sexta-feira, 1 de abril de 2011

Os espaços livres públicos das províncias vistos como palcos de manifestações sociais, culturais e do teatro político do século XIX - 3

Ricardo José Brügger Cardoso - Doutorando em teatro
Figura 10 - Charge sobre as influências do positivismo no símbolo da bandeira nacional, F. M. Fonte: Junior, 1984

"A tomada de decisões econômicas centralizava-se cada vez mais nas cidades portuárias. Os comissários de café e outros comerciantes, banqueiros, industriais inexperientes, gerentes de companhias de seguro, agentes de empresas de navegação e burocratas de alto e baixo escalão, juntamente com o séqüito de lojistas, hoteleiros, advogados, médicos e professores, ocupavam as fileiras da classe alta e da classe média urbanas. Seus empregados ou escravos - estivadores, criados, operários da construção, carregadores de água, costureiras, caixeiros viajantes, contadores e balconistas - aumentavam ainda mais o conglomerado urbano". (Bethell, 1997).

Em 1872, a bibliografia disponível revela que a população da cidade do Rio de Janeiro alcançava mais de 250 mil habitantes, e tanto Recife quanto Salvador tinham mais de cem mil habitantes. Não eram cidades grandes pelos padrões internacionais, mas pareciam enormes em comparação com outras cidades brasileiras ou consigo mesma, em épocas anteriores. Grande parte da força de trabalho nesses centros urbanos em expansão era fornecida pelos escravos. Ainda em 1872, quando se obtiveram as primeiras estimativas oficiais, apenas um quinto da população livre era alfabetizada.
A cidade oferecia aos escravos, assim como aos homens livres, algumas oportunidades que não existiam na meio rural. O espaço público urbano permitia um pequeno crescimento na impessoalidade das relações humanas, maior mobilidade social e uma maior variedade de condutas aceitáveis. Para Pinsky (1989), havia mais liberdade no meio urbano, visto que os negros podiam criar e transmitir mais rapidamente seus costumes, língua, música, tradições familiares, ou seja, toda a complexidade de sua cultura. As criadas domésticas, embora vigiadas de perto, podiam desfrutar em seus passeios diários de momentos fugazes de liberdade; certamente, andavam pela cidade com mais familiaridade e menos restrição do que muitas de suas patroas reclusas pelos costumes restritivos de uma sociedade ainda predominantemente machista.
Mas olhando por um outro ângulo, faz-se necessário observar que os escravos lutavam não apenas contra senhores de carne e osso, mas também contra forças vagas, sinistras e impessoais. Uma alta cultura europeizada, e baseada em uma economia de exportação revelava uma incompreensível resistência em enfrentar as dilaceradoras implicações de uma realidade marcada pela opressão pessoal, vivenciada cotidianamente na fazenda ou mesmo nas ruas da cidade (figura 11 e 12). No tocante à participação da coletividade do povo negro, nesse período de mudanças e conflitos internos, vale registrar uma importante manifestação cultural comentada por Soares (1994), em que esse autor descreve a malta de capoeiras como uma unidade fundamental da atuação dos praticantes da capoeiragem, muitas vezes formada por três, vinte ou, até mesmo, cem indivíduos.

Figura 11 - "Negros que vão levar açoites", Ludwig & Briggs. Fonte: Ed. SENAC, 2000.
Figura 12 - "Negro escravo com facão", George Lowenstern. Fonte: Ed. SENAC, 2000.

Segundo Soares (1994), a tradição literária do final do século XIX referia-se às maltas de capoeiras dos tempos da Corte, mencionando os nagoas e guaiamus. A malta era a forma associativa de resistência mais comum entre escravos e homens livres pobres no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Neste período, as maltas de capoeiras já se encontravam bastante sofisticadas, geograficamente, abarcando não apenas as igrejas - marco de referência da cidade colonial - mas igualmente seus bairros. O ponto de reunião das maltas eram suas escolas, praças, ruas e corredores (figura 13).

Figura 13 - Planta da cidade do Rio de Janeiro com o seu traçado urbano, em 1879, mostrando os principais prédios públicos em vermelho e as igrejas em preto, Luiz Schreiner. Fonte: Bolsa do Rio XXI, 2000.

Os cronistas, dessa época, reiteravam a rivalidade simbólica das duas maltas com seus emblemas, cores, signos, como expressão dessa luta pelo espaço urbano; e desse embate político das ruas utilizavam-se, inclusive, expressões marcadamente políticas de partidos: os Nagôs ou Nagoas - gente da nação nagô da costa dos escravos da África Ocidental. O branco era a cor dessa malta. As evidências apontam que os nagoas teriam relação com os africanos e baianos, seguidores da religião dos orixás. Já os Guaiamus seriam uma tradição nativa, crioula natural da terra, ligada aos escravos nascidos no Brasil. Na iconografia disponível, a única gravura que coloca frente a frente um nagoa e um guaiamu mostra, respectivamente, um negro e um mulato ou mestiço.

Em uma comparação entre a área do Paço Imperial (guaiamus) e o Campo de Santana (nagoas), é interessante notar que, enquanto o Paço, com seus prédios de administração pública, era o antigo centro e o símbolo do poder colonial, o Campo de Santana transformou-se, no início do século XIX, em seu oposto. Uma área não regulada da cidade, onde os escravos escapavam da vigilância de seus donos, e nas tardes de domingo podiam dançar as suas próprias músicas. Além disso, Soares (1994) observa também que os momentos de grandes concentrações populares na cidade eram oportunidades em que as maltas não perdiam para exibir suas habilidades públicas, muitas vezes resultando em conflitos violentos. Nos dias de festas religiosas e populares, e durante os desfiles militares, registravam-se maltas de vinte, cinqüenta ou cem homens, precedidos pelos caxinguelês (meninos de rua) que provocavam desordens e promoviam agressões em desfiles, festas e aglomerações.

Concernente às atividades artísticas da época, uma ópera encenada pela primeira vez exatamente ao término da Guerra do Paraguai revela, direta ou indiretamente, alguns aspectos da questão racial no país. António Carlos Gomes (1836-1896) baseou sua ópera num romance de José de Alencar (1829-1877) intitulado O Guarani. Ambientados no século XVI, o romance e a ópera glorificavam o nobre selvagem e a mistura racial entre os portugueses e os índios, mas ignorava a origem africana de grande parte da população brasileira. Na busca por uma mitologia que encaixasse temas brasileiros dentro de formas européias, a ópera tinha um libreto italiano e foi encenada primeiramente no Teatro La Scala de Milão, refletindo não apenas a afastamento estabelecido entre a classe dominante e as classes menos favorecidas da sociedade, mas também a alienação da intelectualidade em um país onde 80% da população adulta livre não sabiam ler nem escrever.

Historicamente, acredita-se que a guerra expôs diversas tensões no seio da sociedade brasileira. A determinação do Brasil de continuar a guerra contra o Paraguai, depois que o território brasileiro foi abandonado pelas tropas paraguaias e de depor e matar López provocou uma profunda ansiedade nacional. Os líderes brasileiros justificavam sua ação com o argumento de que "precisavam levar a civilização àquele país bárbaro e libertar os paraguaios da tirania" (figura 14). Freqüentemente ridicularizavam o legado racial do Paraguai e insinuavam um conceito de supremacia branca. É possível que os políticos brasileiros duvidassem do grau de sua própria "civilização" e temessem comparações depreciativas com as nações européias com que se identificavam tão estreitamente. Os brasileiros estavam rodeados de escravos, mas experimentavam um crescente sentimento de culpa em relação à escravização. A feroz busca da guerra pelo Brasil parece ter sido uma oportunidade para se tentar resolver uma dúvida atormentadora em relação a si próprio.

Figura 14 - Charge, da época, com Chico Diabo atravessando uma lança no "monstro mais bárbaro e hediondo", Francisco Solano Lopes, destruído em sua própria pátria. Fonte: Ed. SENAC, 2000.

Em tese recentemente defendida para o doutoramento em História pela USP, Toral (2000) utilizou como fonte e metodologia de trabalho, uma rica pesquisa iconográfica, representada por algumas imagens da guerra, que destacam, sobretudo, a presença do soldado negro nos campos de batalha. Comenta, inclusive, que uma das ofensas do Paraguai em relação ao Brasil era afirmar que o exército brasileiro era um exército de escravos. Esse mesmo autor, também atenta para o fato de que muitos senhores mandavam seus escravos para a guerra em seu lugar. Há registros ainda de que os brancos pobres eram igualmente mandados para guerra, além evidentemente de se mandarem também os inimigos políticos do poder da época como "buchas de canhão", ou seja, eram todos soldados de frente de batalha.

Nesse contexto histórico de grande tensão social, Toral (2000) lembra que a Guerra do Paraguai também trouxe à tona alguns conflitos já existentes no seio das forças armadas brasileiras. A classe fundiária, ao criar, em 1831, uma guarda nacional na qual seus membros eram os oficiais, tomara medidas para garantir seu domínio sobre os instrumentos públicos de força. Como medida centralizadora, o gabinete conservador decidira, em 1850, que todos os oficiais da guarda nacional não mais seriam eleitos, mas nomeados. Todavia, essas nomeações continuaram a contemplar quase que exclusivamente os grandes fazendeiros. Era muito comum, naquele período, o filho de família rica comprar um cargo do exército, ou seja, ele entrava para o exército porque tinha dinheiro, pagando para se tornar um oficial sem nunca ter servido ao exército. De acordo com esse mesmo autor, era daí que surgiria, portanto, a patente do coronel nordestino, quando um usineiro comprava a sua patente no exército ou na marinha para ter o seu título de coronel.

Posteriormente, abriu-se nas academias militares uma carreira para o talento daqueles que não podiam arcar com a dispendiosa educação secundária, necessária para ingressar numa faculdade de Direito nem contar com os devidos contatos. Foram plantadas, assim, as sementes do futuro desenvolvimento de uma certa hostilidade de classe entre oficiais militares e políticos civis, embora elas só tenham vindo a florescer a partir da década de 1880. No período anterior à Guerra do Paraguai, os oficiais militares de patente mais alta ainda provinham geralmente de famílias da elite ou mantinham estreitas relações com elas. Caxias, como bem destacou Graham (1997), era irmão de importante financista do império e foi um líder político conservador atuante, tendo sido eleito para o Senado em 1845, e participou de três gabinetes, duas vezes como primeiro ministro. Como líder político, defendeu os interesses da classe dominante de fazendeiros e senhores de escravos. Mas os oficiais mais jovens, em postos de nível médio, especialmente os que obtiveram promoções rápidas durante a guerra, não tinham a mesma familiaridade de Caxias com os poderosos.

Todavia, a sua imagem de herói já vem sendo questionada há algum tempo pela historiografia, que lhe atribui responsabilidade por atos de extrema violência nas campanhas que chefiou. A violência do ato de Caxias não foi, contudo, um caso isolado. Tratava-se, na verdade, de uma estratégia de guerra, já que para o Brasil e para a Inglaterra era necessário que o Paraguai, um exemplo de nação democrática bem sucedida, fosse destruído. O comportamento de Caxias também não era um caso particular, mas, sim, um padrão da elite brasileira que ocupava os altos cargos do oficialato. A impunidade e a quase hereditariedade do oficialato garantiam a manutenção desse tipo de ação. Nesse sentido, algumas pesquisas mais recentes mostram que entre os sobressaltos que derrubaram o imperador, revela-se mais uma mancha na reputação do mandante da operação, Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro.

"Os corpos sem vida são lançados do navio. São dezenas de marinheiros mortos, ou mesmo, toda tripulação. Cada corpo que cai nas caudalosas águas do Rio Paraná soma um pouco mais de morte à guerra que ceifa a população do Paraguai e que produz baixas também no Brasil, Argentina e Uruguai. Em seis anos de conflito, entre 1864 e 1870, foram mortos 35 mil brasileiros e 231 mil paraguaios, mais da metade da população do país. Logo, o Rio Paraná fica cheio de corpos boiando, que são levados pela correnteza. Mas soldados ainda, mesmo mortos, seguem matando. Dentro deles, oculta uma ameaça, uma arma militar letal: o cólera, o mal que havia dizimado a tripulação da fragata Itapiru. A doença agora estava sendo usada pelo comando brasileiro para matar os inimigos. Não apenas os guerreiros, mas a população civil em suas casas". (Montello, 1985).

Ao final dos oitocentos, já nos primeiros anos da República, a população ainda iria presenciar novos casos de barbáries comandadas pela elite militar brasileira como em Canudos, no sertão nordestino (figura 15). E, ao mesmo tempo, iria assistir igualmente suntuosos espetáculos cívicos e políticos ao ar livre, encenados com toda a pompa e entusiasmo patriótico, nos principais espaços livres públicos da capital (figuras 16, 17 e 18). Aliás, essa herança de brutalidade e covardia acabou por se tornar uma das principais marcas das forças militares não só do Brasil, mas de praticamente todas as Repúblicas Sul-americanas, ainda por muitos anos.

Figuras 15 - Sertanejas do Arraial de Canudos presas pelo Exército Brasileiro, já em 1899. Fonte: Ed. SENAC, 2000.

Figura 16 - Arco do Triunfo para a posse do Presidente Prudente de Morais, em 15 de novembro de 1894. Fonte: FUNARTE, 1989.
Figura 17 - Desfile Militar, durante os festejos da posse, em 1894. Fonte: FUNARTE, 1989.

Figura 18 - Desfile Militar em homenagem ao general Júlio Rosa, com expressiva participação popular no Campo de São Cristóvão, em 11 de agosto de 1899, Marc Ferrez. Fonte: FUNARTE, 1989.


O que se pode concluir dos estudos e textos apresentados sobre as transformações no Brasil, ocorridas durante o século XIX, é que a construção de uma nação independente se deu de forma incompleta e, sem menosprezar a complexidade dos fatos e acontecimentos sociais, políticos e culturais do país, essas transformações foram superficiais e desarmônicas. A impressão que fica desses fatos, de um passado ainda muito recente, permite-nos refletir talvez sobre a responsabilidade e acuidade relegada às oligarquias nacionais, até os dias de hoje. Talvez, ali, naquele período de cem anos de muita efervescência, o país tenha perdido a chance de criar e consolidar uma nação verdadeiramente singular. A visão limitada e egoísta da elite brasileira que, historicamente, vem mantendo seus herdeiros no controle do poder político e econômico do país, não desejam ou ainda não conseguiram enxergar as nítidas potencialidades de uma nação, de um povo e de uma cultura tão ricas e exuberantes.

Referências bibliográficas

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BETHELL, Leslie, organizadora. O Brasil da Independência a meados do Século XIX. In: História da América Latina: da Independência a 1870, volume III. São Paulo, Ed. USP, 1999.

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COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Ed. Brasiliense, 1985.

GRAHAM, Richard. O Brasil do Século XIX à Guerra do Paraguai, In: História da América Latina: da Independência a 1870, volume III. São Paulo, Ed. USP, 1999.

JANOTTI, Maria de Lourdes M. A Balaiada, 1838-1841. Ed. Brasiliense, 1987.

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MARSON, Izabel. A Rebelião Praieira. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1981.

MONTELLO, Josué. O baile de despedida. Ed. Martins Fontes, 1985.

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PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo, Ed. Contexto, 1989.

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TORAL, André Amaral. Negro de corpo e alma. São Paulo, Fundação Bienal: mostra do descobrimento Brasil 500 anos, 2000.

http://hemi.nyu.edu/unirio

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