sábado, 2 de abril de 2011

Dom Quixote e os moinhos de vento da América Latina


Aníbal Quijano

Aníbal Quijano, sociólogo, é professor da Universidade de San Marcos, Lima, Peru. @ –quijanoanibal@yahoo.com
"Os fantasmas da América Latina" foi o título original deste texto para uma publicação que demorará a vir a público. Desta vez, o autor decidiu que é mais apropriado dar-lhe o mesmo título com o qual suas cinco primeiras páginas foram publicadas em Libros y Artes. Revista de Cultura de la Biblioteca Nacional del Perú, n. 10, Lima, abr. 2005, pp. 14-16.
Tradução de Gênese Andrade. O original em espanhol – "Don Quijote y los molinos de viento en America Latina"

Afirma Junichiro Tanizaki3, comparando as histórias da Europa e do Japão, que os europeus tiveram a felicidade de que sua história se desenvolvesse em etapas, cada uma delas derivada das transformações internas da anterior, enquanto no Japão, em particular desde a Segunda Guerra Mundial, sua história, isto é, o sentido dela, foi alterada a partir de fora pela superioridade militar e tecnológica "ocidental". Essa reflexão admite como válida a perspectiva eurocêntrica e seu característico olhar evolucionista, testemunhando assim a hegemonia mundial do eurocentrismo como modo de produção e de controle da subjetividade e, em especial, do conhecimento. Mas, na própria Europa Ocidental, tal perspectiva é mais exatamente uma marca da tardia hegemonia intelectual de suas regiões do centro-norte, e é por isso alheia e contrária à herança de Dom Quixote. No 400º aniversário desse livro fundador, é tempo de voltar a essa herança.

A fabulosa cena na qual Dom Quixote arremete contra um gigante e é derrubado por um moinho de vento é, seguramente, a mais poderosa imagem histórica de todo o período da primeira modernidade: o des/encontro entre, de um lado, uma ideologia senhorial, cavalheiresca – a que habita a percepção de Dom Quixote –, à qual as práticas sociais já não correspondem senão de modo fragmentário e inconsistente e, de outro, novas práticas sociais – representadas pelo moinho de vento – em vias de generalização, mas às quais ainda não corresponde uma ideologia legitimadora consistente e hegemônica. Como diz a velha imagem, o novo não acabou de nascer e o velho não terminou de morrer.

Na verdade, todo o livro é atravessado por esse des/encontro: o novo senso comum que emergia com o novo padrão de poder produzido com a América, com seu pragmatismo mercantil e seu respeito pelo "poderoso Cavaleiro Dom Dinheiro" (Quevedo dixit), não é ainda hegemônico, nem está ainda consistentemente constituído, e no entanto já ocupa um lugar crescente na mentalidade da população. Isto é, já disputa a hegemonia com o sentido cavalheiresco, senhorial, da existência social. E este, embora cedendo lugar e, de diferentes modos e medidas segundo quem e onde esteja implicado, ainda está ativo, habita, não deixou de habitar, a subjetividade de todos, e resiste a perder sua prolongada hegemonia.

O que é indispensável observar, no contexto específico da futura Espanha desse momento, é que nenhuma daquelas perspectivas de sentido pode existir, nem configurar-se, separada e depurada da outra. Aquela intersubjetividade não podia não ser, nem deixar de ser, senão um impossível no princípio, mas inevitável na prática, amálgama de pragmatismo mercantil e de visões cavalheirescas.

Trata-se de um momento da história no qual os vários tempos e histórias não se configuram em nenhuma ordem dualista e em nenhuma seqüência unilinear e unidirecional de evolução, como o eurocentrismo ensinou a pensar desde o final do século XVII. São, ao contrário, complexas, contraditórias, descontínuas associações entre estruturas fragmentárias e mutantes de relações, de sentidos e de significados, de múltiplas procedências geoistóricas e de simultâneas e entrecruzadas ações, todas, no entanto, partes de um mesmo e único mundo novo em plena constituição. Não por acaso, o moinho de vento era ali uma tecnologia procedente de Bagdá, integrada ao mundo muçulmano-judeu do sul da Península Ibérica, quando aquele ainda era parte da hegemonia árabe no Mediterrâneo; uma sociedade produtiva e rica, urbana, cultivada e de sofisticado desenvolvimento, o centro do tráfico mundial de mercadorias, de idéias e de conhecimentos filosóficos, científicos e tecnológicos; enquanto a "cavalaria" era o modelo de sociedade que os militarmente vitoriosos, mas social e culturalmente atrasados senhores do Norte da península, tratavam de impor, sem consegui-lo de todo, sobre os escombros da derrotada sociedade muçulmano-judaica, avassalando e colonizando as comunidades autônomas da península.

Esse regime senhorial, dominado pela Contra-Reforma pela Inquisição, não tarda em decretar a expulsão de "mouros" e "judeus" e a impor-lhes o famoso "certificado de limpeza de sangue", a primeira "limpeza étnica" de todo o período colonial/moderno. O mesmo arcaico modelo senhorial, feudal, de existência social, também levará a Coroa a centralizar seu domínio político, não precisamente procurando produzir com todas as demais populações uma identidade comum (nacional, pois), mas sim impondo sobre as demais identidades e nacionalidades da península um regime de colonialismo interno, que não terminou até hoje. Desse modo, impediu o processo de nacionalização que se desenvolveu depois no centro-norte europeu no mesmo caminho e no mesmo movimento de aburguesamento da sociedade.

Depois da América, em um tempo de rápida expansão do capitalismo, quando já uma parte crescente da nova sociedade peninsular está imersa no novo padrão de poder, tal senhorio já não podia evitar ter, ele mesmo, os pés no solo mercantilista, quando sua cabeça ainda habitava o arcaico, embora em seu imaginário não menos caudaloso, céu de sua "cavalaria".

Sem esse des/encontro, que confluía com os desastrosos efeitos da expulsão de mouros e judeus sobre a produção material e cultural, não se poderia explicar por que, nada menos do que com os ingentes benefícios comerciais obtidos com os minerais e vegetais preciosos produzidos na América com o trabalho não pago de "índios" servos e de "negros" escravos, a futura Espanha estava ingressando, sob todas as aparências contrárias, em um prolongado curso histórico, que a levou do centro do maior poder imperial até o duradouro atraso de uma periferia, no novo sistema-mundo colonial/ moderno.

Esse curso tornou visível que aquele senhorio cavalheiresco, dominante e beneficiário imediato do primeiro período da colonialidade do poder e da modernidade, já era arcaico demais para cavalgar sobre este novo e arisco cavalo, e conduzi-lo em benefício de seu país e do mundo. Já era incapaz de converter-se plena e coerentemente em burguesia, cavalgar as pulsões e os conflitos democratizantes do novo padrão de poder e dirigir a nacionalização da heterogênea população, como, por outro lado, puderam fazer seus rivais e sucessores no centro-norte da Europa Ocidental. Pelo contrário, esse arcaico senhorio foi apodrecendo durante centúrias no ambíguo labirinto senhorial-mercantil, no contraproducente empenho de preservar o senhorio sobre a base do colonialismo interno imposto sobre as diversas identidades da população, precisamente no tempo do capitalismo mundial e apesar dos recursos realmente excepcionais da colonialidade do poder.

Onde reside a diferença? A diferença é, sem dúvida, a América. A "Coroa", isto é, os Habsburgos, donos coloniais das colossais riquezas que a América produzia e do inesgotável trabalho gratuito de "negros" escravos e de "índios" servos, persuadiram-se de que, tendo o controle dessas riquezas, podiam expulsar "mouros" e "judeus" sem perda maior, e mais exatamente com efetivo lucro no controle do poder. Isso levou os Habsburgos a des-democratizar pela violência a vida social das comunidades independentes e a impor sobre as outras identidades nacionais (catalães, vascos, andaluzes, galegos, navarros, valencianos) um colonialismo interno e um domínio senhorial procedente do modelo feudal centro-europeu. O conhecido resultado foi, de um lado, a destruição da produção interna e do mercado interno nela fundado, e do outro, o secular retrocesso e estancamento dos processos de democratização e de ilustração que a modernidade/colonial abria e que produziram, precisamente, Dom Quixote.

O que empobreceu e assenhoreou a futura Espanha, e a tornou ainda sede central do obscurantismo cultural e político no Ocidente pelos quatro séculos seguintes, foi precisamente o que permitiu o enriquecimento e a secularização do centro-norte da Europa Ocidental emergente, e mais tarde favoreceu o desenvolvimento do padrão de conflito que levou à democratização dessas regiões e países do centro-norte da Europa Ocidental. E foi isso mesmo, a hegemonia histórica possibilitada desse modo, o que permitiu a esses países elaborar sua própria versão da modernidade e da racionalidade, e apropriar-se com exclusividade da identidade histórico-cultural do "Ocidente", da herança histórica greco-romana, a qual, não obstante, havia sido muito antes e por muito tempo preservada e trabalhada como parte do Mediterrâneo muçulmano-judaico.

Tudo isso ocorreu – e este fato não deve ser perdido de vista, sob pena de perder o próprio sentido desta história – em um período no qual a colonialidade do poder era ainda, exclusivamente, um padrão de relações de poder na América e entre a América e a emergente "Europa Ocidental". Em outros termos, quando tal "Europa Ocidental" estava sendo produzida sobre o fundamento da América. Não há como não reconhecer tais implicações históricas do estabelecimento desse novo padrão de poder e da recíproca produção histórica da América e da Europa Ocidental como sedes da dependência histórico-estrutural e do centro do controle dentro do novo poder.

É certo que agora as regras do capitalismo finalmente se consolidaram na Espanha, com os recursos e com o apoio da nova Comunidade Européia, já sob o predomínio do novo capital financeiro. Mas os remanescentes do "assenho-reamento" em sua existência social não terminaram de extinguir-se. E o conflito com as "autonomias" atuais, assim como o terrorismo do ETA em busca de independência nacional dão conta de que esse labirinto ainda não terminou de ser destruído, não obstante todas as mudanças. Ninguém melhor que Cervantes, e, portanto, Cide Hamete Benengeli, percebeu esse des/encontro histórico com tanta lucidez e perspicuidade.

Esta é, para nós, latino-americanos de hoje, a maior lição epistêmica e teórica que podemos aprender de Dom Quixote: a heterogeneidade histórico-estrutural, a co-presença de tempos históricos e de fragmentos estruturais de formas de existência social, de vária procedência histórica e geocultural, são o principal modo de existência e de movimento de toda sociedade, de toda história. Não, como na visão eurocêntrica, o radical dualismo associado, paradoxalmente, à homogeneidade, à continuidade, à unilinear e unidirecional evolução, ao "progresso". Porque é o poder, logo, as lutas de poder e seus mutantes resultados, aquilo que articula formas heterogêneas de existência social, produzidas em tempos históricos diferentes e em espaços distantes, aquilo que as junta e as estrutura em um mesmo mundo, em uma sociedade concreta, finalmente, em padrões de poder historicamente específicos e determinados.

Esta é também precisamente a questão com a história do espaço/tempo específico que hoje chamamos América Latina. Por sua constituição histórico-estruturalmente dependente dentro do atual padrão de poder, esteve todo esse tempo limitada a ser o espaço privilegiado de exercício da colonialidade do poder. E visto que nesse padrão de poder o modo hegemônico de produção e de controle de conhecimento é o eurocentrismo, encontraremos nessa história amálgamas, contradições e des/encontros análogos aos que Cide Hamete Benengeli havia conseguido perceber em seu próprio espaço/tempo.

Por sua natureza, a perspectiva eurocêntrica distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa experiência histórico-social, enquanto leva, ao mesmo tempo, a admiti-la como verdadeira4. Opera, pois, no mundo de hoje, e em particular na América Latina, do mesmo modo como a "cavalaria" atuava na visão de Dom Quixote. Conseqüentemente, nossos problemas também não podem ser percebidos senão desse modo distorcido, nem confrontados e resolvidos salvo também parcial e distorcidamente. Dessa maneira, a colonialidade do poder faz da América Latina um cenário de des/encontros entre nossa experiência, nosso conhecimento e nossa memória histórica.

Não é surpreendente, por isso, que nossa história não tenha podido ter um movimento autônomo e coerente, e mais exatamente tenha se configurado como um longo e tortuoso labirinto em que nossos problemas não resolvidos nos habitam como fantasmas históricos. E não se poderia reconhecer e entender esse labirinto, ou seja, debater nossa história e identificar nossos problemas, se não se conseguisse primeiro identificar nossos fantasmas, convocá-los e contender com eles.

Porém, os fantasmas históricos, como o habitante das sombras de Elsinor, ou como o que fora convocado em 1848 por Marx e Engels no Manifesto, têm uma espessa, escura e complexa densidade. E quando entram na cena da história, ocasionam sempre turbulências violentas e algumas vezes mutações sem retorno. Em Elsinor, o dubitativo Hamlet transmuda-se no fim no exasperado herói, cuja espada já não vacila enquanto cega a vida de muitos personagens como o modo direto de resolver seus conflitos. O outro, o furtivo fantasma que rondava a Europa em meados do século XIX, emerge depois como um protagonista central do século seguinte, de duas guerras mundiais, de violentas revoluções e contra-revoluções, de poderosas embora às vezes malfadadas e frustradas esperanças, de frustrações e derrotas, da vida e da morte de milhões de pessoas, e ainda não desapareceu. Hoje assedia o mundo.

Não se convocam, pois, impunemente, os fantasmas que a história produziu. Os da América Latina já deram muitas mostras de sua capacidade de conflito e de violência, precisamente porque foram produto de violentas crises e de sísmicas mutações históricas cujas seqüelas de problemas não pudemos ainda resolver. Esses fantasmas são aqueles que habitam nossa existência social, assediam nossa memória, inquietam cada projeto histórico, irrompem com freqüência em nossa vida, deixam mortos, feridos e contundidos, mas as mutações históricas que lhes dariam finalmente descanso não estiveram até hoje a nosso alcance. Contudo, não somente é importante fazê-lo. É, literalmente, urgente. Porque, enquanto esse padrão de poder culmina sua trajetória de desenvolvimento e no próprio momento da exacerbação de suas piores tendências, com a planetarização de seu domínio, a América Latina não só continua prisioneira da colonialidade do poder e de sua dependência, mas sim, precisamente devido a isso, inclusive arrisca não chegar ao novo mundo que se vai configurando na crise atual, a mais profunda e global de todo o período da colonial/modernidade.

Para lidar com tais fantasmas e conseguir, talvez, que nos iluminem antes de desvanecer, é indispensável liberar nossa retina histórica da prisão eurocêntrica e reconhecer nossa experiência histórica.

É bom, pois, é necessário que Dom Quixote cavalgue de novo para desfazer agravos, que nos ajude a desfazer o agravo de partida de toda a nossa história: a armadilha epistêmica do eurocentrismo que há quinhentos anos deixa na sombra o grande agravo da colonialidade do poder e nos faz ver somente gigantes, enquanto os dominadores podem ter o controle e o uso exclusivos de nossos moinhos de vento.

texto para "Os fantasmas da América Latina"

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

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