Na contramão do estilo suave que ganhou o mundo, Maurício e Durval criaram uma fusão quente entre o samba e os improvisos do jazz americano.
Bryan McCann
Há datas que ninguém esquece. 1956: Tom Jobim colabora com Vinicius de Moraes na música e nas letras da peça “Orfeu da Conceição”. 1958: João Gilberto apresenta sua inconfundível batida de violão e sua interpretação intimista em “Chega de Saudade”, composta por Jobim e Vinicius. 1959: a bossa nova ganha o mundo com “Orfeu Negro”, versão cinematográfica da peça de Vinicius. 1962: o sucesso internacional do estilo se consagra no famoso concerto do Carnegie Hall, em Nova York. 1963: João Gilberto se junta ao jazzista americano Stan Getz para lançar o antológico disco “Getz/Gilberto”.
São episódios marcantes, mas que acompanham só uma linhagem da bossa nova. Essa versão suave e sedutora, com harmonias arrojadas e melodias simples e sutis, não era a única bossa da época. Conviviam com ela experiências mais “quentes”, que tentavam combinar ritmos nacionais com os ricos improvisos jazzísticos em alta nos Estados Unidos. Os sopros ganhavam importância, desafiados por harmonias ousadas, sob influência do blues e do bebop; o piano se dedicava às inversões dos acordes e a bateria empurrava tudo irresistivelmente para frente. O nascente estilo chegou a ser conhecido como samba-jazz, e talvez tivesse ficado com esse rótulo se não surgisse a marca bossa nova para aglomerar várias tendências dentro de um mesmo segmento de mercado.
Muita música nova rolava na Copacabana da segunda metade dos anos 1950, e grande parte dela girava em torno de combinações inusitadas entre jazz e samba. O saxofonista americano Booker Pittman fora redescoberto pelo cronista Sérgio Porto depois de anos de esquecimento no Paraná, e dava aulas de jazz-blues do Texas nas boates do bairro carioca. Maestros como Lindolfo Gaya e Lyrio Panicalli revestiam a música popular em versões de sucesso com arranjos densos, salpicados de acordes dissonantes. Chorões como Sebastião de Barros, o K-Ximbinho, faziam um choro jazzístico com um pé no blues alterado de Thelonius Monk. Jovens craques, como o saxofonista Paulo Moura, encaravam o jazz, a música erudita e o choro com a mesma habilidade. Fronteiras nacionais e estilísticas estavam ali para serem quebradas.
Mas entre todas essas tendências, foi por meio das invenções de dois jovens amadores, ainda pouco conhecidos nos inferninhos de Copacabana, que a bossa quente encontrou uma expressão própria e uma base para futuras inovações. Durval Ferreira e Maurício Einhorn costumavam se encontrar na Praça São Salvador, em Laranjeiras, para trocar idéias sobre o que acontecia no mundo do bebop e experimentar as primeiras parcerias. Durval era um violonista da Zona Norte do Rio, entusiasta do jazz e com um jeito diferente de tocar samba. Maurício era um gaitista, filho de judeus poloneses imigrantes, apaixonado por George Gershwin, o grande compositor nova-iorquino que mesclou jazz com música erudita, e Charlie Parker, saxofonista criador de uma linguagem densa e tecnicamente desafiadora de bebop. Maurício já tinha participado das rodas de jazz no bar do Plaza Hotel com o pianista Johnny Alf, mas continuava praticamente desconhecido do público. Com uma memória inigualável para os temas do cinema norte-americano, ele os usava como ingredientes para improvisos extraordinários. Tocando de ouvido, inventava melodias inusitadas e sugeria ao amigo Durval os acordes para acompanhá-lo. Entre uma e outra experimentação, em 1958 nasceu “Sambop”.
Para entender a inovação contida nesta canção, vale compará-la com o hino inaugural da bossa nova oficial, “Chega de Saudade”, composto no mesmo ano. A música de Tom e Vinicius tem 84 compassos, uma introdução formal seguida de duas partes e uma mudança de ré menor para ré maior entre elas. É uma pequena obra camerística, cuja melodia e estrutura devem muito ao choro. Já “Sambop” tem 24 compassos e se desenvolve de maneira bem diferente. A canção começa com um verso melódico de quatro compassos. Essa linha é repetida, e depois passamos para uma segunda parte de oito compassos e voltamos, finalmente, para a primeira frase. É o formato conhecido como AABA, numa estrutura relativamente simples, com raízes no jazz-suingue norte-americano. Essa simplicidade é uma espécie de convite para improvisos, como nas melodias de Charlie Parker (1920-1955), inspiradas em harmonias típicas dos anos 1930.
E o convite é aceito já na primeira gravação da música, na voz de Claudete Soares, no disco “Nova Geração em Ritmo de Samba” (1960). Depois de cantar a letra da música, ela passeia por oito compassos em uma linha vocal scat (sem palavras), com ênfase na síncope rítmica, um recurso pouquíssimo usado na música brasileira da época. Em sua gaita, Maurício improvisa com a fluidez e os deslocamentos de ritmo que virariam suas marcas. Assim como em “Chega de Saudade”, o que chega aos ouvidos é a expressão já madura de um novo estilo. É a bossa quente que vem ao mundo.
No meio do caldeirão de tendências da noite carioca da época, o novo estilo só poderia prosperar por obra do acaso: algum grande nome que o ouvisse e o levasse para palcos maiores. Pois foi isso que aconteceu. E logo com Julian “Cannonball” Adderley, um dos sucessores imediatos de Charlie Parker no sax alto, que combinava um improviso elegante com as raízes do blues. Ele soube do histórico concerto no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962. No palco, revezaram-se os principais nomes da nova música brasileira, entre eles Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, Milton Banana e Sérgio Mendes. E assim como Stan Getz reconheceu na bossa de João Gilberto uma parceira perfeita para o seu cool jazz, Cannonball viu na banda Bossa Rio Sextet, do jovem Sérgio Mendes, o time ideal para encarar sua aventura pelo lado mais quente da bossa nova. Ao violão, Sérgio era acompanhado por Durval Ferreira. Cannonball não perdeu tempo: semanas depois estava gravando um disco com o grupo brasileiro, e nele incluiu quatro músicas da dupla Maurício/Durval: o clássico “Sambop”, a contagiante “Batida Diferente”, a bela “Clouds” (“Nuvens”) e “Joyce’s Samba”. O disco “Cannonball’s Bossa Nova” não recebeu a mesma atenção que “Getz/Gilberto”, gravado pouco depois. Mas é igualmente antológico.
O destino não foi muito generoso com Maurício e Durval. Existem gravações às pencas de “Batida Diferente” e “Estamos Aí” – também do final dos anos 1950 – tanto no Brasil como no exterior, mas poucos críticos destacam o papel fundamental dos dois na construção da bossa nova. Suas músicas foram mal compreendidas: ao privilegiar a improvisação, eram vistas como mera matéria bruta para o solista. “Estamos Aí” é uma prova de que isso não é verdade. Além de uma melodia inesquecível, esconde em sua estrutura uma mudança de um semitom acima para apenas dois compassos, o quinto e sexto. É o tipo de alteração sutil que Charlie Parker trouxe para o bebop e que Maurício incorporou à bossa quente. Trata-se de um grande desafio para o solista. Muito músico famoso não consegue passar por ele. Mas, quando enfrentado por um talento genial, como o do saxofonista cubano Paquito D’Rivera, que sempre fecha seus shows com essa canção, essa estrutura gera uma sensação de leveza, um sobe-e-desce encantador.
Depois de 1962, Durval e Maurício trilharam caminhos diferentes. Maurício Einhorn tornou-se conhecido do público do jazz internacional. Mentor de muitos gaitistas profissionais, como Gabriel Grossi, José Staneck e Guta Menezes, e idolatrado por artistas do mundo inteiro, no Brasil não obteve reconhecimento como compositor inovador.
Mas os ventos parecem estar mudando. Maurício e Durval começam a receber mais espaço na mídia. “Batida Diferente”, disco solo irretocável que o segundo lançou em 2004, trouxe o músico e compositor de volta à pauta e ao público – lamentavelmente, só por um breve período, pois Durval Ferreira morreu no ano passado. Maurício, depois de décadas de participações breves em discos de colegas e admiradores, lançou três CDs nos últimos quatro anos. O belíssimo “Travessuras”, de 2007, merece atenção especial, recheado de composições inéditas tão boas quanto “Sambop” e com o estilo de sempre.
Moral da história? A bossa nova foi muito mais diversa do que as pessoas costumam pensar. Em tempos de celebrações pelos 50 anos do gênero, vale recordar que ela foi feita de muitos caminhos. Precisamos voltar a eles.
Bryan Mccann é professor de História da América Latina e coordenador do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Georgetown (EUA), autor do livro Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil (Duke University Press, 2004).
Saiba Mais - Bibliografia:
CHEDIAK, Almir. Songbook Bossa Nova, 4, Lumiar Editora, 1994.
GAVA, José Estevam. A Linguagem Harmônica da Bossa Nova. Unesp, 2002.
Saiba Mais - Discos:
Adderley, Cannonball. “Cannonball’s Bossa Nova”, Capitol Jazz, 1962.
Einhorn, Maurício. “ME”, Clam/Continental 1980.
Einhorn, Maurício. “Travessuras”, Delira, 2007.
Ferreira, Durval. “Batida Diferente”, Guanabara, 2004.
Powell, Baden. “Tempo Feliz”, Companhia Brasileira de Discos, 1966.
Vários Artistas. “Nova Geração em Ritmo de Samba”, Copacabana, 1960.
ABC dos ritmos
Blues: Com raízes na música negra do sul dos Estados Unidos, o blues serviu de base para a maioria dos estilos de jazz e também para o rock and roll. Sua estrutura clássica – que admite infinitas variações – tem doze compassos, em formato AAB, privilegiando a sétima dominante, a quinta bemol e a terceira diminuta nas melodias e harmonias.
Bebop: Linguagem de improvisação jazzística, que exige do solista a habilidade de usar os acordes da harmonia como base para a invenção simultânea de arpeggios e frases advindos de acordes relacionados, com ênfase na síncope rítmica, tocado muitas vezes em tempos galopantes.
Cool Jazz: Variação mais suave do bebop, usando os mesmos recursos do improviso, mas com timbres mais melífluos, e geralmente tocado em tempos mais relaxados.
Jazz-suingue: Estilo aprimorado pelas big bands dos anos 1930, privilegiando a síncope rítmica e uma apresentação de vários solistas improvisando sobre harmonias e estruturas advindas do cancioneiro da música popular americana.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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