará o mais longo período democrático da história de nosso país. Há muito para se comemorar, mas é preciso avançar ainda mais.
Por Túlio Vianna
Uma democracia não é uma ditadura da maioria. Também não é um sistema no qual se garante simplesmente o direito de votar nos chefes do poder executivo e nos membros do poder legislativo e de se candidatar a estes cargos. É muito mais complexo que isso.
Se, em um edifício residencial com 10 apartamentos, a assembleia de condomínio decidisse por 9 votos a 1 que um dos condôminos não poderia utilizar o elevador por ser negro, esta norma aprovada pela maioria não seria nada democrática e, evidentemente, seria ilegal. Da mesma forma, se 80% da população brasileira – notoriamente cristã – aprovasse, por meio de um plebiscito, uma lei proibindo religiões afrobrasileiras, esta lei não seria nem democrática, nem constitucional.
Em uma democracia, há direitos que são tão fundamentais que devem ser respeitados mesmo que haja oposição por parte da maioria. Estes direitos estão previstos na Constituição brasileira e não podem ser suprimidos nem mesmo por emenda constitucional. É o caso dos direitos à igualdade e à liberdade religiosa.
Também não seria nada democrático se, no meio de um campeonato de futebol, a maioria dos clubes se reunisse para alterar as regras de pontuação de forma a impedir que o primeiro colocado se distanciasse dos demais na tabela. Ou, se durante uma eleição presidencial, a maioria do Congresso Nacional decidisse acabar com o segundo turno, de forma a beneficiar um determinado candidato que estivesse à frente das pesquisas, mas que tivesse poucas chances numa eventual aliança no segundo turno entre o segundo e o terceiro colocados.
Na democracia as “regras do jogo” devem ser respeitadas enquanto se “joga”. Não se pode admitir mudanças oportunistas nas leis a fim de beneficiar quem quer que seja, ainda que a maioria assim deseje. E é por isso que as normas que criam crimes não podem retroagir e as leis eleitorais só devem valer nas próximas eleições.
A vontade da maioria, ao contrário do que se poderia imaginar, não é soberana nas democracias modernas, pois está limitada por uma série de normas constitucionais que visam garantir primordialmente o respeito às “regras do jogo” e aos direitos fundamentais, ainda que contra a vontade expressa da maioria da população.
E é fundamental que seja assim, pois a pior das tiranias é a tirania da maioria. Se o opressor é apenas um homem ou um grupo no poder, um dia certamente a maioria se insurgirá contra ele e o derrubará. Se, porém, quem oprime é a maioria, não restará à minoria subjugada sequer uma boa dose de esperanças para acalentá-la.
Claro que um estado democrático de direito fundado no tripé soberania popular, direitos fundamentais e respeito à lei não se constrói do dia para a noite. Em 22 anos o Brasil evoluiu muito em direção ao ideal democrático, mas alguns fantasmas da ditadura militar ainda nos assombram.
Duração do mandato presidencial e reeleição
A duração do mandato presidencial tem sido um elemento de instabilidade democrática desde o início da redemocratização. Inicialmente cogitada em 4 anos pela Assembleia Nacional Constituinte, após intensa disputa política, acabou sendo aprovada em 5 anos, em benefício do então presidente José Sarney. Em 1994, a duração do mandato foi reduzida para 4 anos pela emenda constitucional de revisão nº5 e, em 1997, a emenda constitucional nº16 passou a admitir a reeleição por mais um mandato, em proveito do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que pôde se candidatar e acabou se reelegendo. Claro que em uma democracia as regras não poderiam ser alteradas durante o jogo em benefício de um dos jogadores. A emenda da reeleição só deveria ter surtido seus efeitos a partir do mandatário seguinte, mas lamentavelmente não foi este o entendimento que prevaleceu na época.
Felizmente, o presidente Lula recusou expressamente as movimentações políticas para aprovar uma nova emenda constitucional (PEC 373/2009) que permitiria a reeleição por dois mandatos subsequentes, e pôs fim ao oportunismo político antidemocrático de mudar as regras do jogo durante o jogo. Além do mais, a impessoalidade no exercício do poder é um importante princípio republicano que nos distingue dos regimes monárquicos, e a alternância da figura do chefe do poder executivo é muito salutar.
Liberdade de manifestação de pensamento
A liberdade de imprensa no Brasil pode ser constatada em qualquer banca de jornal e é diretamente proporcional à quantidade de manchetes dos principais jornais e revistas do país “denunciando” algum “escândalo” contra o governo federal, ou seja: é quase infinita. E é ótimo que assim o seja, desde que tais “denúncias” estejam fundadas em provas concretas e não em elucubrações irresponsáveis.
Uma imprensa democrática, porém, não se resume a uma imprensa livre; é preciso que seja também plural. E infelizmente nossa imprensa é livre, mas não é plural. Não há divergências ideológicas significativas entre os principais jornais e revistas do país e estes acabam funcionando tal como um cartel de notícias, promovendo determinados partidos políticos e achincalhando seus adversários. Esta ausência de pluralismo ideológico é bastante nefasta, pois a maioria dos leitores acaba recebendo sempre a notícia filtrada por um único ponto de vista.
Muito se tem escrito e falado sobre as ameaças à liberdade de imprensa por parte de um governo opressor, mas quase nada se tem dito sobre a ameaça do poder econômico à liberdade de informação. Uma informação deturpada, seja por ordens de um governo, seja por ordens do dono de um jornal, fere a liberdade de imprensa de modo muito semelhante. E não será fechando redações que se combaterá este tipo de influência perniciosa, mas criando novos veículos de comunicação nos quais se possam expressar os pontos de vista divergentes, garantindo assim a necessária pluralidade de opiniões no acesso à informação.
O problema do pluralismo de imprensa torna-se mais crítico em relação às redes de rádio e TV, que são concessões públicas e, como tais, devem cumprir uma função social, livres de interesses econômicos, religiosos ou quaisquer outros. Diferentemente dos jornais e revistas, que podem ser criados em número ilimitado, os canais de rádio e TV são escassos. Cabe ao Estado, portanto, escolher aqueles dentre a iniciativa privada com os melhores projetos de exploração destes canais. Na prática, porém, a distribuição destas concessões estabeleceu um modelo feudal, no qual o pluralismo ideológico está muito longe de ser a regra. Uma alternativa viável a médio prazo é a consolidação e fortalecimento da Rede Brasil de Televisão com um conselho editorial independente e escolhido de forma democrática.
Por outro lado, a internet, por meio de blogues e redes sociais, tem se apresentado a cada dia como uma poderosa alternativa a garantir o necessário pluralismo na divulgação da informação. Para cumprir esta sua função social, porém, é necessário que cada vez mais pessoas tenham acesso à banda larga e que a rede permaneça livre de qualquer tipo de vigilância ou controle estatal, como recentemente cogitou-se criar no Congresso, com base no velho e manjado argumento de combate ao crime.
Combate à corrupção
Finalmente é preciso que se tenha em mente que o respeito às “regras do jogo” e, portanto, à democracia, só é possível em um Estado onde a corrupção não seja endêmica. A corrupção é antidemocrática por sua própria natureza, pois permite o tratamento desigual em função do maior poder econômico do corruptor. O combate à corrupção nas democracias modernas pressupõe a transparência dos atos da administração pública e a independência do Poder Judiciário.
A prestação de contas é corolário do ideal democrático de transparência e hoje pode ser facilmente implementada através da internet. É fundamental que todos os atos e gastos do poder público estejam devidamente documentados e acessíveis na rede para qualquer interessado, pois esta transparência permite que cada cidadão possa, da sua casa, fiscalizar a atuação dos seus mandatários.
Por fim, faz-se necessária a garantia de independência do Poder Judiciário, do Ministério Público, das polícias, dos Tribunais de Contas e das demais instituições a quem incumbe velar pela legalidade dos atos dos agentes políticos e servidores públicos. Nos últimos anos, o que se tem visto é uma Polícia Federal cada vez mais atuante no combate aos crimes de colarinho branco, com o consequente aumento de denúncias pelo MP e de condenações pelo Judiciário.
É claro que ainda há muitas violações da lei e dos direitos fundamentais em nosso país, mas um breve olhar para o passado nos alenta: nunca antes tivemos um período da história brasileira com tanta estabilidade democrática, com tanta liberdade de imprensa e com tantos corruptos sendo processados e julgados.
Nunca antes neste país fomos tão democráticos.
Outubro de 2010
Túlio Vianna é Professor da Faculdade de Direito da UFMGREVISTA FÓRUM
Nenhum comentário:
Postar um comentário