Sem ter como prover seu próprio sustento, a cafuza livre Joanna Baptista passa escritura de venda de sua própria liberdade
Manuela Carneiro da CunhaEm agosto de 1780, em Belém do Pará, uma mulher livre se vende como escrava. O caso é inusitado e requer um despacho do ouvidor: “caso bastardo”, diz ele, mas que se deve deixar à vontade expressa dos envolvidos, a cafuza que vende sua liberdade e o catalão que a compra. Uma escritura pública de venda é feita em tabelião, diante de testemunhas.
Joanna Baptista havia nascido livre, filha de uma índia e de um escravo negro, ambos a serviço de um mesmo padre. Mortos os pais e o senhor, ela se declara desvalida – “sem Pay nem May que della podessem tratar e sustentar assim para a passagem da vida como em suas moléstias, e nem tinha meios para poder viver em sua liberdade” – e desejosa de ser escrava, supondo que quem a tivesse pago por dinheiro teria interesse em mantê-la e cuidar dela.
A idade da postulante à escravidão não é mencionada na escritura, embora, criada em casa de padre, não devesse ser desconhecida. Devia ser jovem, já que falava dos filhos que acaso viesse a ter, e que a eles a escravidão não seria transmitida – cláusula provavelmente inócua. Quanto a ela própria, seria escrava enquanto vivesse e poderia ser vendida a terceiros.
Joanna Baptista se vende por 80 mil-réis, 40 mil em dinheiro, 40 mil em adereços de ouro e “trastes” para se vestir. Declara ter recebido o dinheiro e as joias, e que iria receber adiante os trastes correspondentes aos 22 mil-réis que faltavam.
O despacho do ouvidor é de uma singular displicência. Diante de matéria inusitada, ele evoca vagamente o direito romano, pede a presença dos interessados e, ante suas declarações, decide que prevaleça a livre vontade dos contratantes. Dois séculos antes, a questão da legalidade da venda de si próprio em escravidão havia sido discutida de forma exaustiva. Nenhuma menção é feita pelo ouvidor a esse amplo debate, por ignorância, descaso ou expediente.
De posse do despacho, o tabelião lavra uma escritura pública de venda: dois soldados, vizinhos do comprador, são testemunhas, e Joanna Baptista, por não saber escrever, pede a um homem que assine por ela. Um ano mais tarde, tira-se uma cópia da escritura.
O documento é uma peça a mais no conhecimento das condições de vida dos pobres livres no Brasil colonial e imperial. Ele indica que, no fim do século XVIII, uma mulher pobre podia não ter meios suficientes para se manter livre. Vender sua liberdade era certificar-se de que sua vida passava pelo menos a interessar a quem pagara por ela.
A controvérsia sobre a legalidade de alguém vender a si mesmo em escravidão tem uma longa história, desde o fim do século XV. Duas teorias confrontaram-se diretamente em torno desse tema: uma sustentava que a liberdade era uma propriedade do homem, em nada distinta de outras, e passível de ser vendida. Outra negava aos homens o direito de venderem sua liberdade, que era conferida por Deus.
Em parte, essa disputa foi inserida no debate entre dominicanos e jesuítas. Os teólogos-juristas dominicanos espanhóis, e particularmente Francisco de Vitória e Domingos de Soto, afirmavam que, a não ser em caso de extrema necessidade, ou seja, em perigo de vida, um homem não podia vender sua liberdade. Mas no fim do século XVI, os jesuítas começaram a atacar os dominicanos – acusados de serem criptoprotestantes, praticantes do protestantismo de forma clandestina –, e coube a um jesuíta português, Luís de Molina, produzir o ataque à teoria política dominicana. Para Luís de Molina, que foi professor em Évora, e para seu discípulo espanhol, Francisco Suárez, que ensinou em Coimbra, o homem era senhor de sua liberdade e podia vendê-la a seu critério, como a qualquer outra coisa sobre a qual tivesse domínio.
A questão tinha incidência direta no Brasil: provavelmente no ano de 1567, a Mesa da Consciência e Ordens, fundada 35 anos antes e que opinava sobre dúvidas teológico-jurídicas, já a dirigira a dois jesuítas. Era possível alguém vender seu filho e vender a si mesmo em escravidão licitamente? Tratava-se de questões distintas: uma envolvia a discussão da pátria potestade, o poder dos pais sobre seus filhos; outra, o domínio sobre a própria liberdade.
Creio que o caso de Joanna Baptista, a cafuza que se vende em escravidão, no fim do século XVIII, em Belém do Pará, deva ser um dos últimos exemplos de servidão consentida. A essa altura, já era um “caso bastardo”. Por se colocar a liberdade nos termos do direito de propriedade moderno, chega-se ao paradoxo de se estabelecer uma relação de escravidão por um contrato de compra e venda no qual a vendedora é ao mesmo tempo sujeito e objeto da transação.
Artigo resumido e adaptado do capítulo “Sobre a servidão voluntária, outro discurso: escravidão e contrato no Brasil colonial”, do livro Cultura com aspas (Cosac Naify, 2009).
Manuela Carneiro da Cunha é professora da Universidade de Chicago, membro da Academia Brasileira de Ciências e autora, entre outros livros, de Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África (Brasiliense, 1985).
Saiba Mais - Bibliografia
Após o livro pioneiro de Franco (1969), os estudos de Mello e Souza (1982) e de Dias (1984) Revista de História da Biblioteca Nacional
Um comentário:
Caro Eduardo,
Acabei de fazer link de dois dos seus magníficos post's... muito, muito obrigado!
Um grande abraço.
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